ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

UMA VIAGEM A INFERNOS POSSÍVEIS

 

Claudio Daniel

 

 

A musa chapada é um livro insólito que reúne poemas de Ademir Assunção e Antônio Vicente Seraphim Pietroforte com ilustrações do artista plástico Carlos Carah, que traduziu a alta temperatura dos textos em imagens brutais, próximas a um figurativismo expressionista. As narrativas poéticas do volume estão divididas em quatro seções: Grogues e noturnos, Viagem através da neblina, Clube do Pico e Bagana’s Blues, que abordam o consumo de drogas no cenário de miséria e violência dos centros urbanos.

 

Os poemas fazem referência a lugares conhecidos de São Paulo, como o Largo de São Bento, o Parque do Carmo, o Bexiga, por onde circulam personagens criados pelos autores, como Igor, Lili Maconha ou Mister Morfina, em cenas que recordam a velocidade narrativa do videoclipe e da história em quadrinhos.

 

Em Clube do Pico, poema de Antônio Vicente Seraphim Pietroforte (título que ecoa o lendário Clube do fogo do inferno), o autor imagina um casarão abandonado na Zona Leste, onde adolescentes se reúnem à noite para beber, fumar baseado ou fazer sexo: “vai chegando gente / só vai menina gostosa / só vai moleque bonito / menina beijando menina / vão lá no Clube do Pico”. Os versos são breves, coloquiais e permitem uma aproximação com o poema Osso & liberdade, de Roberto Piva, outro clube imaginário freqüentado por ”adolescentes vestidos de veludo negro e rosa” que dedicavam-se a orgias e à leitura de Mário de Andrade.

 

Roberto Piva, aliás, é a principal referência intertextual da Musa chapada, e em especial o livro Paranóia, de 1963, onde encontramos um poema chamado Visão de São Paulo à noite. Poema antropófago sob narcótico, que se insere numa tradição marginal da literatura que teve início em meados do século XIX. Conforme escreve Virna Teixeira no prefácio à Musa chapada, o consumo de drogas é “tão antigo quanto a civilização”, mas sua presença na literatura “surgiu após os avanços da Revolução Industrial, sobretudo a partir do uso de ópio na época do Romantismo inglês”. As Confissões de um comedor de ópio, de Thomas De Quincey, publicado em 1821, inaugurou essa linha temática na literatura ocidental, e atingiu um ponto de ebulição na época do Simbolismo, especialmente com o livro Paraísos artificiais, de Baudelaire.

 

No século XX, as drogas marcaram presença nos escritos de autores como Huxley, Artaud, Ginsberg, que, assim como os simbolistas, consideravam a ingestão de alucinógenos um método para a obtenção de estados alterados de consciência, além da atitude de ruptura com o cristianismo e as normas da civilização burguesa. Para poetas como Camilo Pessanha ou Henri Michaux, a droga foi um estímulo à criação poética, e ainda hoje se discute a influência dos entorpecentes na escrita desses autores.

 

A visão ingênua em torno das drogas atingirá o seu ápice nas décadas de 1960-70, com a contracultura, que colocou o uso do LSD no mesmo plano que a liberação sexual, a contestação política, o rock e a busca de antigas religiões, como o xamanismo. Nos tempos pós-modernos, a mitologia da droga não exerce o mesmo fascínio, pela divulgação de informações médicas sobre os seus efeitos na saúde física e mental e pelo vínculo entre drogas e narcotráfico. O charme de se beber absinto num cabaré parisiense cedeu vez às imagens de meninos de rua cheirando crack debaixo de viadutos.

 

É neste cenário desolado que se desenrolam as narrativas poéticas da Musa chapada, que não ignoram a guerra em curso nas periferias dos centros urbanos, que Ademir Assunção retrata muito bem no poema Paisagem crivada de balas: “As rajadas podem ser ouvidas de Pirituba ao Pontal. / Escopetas, uzis israelenses e fuzis russos / sangram as bordas da Noite Drogada”. A violência é sintetizada por Ademir num verso notável: “Deus está solto. E dizem que Ele está armado”. 

 

A musa chapada, porém, não se resume a um rude naturalismo, por maior que seja a aproximação entre arte e realidade proposta no livro. Os autores dominam as técnicas poéticas, e vamos encontrar recursos como a elipse, a paródia, a citação intertextual, a enumeração caótica, a espacialização das linhas, o diálogo com outras artes, e em especial a música, o cinema, o comic book, a pintura, bem como a simultaneidade de informações da televisão. Virna Teixeira aponta ainda a incorporação de gírias extraídas do mundo da droga, como talco, granizo, farinha ou nariz nervoso, que trazem a marginalidade da temática ao próprio campo semântico. 

 

Nos poemas de Ademir Assunção a enumeração caótica é um elemento estrutural, como no poema de abertura do livro, Noturno com marijuana, que mescla o jazz de Charles Mingus aos sacos de lixo, filmes de Hollywood ao monte Fuji e as deusas do Olimpo às ogivas nucleares. Já nos poemas de Antônio Vicente vamos encontrar sex shops, pôsteres, metralhadoras, calcinhas, aparelhos de TV e outras referências simbólicas e culturais, que formam um bric a brac da cidade caótica.

 

A paródia é um recurso utilizado com freqüência pelos dois autores, com ênfase na dessacralização religiosa, como na antiprece Santa Maria Joana, de Ademir Assunção (“erva santa dos xamãs / pode ser treva / pode ser canto / pode ser trava / pode ser cura”) ou na Reza n. 2 de Antônio Vicente Seraphim Pietroforte (“irmão Fogo / brasa do cigarro acesa / asa do carvão / sopro do carvão ao vento / na fumaça preta”).

 

O diálogo com a tradição literária também aparece em poemas como A volta do anjo torto, em que Ademir faz referências irônicas a Drummond e Torquato Neto (“mas eis que um anjo torto / aquele mesmo, com asas de avião / entrou pela porta / um baseado na mão”).

 

A presença da linguagem da história em quadrinhos é recorrente em todo o volume, não apenas nas ações rápidas e fragmentárias, como também pela citação de personagens como o Hulk, o Coringa, o King Kong, entre outros, em cenários reduzidos a poucos traços, como no poema O fim da história em Gotham City, de Ademir Assunção (“enquanto Coringa injeta no braço esquálido / a última gota da ampola / e Batman se retorce como uma cobra / picotada pelas garras das Iguanas de Hong Kong”).

 

“O clima de horror e ficção científica” da Musa chapada, segundo Virna Teixeira, “traz as marcas de uma escrita psicodélica”, em que as fronteiras entre o universo simbólico e o real são tênues. Porém, lendo com atenção este livro, o que notamos não é a fuga da realidade ordinária em busca de “estados alterados de consciência”, mas sim o mergulho lúcido e crítico numa realidade cada vez mais próxima dos pesadelos de uma bad trip.

 

 

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Claudio Daniel, poeta e jornalista, publicou o livro Figuras Metálicas (Perspectiva, 2005), entre outros títulos.

 

 

Leia também poemas de Ademir Assunção, fragmentos de Cinemitologias, Adorável Criatura Frankenstein e um ensaio sobre o autor escrito por Douglas Diegues.

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