ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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ANDRÉ DICK


EURÍDICE

ainda amarga,
a caixa de cinzas

recolhe do líquido
a mesma espera

o líquido que o corpo
(tendo bebido

mas só de véspera)
agora foge a quem o toca


*

pela língua
pode tocá-la novamente

mas ficaria só o vazio
(heras crescendo

de um vidro de remédio
a tudo, a si ausente,

de onde se desprende)


RAÍZES

Além do gosto definido
pela simetria deste lugar,
enxergo, antes das gravuras
dispostas pela parede,
agora (como saída) a porta.

Sempre o mesmo - nunca fixa,
a síntese (esta
longa
ferida estancada com os gazes).

O quarto, da noite passada.
E as árvores em outra
distância.

De longe,
é possível que tenha caído
um raio, com tamanho
estrondo.

É possível que vá queimar,
que esteja queimando,
entre minhas mãos,
como velhas raízes.

 

MUDANÇA DE ESTAÇÃO

À véspera céu dormente
em branco
pontos (sem azul)
a caminho:
voltavam rapidamente à antiga rua.

Sem planejamento
qualquer primavera fora de época,
saída de uma costura
de ladrilhos contra o céu.

Só em termos
do outono
Sereno
Urinavam as últimas cores

A manhã
sobre latas de lixo
Crisálidas, às dezenas

O sol deixaria de habitá-las
(não mais, quase nunca)
através das frestas
do meu rosto
reunindo as sombras
dejetos podres
perto da cerca


ESTREITO DE LUZES

Crescendo rente à casa
coqueiros, a mesma paisagem
(um chão de madeira, sobre as quais uma
piscina verde -
a água da chuva de todo o verão -
com pequenas azaléias
brancas de relance: ao lado
do telhado permanecem).

Pinga-se uma gota sobre a calha
o branco espesso desliza da manhã.
Ao caminho das pedras
me aproximo da manhã seguinte
(também há o risco do verde, da grama,
entre elas a árvore espera da
outra beira, com galhos e uma
bacia de plástico recuperando
partículas de ozônio)

Algumas nuvens ancoram
neste céu com azul - mas só às bordas
quase em matéria
com outro estreito de luzes.
Vêm de longe se dispor,
quase perto da certeza
de não continuar aqui.
Quando volto a me estabelecer
por completo
na freqüência com a qual me chama
o mesmo abandono de sempre,
levam adiante sem conseguir tocar com as mãos
o objeto de retenção
ou a pequena idéia
somada ao vento
(um relance de tristeza
em seu rosto
ainda vivo, respirando, lá embaixo
onde se perdeu, vem se perdendo)

MAU SINAL

O hematoma no olho direito
O braço roxo
de uma veia mal calculada
(comprimida pelo anestésico)
O ritmo do pulso
Este líquido é mais estranho
(parece morfina)
O mesmo fluxo de sangue
nas veias
O suco gástrico excessivo

Muitas peças poderiam
ser trocadas
(um corredor aberto,
outro fechado), dias, quando
muito pessoas de lugar,
madrugadas

*


André Dick, poeta e ensaísta, nasceu em Porto Alegre (RS), em 1976. Publicou o livro de poemas Grafias. É membro do conselho editorial de Zunái.

Leia também os ensaios do autor sobre Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Paulo Leminski.

*

 

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