ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

ADORÁVEL CRIATURA FRANKENSTEIN

por Ademir Assunção



UM SONHO

Quarenta reais de cocaína?

Uns quatro papelotes.

Tudo bem. Você demora?

Fique frio. Volto logo.

Ela atravessa as grossas portas de vidro fumê e imediatamente é engolida pela escuridão. Ela é minha amiga, mas não lembro quem é ela.

Resolvo esperá-la do lado de fora. Atravesso as grossas portas de vidro fumê e imediatamente meus olhos são atingidos por tamanha luminosidade que chega a ferir as retinas. Diante do hotel há uma praça enorme, toda calçada com pedras brancas. Apenas uma árvore no centro e sob ela um banco de madeira. Estranhas esculturas espalhadas por todos os lados: uma gigantesca mulher de pedra, com gavetas saindo de suas pernas, uma faca enfiada na testa e braços terminando em galhos, também de pedra. Perto do banco de madeira, um arco de pedra, semelhante à coluna dorsal de uma baleia, projeta-se do chão e interrompe-se abruptamente, suspenso no espaço, preso ao solo apenas por uma extremidade. Sento-me no banco de madeira, acendo um cigarro, olho para a direita e vejo um tigre saindo de trás da mulher de pedra. Pânico. Mas não consigo mover um músculo. Meu corpo está pesado, como se eu mesmo fosse um bloco compacto de pedra. O tigre avança lentamente. Com esforço sobrenatural consigo escalar a coluna dorsal da baleia de pedra e me sento na extremidade mais alta. O tigre continua avançando lentamente. Seu corpo é branco, com listras de um amarelo-vibrante. O tigre não é de pedra. Subitamente um rapaz de cabelos longos atravessa o enquadramento. Quando percebe a presença do tigre, está próximo demais. Pânico. Ele tenta proteger-se atrás da perna da mulher de pedra. O tigre salta sobre ele, as garras rasgam-lhe a carne. Nenhum grito. Apenas a visão do terror em seus olhos, que refletem o intenso azul do céu. A mulher de pedra arranca a faca enfiada em sua testa e a lança em direção à cabeça do tigre. A faca de pedra atinge a testa do tigre, num ponto exato entre os dois olhos. O tigre tomba. Olho em direção à mulher de pedra e só então percebo que ela possui asas. A mulher de pedra, na verdade, é um anjo. O anjo de pedra balança ferozmente as asas, levantando uma poeira branca e fina, que se espalha por toda a praça. A poeira fere meus olhos e me faz despertar da letargia em que me encontrava. Desço apressado da coluna dorsal da baleia de pedra e suspendo nos braços o corpo dilacerado do rapaz de cabelos longos. Ele ainda está vivo. Atravesso a praça de pedra e entro no saguão do hotel. Mais de uma dezena de médicos, todos vestidos com camisas, calças e sapatos brancos, esparrama-se nos quatro sofás do saguão, dispostos em um retângulo. Atravesso o saguão e levo o corpo dilacerado do rapaz e cabelos longos até um amplo salão, nos fundos, à esquerda. O amplo salão, nos fundos, à esquerda, é um Pronto-Socorro. Acomodo com cuidado o corpo dilacerado do rapaz de cabelos longos em uma maca. Um médico se aproxima, examina o corpo dilacerado com uma frieza espantosa: Está muito machucada, mas ficará boa. Machucada? Boa? Desnorteado, sento-me em um banco de madeira na sala de espera. Um médico de cabelos ruivos sobe as escadarias. É um grande amigo. Militamos juntos no movimento estudantil em Londrina. Corro até ele e peço que examine meu amigo, que foi atacado por um tigre. Ele diz para eu aguardar na sala ao lado. Uma sala branca, cimento bruto nas paredes e apenas uma caixa de concreto no centro. Levanto a tampa da caixa de concreto e deparo com uma perna, um pedaço de braço e uma massa de carne no interior. Abro com as mãos a massa de carne, como se estivesse mexendo em um bife, e vejo um tubo bem fino, uns quinze centímetros de comprimento, entranhado naquela massa de carne muito vermelha, de um vermelho-vivo. Recoloco a massa de carne no interior da caixa de concreto e a fecho com a tampa. O médico de cabelos ruivos, meu amigo de militância estudantil, atravessa a sala: Ela está bem machucada. Perdeu um pedaço do intestino. Uns quinze centímetros. É o ferimento mais grave. Mas com um pouco de sorte e perícia cirúrgica, ela ficará boa. Ela? Machucada? Boa? Abraço meu amigo de militância estudantil, agradeço sua atenção e volto para o saguão do hotel. Atravesso as grossas portas de vidro fumê e sou imediatamente envolvido por uma densa escuridão. Vejo minha amiga entrando em uma limusine preta. Corro até ela.

Conseguiu a cocaína?

Não. Fica pra outra. Estou voando para o aeroporto. Embarco para o Japão em menos de uma hora.

E meus quarenta reais?

Estão aqui. Desculpe.

Minha amiga fecha a porta e a limusine arranca a toda velocidade. Ela é minha amiga, mas não lembro quem é ela.

Talvez eu não saiba mais sequer quem sou eu.

PONTE AÉREA

Eu estava sentado no saguão do aeroporto Santos Dumont lendo o cartum do Angeli na Folha de São Paulo quando.

Que bunda! Que peitos! Que boca!

Ela cruzou o saguão apressada, quase correndo, em direção ao balcão da Vasp. Mesmo apressada, quase correndo, olhou meio de lado e pensou: Uhn, que negão gostoso!

O cartum do Angeli era engraçado. Eu era engraçado, a atendente da Vasp era engraçada, a palmeira imperial no jardim diante do aeroporto era engraçada, Deus era engraçado. Todos possuíam algo indefinível, indecifrável, incomunicável, que os tornavam engraçados.

No primeiro quadrinho do cartum do Angeli aparecia o Presidente da República Fernando Henrique Cardoso olhando com um binóculo através da janela do Palácio do Planalto e perguntando a um assessor baixinho postado ao seu lado como uma bananeira tropicalista: Quem é aquele ali, no meio da multidão, fazendo aquele discurso tão contundente contra a Política Econômica do Governo?

No segundo quadrinho o assessor baixinho respondia ao Presidente da República Fernando Henrique Cardoso: É o senhor 30 anos atrás.

Eu estava ligeiramente feliz por estar no saguão do aeroporto Santos Dumont aguardando a hora do embarque. Eu estava ligeiramente feliz não exatamente por estar no saguão do aeroporto Santos Dumont aguardando a hora do embarque, mas por estar viajando a São Paulo para conceder uma entrevista ao programa de TV Letra Viva.

Letra Viva era um programa de entrevistas com escritores. Um programa muito respeitado. Um programa com fama de só colocar no ar bons escritores. Eu era um bom escritor — era o que a crítica dizia. Um talento promissor. Fiquem de olho nele — a crítica pontificava.

Eu estava ligeiramente feliz e meio doido. Eu estava ligeiramente feliz por estar viajando à São Paulo para conceder uma entrevista ao programa Letra Viva e meio doido por ter fumado um baseado enorme antes de sair do apartamento.

O baseado era tão forte que parecia haxixe.

Eu tentava ler as notícias políticas da Folha de São Paulo mas não conseguia chegar até o fim de frase alguma.

O Ministro Pedro Malan anunciou ontem que o Real não sofrerá nenhuma desvalorização diante da fuga de capitais dos últimos dias. Eu estava tão doido que antes de chegar ao fim da frase já esquecera o começo.

Eu pulava de notícia em notícia e virava as páginas sem conseguir deter a atenção em nada.

Eu pensava três quatro e até mesmo cinco coisas ao mesmo tempo e não conseguia terminar as frases do noticiário político.

Eu pensava nos peitos e na bunda da garota morena da noite passada enquanto lia a notícia de que o ministro Pedro Malan não sofreria nenhuma desvalorização de capitais diante da fuga do Real dos últimos dias.

Eu pensava nos peitos e na bunda da garota morena e não estava minimamente interessado em ministro Pedro Malan, nem em desvalorizações, nem em fuga de Real nem em fuga de preso algum, fosse lá quem fosse.

Eu estava no saguão do aeroporto Santos Dumont, ligeiramente feliz e meio doido, com a Folha de São Paulo dobrada no colo, tentando lembrar cada detalhe da noite anterior, quando.

Que bunda! Que peitos! Que boca!

Eu lembrava bem daquele rosto moreno, os cabelos encaracolados, os lábios carnudos, os olhos verdes, mas lembrava mais ainda daqueles peitos, daquela bunda, daquela xota.

Eu estava de pau duro lembrando daquela morena, sentado no saguão do aeroporto Santos Dumont, ligeiramente feliz e meio doido.

Eu lembrava daquela morena mas não conseguia lembrar o nome dela. Não conseguia lembrar o nome dela mas lembrava bem quando ela se virou de costas e jogou os cabelos de lado, mostrando a nuca.

Eu estava sentado no saguão do aeroporto Santos Dumont, ligeiramente feliz, meio doido e de pau duro, lembrando que estava louco para comer seu cu (não o seu, leitor amigo, mas o dela) quando de repente ela foi levantando a bunda e ficou de quatro e pediu: Mete em mim, meu querido, mete, mete, Mete seu pau bem no fundo do meu cu, eu quero sentir seu pau me arrombando, me fode pelo amor de Deus, me arrebenta, me arromba, eu quero me sentir violentada, eu quero me sentir arrombada, eu quero sentir o seu pau enorme abrindo meu corpo, aaaaahhhhhh, aaaaaaaaaahhhhhhhhhhhh, aaaaaaaaaaaaaahhhhhhhhhh, que pau delicioso, que pau enorme, aaaaaaaaaaaaaaaaaaaahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh, isso, mete, mete, enfia mais, mete tudo, me arrebenta, me come, hhhhhuuuummmm, hhhhhhhhhhhuuuuuuuuuuuuuummmmmmmmmmmmmmm, hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu
mmmmmmmmmmmmmmmmmmm mmmmmmmmmmmm.

Eu estava no saguão do aeroporto Santos Dumont, ligeiramente feliz e meio doido, com a Folha de São Paulo dobrada no colo, de pau duro, tentando lembrar cada detalhe da noite anterior e pensando que se algum dia um escritor maluco tentasse reproduzir aqueles gemidos ficaria parecendo história em quadrinhos. Imagine, quem escreveria aaaaahhhhhh, aaaaaaaaaahhhhhhhhhhhh, aaaaaaaaaaaaaahhhhhhhhhh, aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh, hhhhhuuuummmm, hhhhhhhhhhhuuuuuuuuuuuuuummmmmmmmmmmmmmmm, hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuum mmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm? Só mesmo um desses tarados que os críticos chamam de pós-modernos.

Eu estava no saguão do aeroporto Santos Dumont, ligeiramente feliz e meio doido, com a Folha de São Paulo dobrada no colo, de pau duro, tentando lembrar cada detalhe da noite anterior, quando.

Ela não estava mais apressada, quase correndo.

Ela atravessou o saguão do aeroporto Santos Dumont em câmera lenta e sentou-se na cadeira ao lado.

Ela era algo entre a Sabedoria e a Luxúria.

A Sabedoria vestia uma blusinha vermelha, colada ao corpo e estava sem sutiã.

A Sabedoria vestia uma calça preta colada ao corpo e estava com uma calcinha bem pequena, entrando na bunda.

A Sabedoria tinha coxas de ébano e bunda de madrepérola.

A Sabedoria estava com um cigarro na boca e remexia na bolsa preta à procura de alguma coisa.

Eu estava no saguão do aeroporto Santos Dumont, ligeiramente feliz e meio doido, com a Folha de São Paulo dobrada no colo, de pau duro, quando a Luxúria virou lentamente a cabeça para o lado direito.

Eu pensava o que responderia quando a Luxúria abrisse aqueles lábios maravilhosos, talhados pelo bisturi de Deus, e perguntasse.

Eu não fazia a menor idéia sobre o que a Luxúria perguntaria, mas certamente a Luxúria perguntaria algo.

Eu imaginava que a Luxúria era uma Deusa do Sexo e do Amor, o Casamento do Céu e do Inferno, uma Druida capaz de ler os augúrios nos espasmos do Gozo Supremo, uma Sacerdotisa Tântrica conhecedora de todos os caminhos que levam ao Palácio do Prazer, uma Sereia capaz de seduzir todos os tripulantes da Nau de Ulisses.

A Luxúria virou lentamente a cabeça para o lado direito e disse: Meu pai morreu há cinco dias.

O pau de Eu amoleceu na hora.

Antes que Eu pudesse responder qualquer coisa Ela disse: Era professor de Português. Feríssima em gramática. Não se tornou milionário mas ganhou um bom dinheiro fazendo um programa na televisão com dicas sobre a nossa língua portuguesa e prestando consultoria para executivos de multinacionais.

Antes que Eu pudesse dizer qualquer palavra de conforto Ela tirou um livro de dentro da bolsa.

Está muito pesado. Você pode segurá-lo para mim enquanto vou ao toilette?

Antes que Eu pudesse responder, Ela depositou o livro em seu colo e partiu em direção ao toilette.

Eu parecia mergulhado em um estado de letargia. Era como se uma bruma fina flutuasse diante de seus olhos, uma aglomeração de gases azuis e brancos, turvando as imagens da realidade que chegavam até sua retina.

Eu não sabia ao certo se aquela sensação estranha era provocada pelo efeito do baseado ainda ativo em seus neurônios ou pela aparição daquela mulher magnífica, daquela figura mítica, algo entre a Sabedoria e a Luxúria.

Eu poderia jurar que seu rosto irradiava uma luminosidade jamais vislumbrada por nenhuma criatura, nem pelas sacerdotisas egípcias dos cultos de Osíris, nem pelos xamãs siberianos, acostumados a fenômenos estranhos, nem pelos mais experientes mestres do bramanismo, quanto mais por aqueles pobres seres mortais, hipócritas e mesquinhos, que mantinham suas bundas grudadas nos assentos ao redor, aguardando o anúncio do embarque.

Sentindo-se, ele mesmo, um ser especial, uma criação inigualável da hierarquia mais elevada dos arcanjos, uma figura mítica, Ícaro, talvez Narciso ou mesmo um Humphrey Bogart qualquer, Eu baixou os olhos e leu na capa do livro pousado em seu colo: O Poder do Mito — Joseph Campbell.

Um tanto displicente, certo de que nenhuma palavra daquele livro pudesse revelar algo que ele desconhecesse, ele, conhecedor dos segredos e poderes de todas as palavras já pronunciadas, Eu abriu em uma página ao acaso e leu: Há uma história maravilhosa sobre o deus da Identidade, que disse: "Eu sou". E assim que disse "Eu sou", teve medo. Porque passou a ser uma entidade no tempo. Então pensou: "De que eu poderia ter medo se sou a única coisa que existe?" E assim que o disse, sentiu-se solitário, e quis que houvesse outro ali, e então sentiu desejo. Aí cindiu-se, dividiu-se em dois, tornou-se macho e fêmea, e originou-se o mundo.

*

(Capítulo inicial da novela Adorável Criatura Frankenstein, de Ademir Assunção, publicada na coleção Lê Prosa, da Ateliê Editorial.)

*

Leia também ensaio sobre o autor

*

 

retornar <<<

[ ZUNÁI- 2003 - 2005 ]