ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

IDENTIDADE E DESTRUIÇÃO – A CRÍTICA SOCIAL
EM BOM CRIOULO, DE ADOLFO CAMINHA

 

Sarah Maria Forte Diogo

 

O romance Bom-Crioulo (1895) do cearense Adolfo Caminha apresenta a atormentada história de paixão entre dois marujos – Amaro, mais conhecido como Bom-Crioulo – e Aleixo. Amaro é um “negro fugido”, ex-escravo, e Aleixo, um rapaz de família pobre do sul do país, que decide embarcar para ter algum tipo de ocupação. A partir de uma relação inicialmente fraternal, observa-se o desenrolar do desejo visceral que consome Amaro. Durante toda a narrativa, observa-se que a voz condutora da incursão do leitor no cotidiano da marinha representa Aleixo como objeto de desejo não somente de Amaro, mas de toda a tripulação.

 

Bom-Crioulo problematiza temas por si só polêmicos para o século XXI – a pulsão de amor obsessivo, e por que não dizer pulsão de morte, pelo sexo igual. Imagine-se a recepção do público à época em que foi lançado, século XIX. Rotular o texto de naturalista por vezes significa colocá-lo, ou intentar fazê-lo, num esquema de compreensão simplista. O objetivo deste ensaio é questionar qual seria, de fato, o tema subjacente ao romance Bom-Crioulo e analisar a identidade movediça do personagem principal, Amaro, e sua marginalidade. É muito fácil afirmar que Bom-Crioulo é um libelo naturalista que escolhe um tema problemático para comprovar teses, no entanto, mediante leitura crítica e reflexão, observamos que essa é a camada superficial do texto, onde está incrustada uma crítica radical à sociedade brasileira de base escravista e agrária.

 

O realismo existe em todas as artes, em maior ou menor grau, dependendo do objetivo da obra, ou seja, todo texto tem um lastro de realidade, mesmo que negue essa filiação, pois, para refutar algo, é preciso antes acreditar que este algo traz em si uma possibilidade de existência. Portanto, toda negação é impossível.

 

Ao lado do termo realismo, temos o vocábulo naturalismo, que designa, em livros didáticos, um estilo de época. Por vezes, o realismo e o naturalismo são caracterizados como estilos simultâneos, motivados pelo contexto histórico do século XIX. Deve-se frisar que a periodização utiliza diversos critérios a fim de caracterizar as obras concebidas nesse tempo e agrupá-las em séries semelhantes. O que importa, em tal classificação, é perceber que os textos unem-se e separam-se por feixes de traços estilísticos, que se manifestam por marcas linguísticas e temáticas.

Conforme Candido & Castello,

 

Naturalismo significa o tipo de realismo que procura explicar cientificamente a conduta e o modo de ser dos personagens por meio dos fatores externos, de natureza biológica e sociológica, que condicionaram a vida humana. Os seres aparecem, então, como produtos, como consequências de forças preexistentes, que limitam a sua responsabilidade e os tornam, nos casos extremos, verdadeiros joguetes das condições (CANDIDO & CASTELLO, 2005, p.286).

 

 De acordo com Lima (1974): “As expressões cunhadas então parecem driblar o vazio, como se o adjetivo pudesse cobrir o equívoco do nome” (p.28). Romantismo, realismo e naturalismo são vocábulos que designam realidades múltiplas, ricas em diversos aspectos culturais, e não blocos estanques que servem para qualificar obras. Notaremos que durante o naturalismo brasileiro os escritores construíram textos que seguiam regras, fórmulas e esquemas de produção. Nesses casos, a estética determinou o conteúdo da obra, pois o importante era provar que a humanidade guiava-se por instintos e tudo poderia ser reduzido a esquemas de ação orientados por necessidades orgânicas e não por forças transcendentais. Os estilos de época figuram então valores cambiantes, formas de pensar o estar no mundo plasmadas em todos os setores de produção cultural humana, incluindo aí a construção literária.  

 

Para Auerbach, o realismo procede a um jogo de correspondência interno, em que os elementos ficcionais da narrativa relacionam-se a itens exteriores, que projetam suas sombras para o texto. O escritor realista monta, portanto, um teatro de sombras, com o objetivo de torná-lo o mais verossímil possível aos olhos do leitor. O naturalismo parte da matriz realista, mas seu processo composicional é diferente, uma vez que a estética naturalista exacerba o jogo de correspondência, forçando relações entre forma interna e forma externa, de modo que é o exterior que condiciona a consecução do texto: os personagens naturalistas são tipos, engendrados pela ideia de que o homem é produto das reações biológicas e presa de seus desejos orgânicos. O homem, mais um animal entre tantos outros, deve ceder às obrigações do organismo e aqueles que são considerados mais frágeis, as mulheres, por exemplo, sofrem afecções nervosas, em geral provocadas pela repressão social e, sobretudo, pela ausência ou excesso de sexo. Porém, não são apenas as mulheres naturalistas que enlouquecem, os homens também são tocados pela loucura.

 

Quem imagina que os problemas dos personagens naturalistas estão resolvidos quando elas satisfazem seus desejos, enganam-se. É aí que os problemas intensificam-se. Uma vez imersos no processo de vivenciar o desejo, as heroínas e os heróis do naturalismo querem sempre mais e, em virtude de serem insaciáveis, não conseguem atingir o equilíbrio, desequilibrando-se para sobreviver, pois o interessante para essa estética parece ser a observação supostamente fria do comportamento humano em situações extremas.

 

A espinha dorsal dessas situações é o sexo, que engendra subtemas: o tabu da conjunção carnal ilícita, sem fins de procriação, a repressão aos desejos femininos e masculinos, que acaba por desencadear comportamentos estranhos e inaceitáveis socialmente, por exemplo, a jovem Lenita de A Carne e seu sadomasoquismo, pois a personagem se compraz ao ver um negro agrilhoado, o trágico previsível como momento orgástico de satisfação dos instintos, a violência física como forma de resolver problemas.

 

Esses subtemas, gerados a partir do núcleo sexo, ligam-se ao caráter híbrido dos personagens naturalistas: em geral, eles principiam os textos como intelectuais ou operários sem instrução, frios, versados em letras e conhecimentos teóricos, ou então são trabalhadores braçais, porém, em determinado ponto do texto, atraem-se por atividades práticas, à maneira da caça, da construção, tudo que coloque o corpo em movimento frenético. Nesse rol de atividades pragmáticas, encontra-se o sexo.

 

O naturalismo no Brasil não conseguiu executar a fórmula haurida na Europa. E isso não significa fracasso. Mesmo independente, sabemos que o Brasil ainda mantinha com Portugal um status de dependência financeira e cultural muito forte. Para ser aceito como intelectual/ escritor em terras brasileiras, fazia-se necessário beber em fontes européias e, mesmo que as criticasse, procurasse reproduzi-las, de modo a compor modelos que, se aceitos em países desenvolvidos, poderiam também aplacar a sede cultural dos tímidos pensadores brasileiros e de um público majoritariamente iletrado ou então que ostentava um falso brilho beletrista burguês. Em outras palavras: era preciso que o Brasil aderisse à moda, porém, vicejava entre nossos escritores o romantismo. Romantismo esse que se entrelaça ao Naturalismo, produzindo romances híbridos.

 

É possível notar que os romances naturalistas brasileiros surgem com uma roupagem que nada deixa a desejar ao naturalismo europeu. Os escritores, de fato, seguiram a receita: observação de personagens reféns de suas pulsões orgânicas. No entanto, toda receita depende de quem a executa e das condições do meio. Abra-se um relevante parêntese: não estamos a considerar que o naturalismo europeu foi superior ao brasileiro, pois crítica literária não é desfile de escola de samba, para averiguar quem é melhor ou pior. O que estamos a postular é justamente a aclimatação do naturalismo ao Brasil, produzindo textos que não apenas “copiam” modelos, mas procuram adaptá-los à cor local, engendrando, assim, obras pioneiras, pelo enredo, ação, personagens e temário. A antropofagia modernista inicia-se já durante o romantismo e prossegue até a maturidade literária brasileira. Porém, digerir nem sempre é fácil. Talvez, o naturalismo não tenha conseguido adaptar habilmente modelos importados, mas ao menos seu processo de devorar foi eficaz. Se as obras são medíocres ou não, a conversa é outra.

 

Lúcia Miguel-Pereira afirma: “[...] a melhor prova de que o naturalismo nos foi imposto pela moda está em ter sido tão mal assimilado. Praticaram-no sempre como quem executa uma receita os nossos romancistas, que, no espírito, continuavam românticos” (1973, p. 124). A estudiosa ressalta o que chamamos de “romances híbridos”: o naturalismo à brasileira é uma mistura entre as ideias do movimento naturalista e os laivos de romantismo que nunca abandonaram a prosa do Brasil, ou seja, é uma fusão entre paixão subjetiva romântica e paixão, que se quer objetiva, naturalista. De acordo com Levin:

 

[...] enquanto expressão estética dessa apropriação das várias correntes do pensamento moderno, a literatura naturalista contém ressonâncias de embate intelectual que afetou a sociedade brasileira, subdividida em pólos opostos nos confrontos entre católicos e maçons, monarquistas e republicanos, escravistas e abolicionistas, conservadores e liberais (LEVIN, 2006, p.50).

 

O estudioso Pasta Jr., em análise ao romance Grande Sertão: veredas, aponta que o hibridismo é uma característica recorrente da literatura no Brasil:

 

Com as variações importantes que seria preciso avaliar em cada caso, a literatura brasileira não cessa de pôr e repor as figuras de um hibridismo que constitui uma espécie de marca de nascença do próprio país, igualmente posta e reposta ao longo de sua história. Nação colonial e pós-colonial, o Brasil já surge na órbita do capital e como empresa dele, mas se estabelece e evolui com base na utilização maciça, praticamente exclusiva e multissecular, do trabalho escravo. Essa contradição de base forma uma espécie de enigma histórico e sociológico que as ciências humanas permanecem a interrogar, entre nós (PASTA JR., 1999, p.67).

 

É lícito entendermos esse hibridismo como aspecto constituinte da formação social do nosso país e da nossa cultura. O hibridismo na estética naturalista consiste na inserção e na releitura de características românticas que, mergulhadas no naturalismo, apresentam uma face contraditória, mas, por isso mesmo, rica: vejamos a idealização romântica da liberdade. Amaro deseja a liberdade, idealiza o conceito quando contempla o mar, no entanto, já nascera no ventre da escravidão, o que lhe tornava um predestinado à marginalidade, condenado a viver preso, atado a grilhões invisíveis, extremamente fortes, por exemplo: a carência econômica, a subordinação contínua, o excesso de trabalhos. A idealização existe, no entanto, o personagem entra em choque com a realidade que se apresenta, e o conceito renasce, cruel em sua impossibilidade.

 

Em Bom-Crioulo notam-se estruturas de sentido que criticam não apenas a figuração romântica do mundo, mas, sobretudo, a forma de existência da sociedade brasileira e suas instituições aparentemente perfeitas. Para não fugir à equação organismo incontrolável – homem, pois o homem é vítima dos próprios instintos, tantas vezes desconhecidos, Adolfo Caminha formula interessantes explicações para o comportamento de Amaro. Por vezes, resvala para o tratamento patológico do tema, como se fosse uma aberração, mas em outros pontos fala de forma objetiva sobre a questão. A história, em muitos momentos, soa como uma tragédia de amor, em que um dos polos ama, deseja e quer cada vez mais. No caso, o negro Amaro. Há ainda a crítica sutil, mal compreendida por alguns estudiosos que esquecem ser o texto ficcional arena ideológica, ao paradigma vigente de desvalorização do negro.

 

A homossexualidade é considerada como algo que não se relaciona à etnia, ou seja, o que durante algum tempo a crítica leu como simples reprodução de preconceitos, nós podemos ler como superação destes, pois o autor relativiza o assunto, desmonta-o e chega à irônica conclusão, mergulhando no pensamento de Amaro, de que a homossexualidade não pode ser reputada à cor da pele:

 

[...] era homem, tinha suas necessidades, como qualquer outro: fizera muito em conservar-se virgem té os trinta anos, passando vergonhas que ninguém acreditava, sendo muitas vezes obrigado a cometer excessos que os médicos proíbem. De qualquer modo estava justificado perante sua consciência, tanto mais quanto havia exemplos ali mesmo a bordo, para não falar em certo oficial de quem se diziam coisas medonhas no tocantes à vida particular. Se os brancos faziam, quanto mais os negros! É que nem todos têm força para resistir: a natureza pode mais que a vontade humana... (CAMINHA, 2006, p.46).

 

Candido & Castello destacam que: “Adolfo Caminha [...] teve o mérito de abordar, com precisão e sobriedade, em Bom Crioulo (1895), um caso de desvio sexual” (2005, p.288). É possível destacarmos nessa breve crítica a simplificação a que os autores procedem ao resumirem o enredo do livro a “caso de desvio sexual”. É indiscutível que a homossexualidade é tratada na obra como um comportamento desviante, mas isso é na economia do texto, e não algo que a crítica deva reproduzir, uma vez que uma análise deve descarnar a obra, detalhar seus mecanismos de sentido e estratégias estilísticas, isto é, a análise literária que ocorre no seio da obra e a análise do texto literário não são as mesmas ações, são atividades que demandam condutas epistemológicas diversas.

 

O texto de Adolfo Caminha não se resume apenas à abordagem de um caso de “desvio sexual” para chamar a atenção. Bom-Crioulo coloca em cena personagens marginalizados, seja pela cor da pele ou condição social. Apresenta Amaro e sua estratégia de fugir da escravidão, paradoxalmente se entregando a uma faina também opressora: a vida de marujo.

 

Ao início do romance, nota-se que o narrador desmonta a visão romântica da realidade, quando detalha a corveta:

 

A velha e gloriosa corveta – que pena! – já nem sequer lembrava o mesmo navio de outrora, sugestivamente pitoresco, idealmente festivo, como uma galera de lenda, branca e leve no mar alto, grimpando serena o corcovo das ondas!... Estava outra, muito outra com o seu casco negro, com as suas velas encardidas de mofo, sem aquele esplêndido aspecto guerreiro que entusiasmava a gente. [...] Toda ela mudada, a velha carcaça flutuante.[...] No entanto ela aí vinha – esquife agourento – singrando águas da pátria, quase lúgubre na sua marcha vagarosa (CAMINHA, 2006, p.13).

 

A seleção lexical utiliza vocábulos em geral filiados à cosmovisão romântica e procura nuançá-los como ecos de um passado distante. A corveta está decrépita, o tempo de glória já passara. A figuração nos sugere a ideia de que as funções desempenhadas nesse espaço decadente são também menores, destituídas de nobreza. São ações cotidianas, naturais, tão ao gosto dos naturalistas, que procuravam explorar no dia a dia, nos atos habituais, não a grandeza dos homens, mas a sua provável torpeza. O espaço literário curva-se à força das palavras: o esquife agourento singra os mares, prenunciando o drama passional a se desenvolver na história.

 

Os aspectos românticos que surgem nessa trama são já tributários de outras estéticas, como o arcadismo e o simbolismo: a interlocução homem e natureza, em que esta não é apenas palco, mas também atua sobre o personagem. Há coerência entre sujeito e espaço, de modo que a natureza é uma extensão do psiquismo do protagonista ou mesmo influencia-lhe e lhe inebria os sentidos. 

 

De acordo com Bourneuf e Ouellet, em O Universo do Romance, o espaço:

 

[...] num romance exprime-se, pois, em formas e reveste sentidos múltiplos até constituir por vezes a razão de ser da obra. [...] o espaço é organizado com o mesmo rigor que os outros elementos, age sobre eles, reforça-lhes o efeito e, no fim de contas, exprime as intenções do autor. [...] Uma descrição do espaço revela, pois, o grau de atenção que o romancista concede ao mundo e a qualidade dessa atenção: o olhar pode parar no objecto descrito ou ir mais além. Ela exprime a relação, tão fundamental no romance, do homem, autor ou personagem, com o mundo ambiente: ele foge deste e substitui-o por outro, ou mergulha nele para o explorar, o compreender, o transformar, ou se conhecer a si mesmo (1976, p.131-163).

 

Bourneuf e Ouellet destacam as atitudes estilísticas do romancista e sua relação com a categoria espaço. Entre as condutas citadas – fugir do espaço, substituí-lo, explorá-lo, compreendê-lo – observa-se que o autor naturalista enquadra-se no modelo de explorador observador. Ele penetra o ambiente, mas a ele não se entrega: prepara o cenário, caracteriza-lhe e depois insere os personagens. Esse procedimento ocorre em Bom-Crioulo e em outros romances do Naturalismo. Filia-se à própria filosofia da estética, que frisa a precedência de dois eixos sobre o sujeito: o organismo e a natureza, física ou abstrata.

 

O olhar do narrador observador comanda as personagens, espécie de títeres vazios. Adolfo Caminha rompe parcialmente com este modelo ao construir Amaro, pois na arquitetura textual do romance o escravo fugido assume diversas faces e, em algumas passagens, o narrador utiliza o discurso indireto livre. Subjaz a essa estratégia a intenção de dar relevo a um personagem forte, com várias nuances, que extrapola o frio controle do narrador demiúrgico. Se Bom-Crioulo ressurgisse em nosso século, na certa teríamos Amaro com um discurso à Riobaldo, talvez ainda mais radical, ou seja, um personagem narrador que conta a própria história, quando o que importa saber está para além da figura do sujeito enunciador.

 

Em Bom-Crioulo, observa-se um jogo de identidades. Sabe-se de Amaro que foi um escravo fugido: “Inda estava longe, bem longe a vitória do abolicionismo, quando Bom-Crioulo, então simplesmente Amaro, veio, ninguém sabe donde, metido em roupas de algodãozinho, trouxa ao ombro, grande chapéu de palha na cabeça e alpercatas de couro cru” (CAMINHA, 2006, p.24). Seguindo um instinto para a liberdade, Amaro foge e assume nova identidade, a de marinheiro: “Ele, o escravo, ‘o negro fugido’ sentia-se verdadeiramente homem, igual aos outros homens, feliz de o ser, grande como a natureza, em toda a pujança viril da sua mocidade, e tinha pena, muita pena dos que ficavam na ‘fazenda’ trabalhando, sem ganhar dinheiro” (CAMINHA, 2006, p.25).

 

Enquanto marinheiro em início de profissão, Amaro mostra-se disciplinado, sem merecer qualquer tipo de punição. No entanto, após dez anos de trabalho, o Bom-Crioulo aborrece a rotina: “Um pobre marinheiro trabalha como uma besta, de sol a sol, sem proveito, sem o menor proveito! O verdadeiro é levar a vida na ‘flauta’...” (CAMINHA, 2006, p.29). O narrador sugere que a causa do aborrecimento e consequente indisciplina na realização das tarefas seria o jovem Aleixo. A informação é dada ao sabor da incerteza, na dicção de um boato: “Diziam uns que a cachaça estava deitando a perder ‘o negro’; outros, porém, insinuavam que Bom-Crioulo tornara-se assim, esquecido e indiferente, dês que “se metera” com o Aleixo, o tal grumete, o belo marinheirito de olhos azuis, que embarcara no sul – o ladrão do negro estava mesmo ficando sem-vergonha!” (CAMINHA, 2006, p.30).

Essa informação apresenta estrutura sintática semelhante à de uma fofoca segredada ao gosto popular, haja vista os termos utilizados: diziam uns; outros, colocando o envolvimento entre Amaro e Aleixo no plano da incerteza, que é desfeita logo a seguir, com uma explicação naturalista:

 

Sua amizade ao grumete nascera, de resto, como nascem todas as grandes afeições, inesperadamente, sem precedentes de espécie alguma, no momento fatal em que seus olhos se fitaram pela primeira vez. Esse movimento indefinível que acomete ao mesmo tempo duas naturezas de sexos contrários, determinando o desejo fisiológico da posse mútua, essa atração animal que faz o homem escravo da mulher e que em todas as espécies impulsiona o macho para a fêmea, sentiu-a Bom-Crioulo irresistivelmente ao cruzar a vista pela primeira vez com o grumetezinho. Nunca experimentara semelhante coisa, nunca homem algum ou mulher produzira-lhe tão esquisita impressão, desde que se conhecia! Entretanto, o certo é que o pequeno, uma criança de quinze anos, abalara toda a sua alma, dominando-a, escravizando-a logo naquele mesmo instante, como a força magnética de um imã (CAMINHA, 2006, p.30).

 

Observe-se que a atração é enquadrada na área semântica de uma fatalidade. A explicação de cunho cientificista equaciona o desejo de Amaro por Aleixo como uma reversão da ordem natural – atração animal do macho pela fêmea, o habitual, para atração entre machos, o desviante – gerando o descolamento de eixo, característica mais relevante de Amaro: ele é um deslocado, migrando de uma identidade para outra, sem digerir as marcas da identidade pela qual passara. De escravo fugido a marujo-amante, a marginalidade é uma característica que acompanha Amaro durante todo seu percurso e da qual ele não consegue se livrar.

 

As personagens naturalistas manifestam uma orientação para o abismo: podem findar as narrativas assumindo status negativos de loucas, criminosas ou suicidas. Porém, há a contraparte. No romance A Carne (1888) de Júlio Ribeiro, Lenita, a protagonista, não enlouquece, mas faz outro percurso: viaja para a capital, casa-se, fica ainda mais rica, goza dotes financeiros e mergulha na cultura da cidade, no entanto, seu amante Manduca, aquele que lhe iniciara na obscura paixão carnal, suicida-se com curare; em O Homem (1887) de Aluizio de Azevedo, a jovem Magdá envenena seu objeto de desejo, tornando-se uma criminosa. Em Bom-Crioulo, teremos o crime passional cometido por Amaro, que assassina Aleixo ao descobrir que este lhe trai.

 

Ao cometer o homicídio, vingando-se do amante de forma obsessiva, Amaro é oficializado como um marginal: é preso, e some escoltado no meio da multidão. O romance de Adolfo Caminha critica a sociedade e seu poder negativo de gerar marginais. Amaro tem um impulso para a libertação, mas ao se apaixonar por Aleixo é vítima de novo tipo de escravatura: a dos instintos. Embora o narrador de Bom-Crioulo situe a paixão entre iguais como um vício, um desvio da natureza ou mesmo algo incontrolável que acomete alguns indivíduos, sua crítica não recai, a exemplo do que certos estudiosos costumam realçar, sobre a relação homossexual, mas sim sobre a obsessão alimentada por uma relação entre sujeitos embotados pela injustiça social.

 

O diferencial desse romance está no fato de que os personagens principais não são tributários de classes abastadas da sociedade brasileira. São trabalhadores do mar, antes escravos ou filhos de família pobre, todos desgarrados, para os quais uma vida disciplinada acenava com a possibilidade de melhorias. No entanto, essa existência promissora revela-se como um cotidiano doentio, que fere a liberdade de escolha do indivíduo: não são poucas as passagens em que o narrador ressalta que casos de homossexualidade eram comuns no convés, em especial envolvendo superiores. Quando casos similares são descobertos ou ainda episódios mais simples, por exemplo, a masturbação, vêm à baila, ocorriam os castigos corporais, formas de torturar o corpo, para destituí-lo do poder de escolha.

 

A questão basilar que Bom-Crioulo levanta não está, portanto, na abordagem da homossexualidade, mas no comportamento hipócrita da sociedade diante do tema. Amaro marginal mata Aleixo porque este fora um momento de libertação. Quando Aleixo lhe trai com a portuguesa Carolina, Amaro perde a sua mais concreta liberdade: experimentar seu próprio desejo, subjugando o grumete Aleixo. Matar, logo, é a prova de que ele pode exercer algum domínio, mesmo que precário sobre a vida do outro: assassina-lhe, para vingar-se, para recuperar um poder que paradoxalmente nunca fora seu. A identidade de Amaro, à maneira de seu lugar social, lhe escapa todo momento: não pode ser escravo, não pode ser marujo, não pode ser amante. Não há liberdade possível, a não ser no impulso, que o conduz para o crime.

 

O romance apresenta muitos achados estilísticos, construções frasais objetivas, dicção por vezes popular, envolvente, embora perca o ritmo quando envereda para investigações de cunho naturalista. É um trabalho de análise de costumes e de críticas à sociedade brasileira, construindo um panorama de cores vivas e atuais quando nos interstícios de seu naturalismo aborda um das características intrínsecas à nossa formação social: a hipocrisia, o hábito de marginalizar o que está a olho nu, colocar para escanteio, e atentar para o que resta de uma situação não resolvida, os escombros de uma tensão: o cadáver de Aleixo é, para a audiência, o ápice do enredo amoroso – “todos queriam ‘ver o cadáver’, analisar o ferimento, meter o nariz na chaga” (CAMINHA, 2006, p.118) – até que esse mesmo ápice dissolve-se na multidão, perde o encanto da desgraça, e tudo volta a ocorrer habitualmente, ou finalizando à maneira de Adolfo Caminha, “no eterno vaivém” (CAMINHA, 2006, p.118).

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

AUERBACH, E. Mimesis. Trad.: Suzi Frankl Sperber. 2.ed. São Paulo: Perspectiva, 1971.

BOURNEUF, Roland e OUELLET, Réal. O universo do romance. Trad. de José Carlos Seabra Pereira. Coimbra: Livraria Almedina, 1976.

CAMINHA, Adolfo. Bom-Crioulo. São Paulo: Martin Claret, 2006.

CANDIDO, Antonio; CASTELLO, José Aderaldo. Presença da literatura brasileira: das origens ao Realismo. História e antologia. 12.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

LEVIN, Orna Messer. Nem trágico nem irônico, um dilema do naturalismo no Brasil. In: FINAZZI-AGRÓ, Ettore; VECCHI, Roberto; AMOROSO, Maria Betânia. (Orgs.). Travessias do pós-trágico: os dilemas de uma leitura no Brasil. São Paulo: Unimarco, 2006.

LIMA, Luís Costa.  A metamorfose do silêncio. Rio de Janeiro: Eldorado, 1974.

MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. Prosa de ficção (de 1870 a 1920). 3.ed. Rio de Janeiro, J. Olympio; Brasília, INL, 1973.

PASTA JR., José Antônio. O Romance de Rosa - Temas do Grande Sertão e do Brasil. In: Novos estudos CEBRAP n° 55. São Paulo, novembro de 1999.

 

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Sarah Maria Forte Diogo é mestre em Literatura Brasileira. E-mail: sarahfortebr@yahoo.com.br.

Leia um ensaio da autora sobre Guimarães Rosa.

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