ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

SENTIR, FALAR, NARRAR: A COMPOSIÇÃO DRAMÁTICA
DE “CARA-DE-BRONZE” DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

 

Sarah Forte

 

Aristóteles, em sua Poética, afirma que imitar é natural ao homem. A imitação é compreendida como uma fonte de prazer. A comédia, a tragédia e a epopéia são imitações, diferenciando-se em três aspectos: meios, objetos e maneiras.

 

A epopéia imitava as ações de pessoas superiores e nobres, já a comédia inclinava-se para o vulgo e o inferior, procurando o efeito cômico que, de acordo com o mestre de Estagira, “é um defeito e uma feiúra sem dor nem destruição” (2007, V, p.24), uma modalidade do feio geradora de risos. A tragédia imita não pessoas, mas ações felizes ou infelizes, encenando, portanto, atos que visam impactar a audiência, exortar à reflexão e não ao nojo ou ao espanto. Aristóteles professa ainda que: “as personagens não agem para imitar os caracteres, mas adquirem os caracteres graças às ações. [...] sem ação não poderia haver tragédia” (idem, VI, p.25).

 

Seis elementos compõem a tragédia: fábula, caracteres, falas, ideias, espetáculo e canto. O ponto mais importante é a organização das ações, o modo pelo qual estão dispostas. A fábula é a essência da tragédia, o seu conteúdo, o mote que sustenta a arquitetura da ação. Os caracteres são as escolhas: a linguagem encarna o caráter, pois é mediante as formas e gestos linguísticos que reconhecemos as decisões adotadas em cena. As ideias condizem à capacidade de expressão e podem variar de acordo com o objetivo da situação. A fala é a interpretação através das palavras. E, por fim, o canto, que é considerado por Aristóteles como o maior dos ornamentos, dado seu aspecto artístico. Curiosamente, o espetáculo é compreendido como alheio à poética e parece existir como resultado dos elementos anteriores. Sua existência não interfere no efeito que uma tragédia causa, isto é, pode haver tragédia, sem necessariamente ocorrer espetáculo. O que é fundamental para a consecução da tragédia é a arte do poeta, concretizada na fábula, nas idéias, no caráter, nas falas e no canto.

 

Este ensaio analisa o texto “Cara-de-Bronze”, integrante de No Urubuquaquá, no Pinhém (1965), do escritor mineiro João Guimarães Rosa. Texto dramático, “Cara-de-Bronze” apresenta os elementos clássicos essenciais prefigurados por Aristóteles. Esses elementos são remodelados pela poética rosiana e integrados a uma narrativa em que o verbo poético-dramático mescla-se a recursos cênicos e cinematográficos para construir a estória de Cara-de-Bronze que, a rigor, não é somente dele, mas também do Grivo e dos vaqueiros que trabalham na fazenda. Cara-de-Bronze, um fazendeiro, está doente e impossibilitado de sair de seu quarto. Decide contratar um vaqueiro que possa viajar pelo sertão e lhe trazer o quem das coisas, pois ele necessita ouvir estórias para além dos discursos empíricos.

 

O vaqueiro selecionado é o Grivo, por apresentar as características necessárias à execução desse tipo de viagem. O fazendeiro faz uma espécie de concurso:

Três, que eram. Mainarte, José Uéua e o Grivo. E o Cara-de-Bronze ouvia, pensava e olhava – com um olhar de olhos. Ele queria era um só.

– Aquilo não era fácil. O homem media nosso razoado...

– Carecia de se abrir a memória!

– E ver o que no comum não se vê: essas coisas de que ninguém não faz conta...

– O Velho mandava todos os três juntos, nos mesmos lugares. No voltar, cada um tinha de dar relato a ele, separado. [...] Mandava-os por perto, a ver, ouvir e saber – e o que ainda é mais do que isso, ainda, ainda. Até o cheiro das plantas e terras se espiritava. [...] Isso é um ofício. Tem de falar se sentir, até amolecer as cascas da alma (ROSA, 1984, p.112). 

 

Os travessões indicam a fala dos vaqueiros, que dialogam entre si. O concurso consistia numa série de tarefas de observação do espaço. Mas não o espaço físico propriamente dito, e sim o metafísico. Da concretude das imagens, os concorrentes deveriam extrair sentimentos, a fim de “amolecer as cascas da alma”. Ora, o olhar requisitado por Cara-de-Bronze é justamente o olhar singularizador da arte, a perspectiva capaz de retirar o sujeito da voragem dos dias: “Tirar a cabeça, nem que seja por uns momentos: tirar a cabeça, para fora do rojão das coisas proveitosas” (idem, p.112). O fazendeiro não quer o que seja proveitoso, o seu querer habita na esfera dos bens imateriais, captados pela sensibilidade e traduzidos mediante uma linguagem que penetra na essência dos detalhes.

 

Procedamos inicialmente à definição de texto dramático à luz da narratologia e depois vejamos, do ponto de vista da poética clássica, as partes que compõem o drama de “Cara-de-Bronze” e de que modo são remodelados. Os textos literários apresentam uma dinâmica modal, entendendo o modo como formas de representação literária. Logo, afirmar que a linguagem literária é regida pela dinamicidade modal equivale a dizer que há formas diferentes de representar o mundo e essas formas se dão a conhecer mediante a organização da linguagem na obra.

 

Podemos apontar três modos literários: lírico, épico e dramático, notando que na análise de um texto os três modos podem ser observados, o que implica que a representação modal não é estanque nem exclusiva. Por exemplo, no poema I-Juca Pirama de Gonçalves Dias, é possível notar o modo narrativo – a história da tribo –, o modo lírico, com os recursos linguísticos, as rimas, a organização versificada e, principalmente, a evocação dos sentimentos e da memória, e o modo dramático, quando ocorrem os diálogos entre o velho pai cego e seu filho:

Timbira, diz o índio enternecido,
Solto apenas dos nós que o seguravam:
És um guerreiro ilustre, um grande chefe,
Tu que assim do meu mal te comoveste,
Nem sofres que, transposta a natureza,
Com olhos onde a luz já não cintila,
Chore a morte do filho o pai cansado,
Que somente por seu na voz conhece.
— És livre; parte.
      — E voltarei.
             — Debalde.
— Sim, voltarei, morto meu pai.
             — Não voltes!
É bem feliz, se existe, em que não veja,
Que filho tem, qual chora: és livre; parte!
— Acaso tu supões que me acobardo,
Que receio morrer!
       — És livre; parte!
— Ora não partirei; quero provar-te
Que um filho dos Tupis vive com honra,
E com honra maior, se acaso o vencem,
Da morte o passo glorioso afronta. [1]


No trecho acima, há narração, lirismo e dramaticidade, três modos de representar a saga do último guerreiro tupi e do seu velho pai cego, versada numa linguagem de tons épicos e dramáticos. De acordo com Frye: “A base das distinções de gênero na literatura parece ser o radical de apresentação [drama, épica, lírica]. As palavras podem ser representadas diante de um espectador; podem ser faladas perante um ouvinte, podem ser cantadas ou entoadas; ou podem ser escritas para um leitor” (apud REIS, 2003, p.240).

O radical de apresentação a que o estudioso faz referência parece significar o que sustenta o gênero em questão, sua raiz, seu fundamento, de onde partem diversas características. Com base nesse pensamento, Aguiar e Silva (1991) afirma acerca do texto dramático que:

[...] caracteriza-se pelo seu “radical de apresentação”, pois seu autor textual está oculto, dissimulado, quer em relação à personagem, quer em relação aos receptores do texto, cabendo às personagens, aos agentes da história representada, que comunicam entre si e com os receptores do texto, a assunção da responsabilidade imediata e explícita, sem mediadores intratextuais, dos actos de enunciação” (p.604).

A supressão total da instância autoral que opera no interior do texto – o autor textual –, ou mesmo seu parcial ocultamento, parecem ser marcas do texto dramático. Guimarães Rosa, em “Cara-de-Bronze”, constrói o roteiro de uma peça teatral, apresentando as seis componentes do drama, a saber: a fábula – o fazendeiro que manda um vaqueiro captar os detalhes do sertão –; as ideias – a busca pelo “quem” das coisas e a poetização do cotidiano; o caráter – a constituição da imagem do fazendeiro, entre o bem e o mal; as falas – os discursos dos vaqueiros e a fala do narrador movimentam o drama; e o canto – o fundo musical representado pelos versos do cantador Quantidades.

“Cara-de-Bronze” apresenta como espaço uma fazenda-de-gado no Urubuquaquá. Três paratextos abrem o drama: o primeiro, retirado de um jogo popular, no qual o discípulo deve realizar o que o mestre mandar; o segundo, intitulado Cantiga – Alvíssaras de alforria; e o terceiro, das Cantigas de Serão de João Barandão. Esses três paratextos realizam a função de preparar a audiência para o espetáculo verbal a ser realizado. Funcionam como um roteiro de comportamento que o leitor deve seguir: primeiramente, ele deve agir como o mestre mandar, em seguida, deve aceitar as alvíssaras da alforria, os prêmios da liberdade, habituando-se à atmosfera das cantigas populares. A cantiga – Alvíssaras da alforria – indica um ato simples: “buscar meia-pataca pra tomar meu parati...”, prenunciando que uma ação prosaica como essa manifesta a libertação. Libertação que pode ser compreendida como a disposição para o que é aparentemente prosaico, no caso, a situação de um vaqueiro doente e as estórias que são armadas a partir desse núcleo e em torno dele.

Ao ler os passos iniciais, que podemos denominar de sugestões para o comportamento leitor, temos a segunda cantiga, de João Barandão. O título dá indícios da inserção do autor João Guimarães Rosa na estória, como se fosse um aviso: estarei presente nos interstícios textuais, fiquem atentos! Essa cantiga não apresenta o movimento da primeira, em que observamos o prosaico que mascara um ato de liberdade. João Barandão prefigura uma disposição capaz de captar o poético nos detalhes da natureza, jogando com elementos que não têm valor econômico. Elementos que serão a razão para a saída do Grivo. Vejamos os versos dessa cantiga: “Eu sou a noite p’ra aurora,/pedra-de-ouro no caminho:/ sei a beleza do sapo,/ a regra do passarinho;/ acho a sisudez da rosa,/ o brinquedo dos espinhos” (ROSA, 1984, p.77).

O texto inicia em modo narrativo-descritivo, a fim de oferecer um panorama do local: “No URUBUQUAQUÁ. Os campos do Urubuquaquá – urucuias montes, fundões e brejos. No Urubuquaquá, fazenda-de-gado: a maior – no meio – um estado de terra. A que fora lugar, lugares, de mato-grosso, a mata escura, que é do valor do chão” (idem, p.79). Os períodos são curtos, as frases, objetivas, partindo do geral – os campos do Urubuquaquá – para o específico – fazenda-de-gado, estado de terra – ampliando a visão: “Este mando, que desmede os recantos. Mas a redor, a fim a fora, iam-se os Gerais, os Gerais do ô e do ão” (idem, p. 79). Ao fim, o elemento humano é delineado e introduzido: “Cavaleiro vai, manuseando miséria, escondidos seus olhos do à-frente, que é só o mesmo duma distanciação” (idem, p.79). O espaço assume ares de incerteza e insegurança: “Os Gerais do trovão, os Gerais do vento” (idem, p.79)

A insegurança que inicialmente é injetada no texto é colocada sob suspeição e negada, pois a voz narrativa afirma: “No Urubuquaquá, não.”, pois lá havia riquezas, capazes de coibir possíveis incertezas que poderiam assolar o local.  As relações entre as orações e os períodos não são marcadas por conjunções. A ausência de conectivos indica que a coesão ocorre mediante a organização das frases, justapostas seguindo a lógica interna da narrativa, da qual o leitor esforça-se para extrair os liames sintáticos.

A descrição da casa nos remete ao processo de formação social e econômica do país em sua faceta sertaneja: a Casa da fazenda constituiu-se enquanto ponto fixo dos desbravadores da região interiorana. A casa é um porto seguro e também faixa de transição, por onde passam vaqueiros, comerciantes, cozinheiros, crianças Em “Cara-de-Bronze”, esse local é descrito como espaço patriarcal e hierarquizado. 

O primeiro elemento humano a ser descrito não é o fazendeiro, são os vaqueiros em sua coletividade: “A chusma de vaqueiros operava a apartação.” A narrativa opera com dois planos de ação, que ora se entrelaçam, ora se separam, formando blocos coordenados e subordinados, num sistema de parataxe – quando as células tornam-se aparentemente independentes – e hipotaxe – quando o dinâmico subordina o passivo ou vice e versa. Veremos que o texto trabalha o plano estático ao início ou quando deve apresentar alguma situação, e com o plano dinâmico quando focaliza personagens em ação e diálogo. Pensemos na seguinte imagem: um cameraman que percorre um espaço. Em determinandos momentos, seu equipamento filma um objeto, o que requer estabilidade. Em outros, sua câmera deve acompanhar o ritmo da sua atenção, ficando, portanto, em constante ação, instável. Esse efeito de movimento é observado em “Cara-de-Bronze”.

Quando a fala narrativa sai do quadro estático – Urubuquaquá/ Casa – para o dinâmico, a ação a que os vaqueiros procedem, temos a concretização desse efeito de movimento. Nota-se aí, além do recurso à dramaturgia, que é o conceito formal estruturante dessa estória, o apelo à arte cinematográfica, em virtude da tentativa de captar a movimentação, bem como demarcá-la.

Teatro e cinema oferecem técnicas para que o narrador manipule a massa de acontecimentos em estado bruto que permeia a estória de Cara-de-Bronze. Formalmente, essa peça/novela firma-se sobre três pilares: o sentir, o falar e o narrar que, amalgamados, constroem o objeto multifacetado e heterogêneo que é a escrita desse texto, escrita essa que é labiríntica, no sentido de que o labirinto é um espaço para a perdição artificial, pois quem o projetou conhece sua saída. Nesse caso, não há uma saída, mas chaves de leitura que indicam modos de entrar ainda mais no texto. O fio de Ariadne é o personagem Moimeichego, não por acaso um eu quadruplicado. O vocábulo que nomina a voz indagadora do texto foi constituído por uma justaposição que afirma e reafirma em quatro versões lingüísticas – francês, inglês, alemão, latim – um eu que adentra e devassa a cena. E o faz com base nas perguntas que porventura aqueles que desconhecem o Cara-de-Bronze tenham. Moimeichego, mais que o próprio autor textual, personifica os leitores virtuais, aqueles que nascem dentro do tecido da estória.

Palco organizado, estrutura solidificada, personagens concebidos, uma voz que a tudo indaga e uma música ao longe, pois os núcleos narrativos são introduzidos por coplas, a estória do fazendeiro solitário nos ensina lições de espetáculo teatral: não são todos os aspectos que fazem uma boa peça, mas sim a articulação entre estes e, o mais importante, um motivo dramático, uma trama, um conjunto de sentidos que deflagre a ação.

Há dois motivos que conduzem a estória de “Cara-de-Bronze”: o primeiro, de caráter amplo, teoriza sobre o nascimento de uma estória e as expectativas leitoras que, muitas vezes, frustram-se sem encontrar uma razão; e o segundo que se alia ao cerne do texto, à busca que o Grivo empreende, atendendo um pedido do fazendeiro.    

 Vejamos o seguinte trecho:

Não. Há aqui uma pausa. Eu sei que esta narração é muito, muito ruim para se contar e se ouvir, dificultosa; difícil: como burro no arenoso. Alguns dela vão não gostar, quereriam chegar depressa a um final. Mas – também a gente vive sempre somente é espreitando e querendo que chegue o termo da morte? Os que saem logo por um fim, nunca chegam no Riacho da Vento. Eles, não animo ninguém nesse engano; esses podem, e é melhor, dar volta para trás. Esta notícia se segue é olhando mais longe. Mais longe do o que fim; mais perto. Quem já esteve um dia no Urubuquaquá? A Casa – (uma casa envelhece tão depressa) – que cheirava a escuro, num relento de recantos, de velhos couros. As grades ou paliçadas dos currais. Os arredores, chovidos. O tempo do mundo. Quem lá já esteve? Estória custosa, que não tem nome; dessarte, destarte. Será que nem o bicho larvim, que já está comendo da fruta, e perfura a fruta indo para o seu centro. Mas, como na adivinha – só se pode entrar no mato é até ao meio dele. Assim, esta estória. Aquele era o dia de uma vida inteira (idem, p.103).

Neste excerto, nota-se o primeiro motivo a que aludimos: a teorização sobre a estória. O narrador incursiona sobre o problema de dar continuidade a uma narrativa tão polimorfa. Destaca ainda que os leitores que procurarem uma estória padrão perdem seu tempo, pois o texto é arenoso. Os advérbios dessarte, destarte, sinônimos, são utilizados ao final da oração, após o ponto e a vírgula, um uso que não é habitual. Em geral, esses vocábulos introduzem uma oração e tem carga semântica finalizadora, pois estabelecem uma ligação sintática com a informação anterior, de modo a preparar o terreno de sua conclusão. Da forma como está colocado, sugere-nos que não há conclusão possível, que a estória, por ser tão custosa, não apresenta margem para a atuação de itens lingüísticos capazes de iniciar uma conclusão. Ora, a falta de fim já é uma conclusão. Porém, uma analogia penetra esse inusitado uso adverbial: a estória será à maneira do “bicho larvim”, que dentro da fruta irá penetrá-la cada vez mais. A interrupção que o fragmento selecionado propõe é, portanto, uma artimanha da própria narrativa, pois os leitores já adentraram a estória, dela não podem sair, e paradas implicam aproximação, mergulho na linguagem, experimentação da língua que sai em jorros do caldeirão verbal, não desistência. A essa altura, capitular não é mais possível.

Observamos que colocações de natureza metaliterária, quando o discurso discute a si mesmo, atuam na esfera da estética e configuram um dos motivos que impulsionam essa narrativa. É o que notamos no fragmento anterior. Como segundo motivo narrativo, teremos a estória e suas frentes discursivas:  

Mas a estória não é a do Grivo, da viagem do Grivo, tremendamente longe, viagem tão tardada. Nem do que o Grivo viu, lá por lá. Mas – é estória da moça que o Grivo foi buscar, a mando de Segisberto Jéia. Sim a que se casou com o Grivo, mas que é também a outra, a Muito Branca-de-todas-as-Cores, sua voz poucos puderam ouvir, a moça de olhos verdes com um verde de folha folhagem, da pindaíba nova, da que é lustrada. [...] Quem conheceu de perto Segisberto Jéia? Quem sabe como ele empurrou, com as costas-da-mão, as horas mais pesadas? Pardo palha-de-milho-em-pé, no derradeiro da secura... Sem a existência dele – o Cara-de-Bronze- teria sido possível algum dia a ida do Grivo, para buscar a Moça? (idem, p.104-105).

A estória atua em, no mínimo, três frentes, três direções: a saída do Grivo e o possível encontro que ele tem com uma moça; a saída do Grivo e o mundo que ele contemplou, cada mundo com seu universo, como a biblioteca de Babel; e o pedido de Segisberto Jéia, bem como a própria existência desse fazendeiro, cuja vida é um enigma, uma máscara hermética, de bronze.

Os cantos que adornam a estória não surgem ao acaso, estruturalmente, relacionam-se à narrativa. Cada canto funciona como um fundo musical para a narração que se desenvolve em primeiro plano. São interessantes as marcações que aparecem ao longo da estória, integrando o Roteiro, parte que integra “Cara-de-Bronze”, com seus devidos apontamentos, inclusive uma notação de forte caráter imagético: “Grande plano: Todos riem. Todos comem..../ Som: Música-de-fundo – viola. Fusão.... Lenta...” (idem, p.102) Essa modalidade de notação integra roteiros cinematográficos e sua serventia é justamente traduzir a interseção entre os planos e a música, o que acentua a impressão de lenta movimentação neste caso.

Conforme nos foi possível observar, “Cara-de-Bronze” quebra os preceitos da poética clássica, ao retrabalhar os elementos integrantes de uma tragédia. Além dessa quebra, irrompe da tessitura dessa peça, se assim podemos chamá-la, padrões inovadores de constituição romanesca. A forma literária abre-se ao diálogo com outras artes, transformando a narrativa numa arena de experimentações, num laboratório de modos de se contar algo. Há muito a se explorar sobre “Cara-de-Bronze” e seu diálogo intersemiótico. Por ora, ficaremos aqui, numa tentativa de nos situarmos “fora do rojão das coisas proveitosas” (idem, p.112), com a sensação de que esta novela/conto/peça/roteiro, em suma, obra de arte apresenta uma composição dramática que atua em três esferas, que se organizam de acordo com o nível de abstração requerido: 1) sentir – captar a poesia dispersa, 2) falar – condensar a poesia num sistema, o da fala, imprevisível, para, depois, passar à outra ação, a terceira: 3) narrar – terreno em que o sentir e o falar transformam-se em estórias, que tentam significar o hermético do bronze para “não-entender, não-entender, até se virar menino”, ação paradoxal que habita a linguagem, pois como não-entender, se o esforço já nos leva à compreensão – entendimento –  de que, de fato, não entendemos? Ora, Cara-de-Bronze não queria entender, mas sim ver o brilho das palavras aspergido nos ares[2] , em suma, a moeda poética – erudita e popular – e seus valores, são os constituintes do cerne dessa narrativa.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

AGUIAR e SILVA, Vitor Manuel de.Teoria da Literatura.Coimbra: Almedina, 1991.

ARISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO. A Poética Clássica. 16.ed. Trad.: Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 2007.

ROSA, João Guimarães. No Urubuquaquá, no Pinhém. 7.ed. Rio de Janeiro: Nova  Fronteira, 1984.

 

 

Notas:

[1] Disponível em: http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/i-jucapirama.html. Acesso em: 13 mar. 2010.

[2] O vaqueiro José Uéua: Jogar nos ares um montão de palavras,  moedal” (ROSA, 1984, p.107). O trecho foi retirado de uma dos diálogos entre os vaqueiros. Eles discutem o que, de fato, desejava o Cara-de-Bronze.

 

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Sarah Maria Forte Diogo é mestre em Literatura Brasileira. E-mail: sarahfortebr@yahoo.com.br.

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