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IZABELA LEAL

 

 

IPANEMA EM RESSACA

há um clamor marinho
no movimento das ondas

despedaçadas
contra as pedras do arpoador
resíduos de uma cólera branca
furiosamente em direção
ao céu

tuas palavras
acima das nossas cabeças
negras junto às gaivotas
escoavam pelo vão
das pupilas
e eu desejava um tratado de retórica
um livro de oratória um manual de
eloqüência
ou qualquer fórmula mágica

ouvia-se ainda
a veemência do mar e no entanto
era preciso riscar um fósforo
no silêncio anterior
no silêncio ancestral
além do batimento de lábios
e pálpebras

já era a hora
quando o ambulante se aproximava
com pequenas flores de plástico
balbuciando alguma coisa
num idioma incompreensível
já era a hora
em que as palavras

- emaranhado de sons -

em que as palavras
à deriva
se despedaçavam

contra as pedras do arpoador

 

SETEMBRO

segundo o calendário, já é primavera.
longe o sol, caía chumbo sobre os tetos

e nenhum líquido vinha emergir nas

rugosidades da pele.
o inverno havia deixado vestígios de sal
por entre os poros.

ela fechava os olhos, o guarda-chuva
acentuava o gesto.
alguém esticava o braço para que o
ônibus parasse ­-
era uma mêcanica simples, engrenagens
de uma máquina sem ruídos e constantes batimentos
cardíacos.
(a regularidade do mundo surpreende, mas
às vezes é preciso escrever uma elegia ou

puros versos desiguais)

e ela saltava poças d'água como
quem vara ocos na memória.

 

FOTOGRAMAS

o círculo não é redondo.

fanáticos em adoração empunham armas contra
sem saber ao certo se apartam
faces mãos que se estreitam e bocas e seios

sem saber se é possível evitar o que expira   as imagens

congeladas no tênue
linho da memória em fotografias

de sangue

amantes também separam os corpos

com soberana violência e

impiedade cega dilacerando
o que se inscreve à flor da pele
e a espessura da manhã   nenhum
voto de silêncio pode resgatar

o momento anterior ao estrondo nem há

reencontro ou palavra apenas
repetição antes e depois

da chuva

 

NO FUNDO DA PUPILA


o atrito dos olhos

aprisiona imagens no fundo da

pupila.

cativas figuras de sombras e sangue
arranham a córnea,

seres minúsculos forçam passagem pelos

trilhos lacrimais.

um cisco irremovível.

e são comboios de corda por dentro
da noite veloz. nervos

impulsionam barcos na extensão da pele.

ao redor do quarto a gravidade
cega e pulsante.

lâmina de guilhotina.

não há perigo - somente
o terror dos encarcerados -

até que a tempestade
desabe sobre o corpo. bastam

bocas e mãos

para cerrar as pálpebras.

 

ESCULTURA


Toda aproximação entre corpos
se faz com uma navalha

nas mãos

e a jeune fille emerge do fundo
como a imagem recortada
de uma gravura
em papel

mas se a navalha
realiza a carne num gesto de

arrebatamento
ela não menos
talha

a pele
- superfície extensa
que recobre os nervos -
e expõe camadas de

músculos

sob a égide da navalha
toda aproximação é

corte
ferida
por onde o sangue
destila silêncio
em gotas de
arsênico

*

Izabela Leal é doutoranda em Literatura Portuguesa pela UFRJ e bolsista da Fundação Calouste Gulbenkian.

* 

Leia também ensaios da autora sobre Herberto Helder e Álvaro de Campos.

*

 

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