ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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 SHU WANG


 

 

UMA VELHA HISTÓRIA

 

Desde que Pan Gu criou o mundo

Só deixou um punhado de loess infértil

À mãe que com o seu seio mirrado

Aleitou a cultura do dragão

Ao longo do Rio Amarelo

Vagas ressequidas vão para Ocidente

Ainda abandonam no deserto de Gobi

Alucinados camelos sequiosos

Que parecem ter visto demônios

Dunas que esboçam cinturas nuas

O sol exausto já não pode puxar a roda

Apenas a serpente, gárrula e erudita

Faz perguntas de assombrar, uma após outra

Prégando incessantemente para o deserto

A história antiga ao fio dos séculos repetida.

 

 

 

TERRA NATAL

 

Um corvo em ferro fundido de olhos cegos

Voando sobre o lúgubre rio lodoso

 

Um caule quebrado de artemísia absinto

Caindo na fenda da húmida falésia

 

Um velho, carregando o seu declínio

Arquejante sobe a íngreme encosta de loess

 

No seu peito aberto sopra o seco vento Noroeste

De súbito ignora o sonolento sol poente e grita:

 

“Oh, eh! ………ai!!! Minha terra!

Minha terra natal, onde é que isso fica?”

 

 

 

 

 

 

NOITE EM DUNHUANG

 

Do nicho escuro da Gruta de Mogao

Eis o bosque tremulante de faias negras

Véus que esvoaçam sobre espáduas

Varrendo as dunas nuas ondulantes

Leves como sementes de dente-de-leão

Deixam um feixe brilhante de rabos-de-égua

Em silêncio pespontam a quietude do ermo

O vento no planalto rezinga como um alaúde

Incita a branca lua a derramar o seu ímpeto

A deusa da liberdade nada tem que temer

Do alto céu ela mergulha no rio do amor

Inebria-se na luz esplêndida das estrelas

Canta e dança arrebatada pelo sonho

Enche o mundo inteiro de ternas emoções

Como água pura fluindo suavemente.

 

 

SEGREDO DE MULHER

 

O dia é talvez um enigma

Mais sedutor ainda do que a noite

Tempo houve em que eram dez os sóis

Que eu saiba nunca existiram dez luas

Mas tudo se pode achar numa mulher

Não somente dez sóis

Mas dez luas também

 

Ela tem um par de suaves tesouras

Recorta os sóis indesejados

Há luz que baste no único sol que fica

Calor de sobra dos nove outros sóis

Que o corpo dela agora encerra

Corta então a lua em trinta partes

Por isso esse astro nocturno da mulher

Em suas faces mostra júbilo e tristeza

Plenitude e decadência.

 

 

PENSANDO NOS PEREGRINOS

 

O vasto negrume

Que se ergue na frente deles

Rasgando o véu do crepúsculo

Não oculta

A vida e a morte

Tão perto

Cumprem os seus papéis

De piedade

Uma longa fila

Outra longa fila

Elo e corrente

Tilintando, tilintando

Interminável muro de ferro

Nunca param

Os passos do velho

E dos seus seguidores

Mães

Filhos

Netos

O espírito ancestral

É ignição

Do corpo em chamas

Flama

Que ilumina as almas límpidas

Nuvens rebentando em estrondo

Debaixo dos pés

Em redor montanhas e falésias

Lajes unindo o fundo das águas

Ao topo dos altos céus

Mãos e pés rastejam e alastram

Formando uma palavra imensa

Agarrada à rocha fria

Como o rasteiro pinho siberiano

Ali medra essa raiz retorcida

Vigorosamente  entranhada

Abraçando o duro chão.

 

 

I

 

A ÁGUA E O FOGO

 

O mar e o canto dos pescadores

Ao vento pertencem na Terra do Sul

Réplica do dia ao luar da meia-noite

                       tão terno e delicado

Por obra e graça da água

— Água, domínio da mulher.

 

Mas há ainda as outras mulheres

Que não são pertença da água

Mas da agonia do vento do Noroeste

        esculpindo o perfil do planalto

Fazem parte do fogo seco

Cujo tributo são cinzas.

 

 

II

 

MEMÓRIAS DISPERSAS

 

Quando eu era menina saltava

Da morna beira do meu leito-estufa

Só possuía um estilhaço de espelho

Por mais que me esforçasse não podia

Ver o meu corpo dos pés à cabeça

Não importa que seja feia ou bela

A tua imagem está destinada

À cama de lama do Rio Amarelo

Tal como a floresta e as colinas

               fitando o lago secreto

Não cheguei a saber que eu mesma

               era também paisagem

A vara de pesca da minha saudade

Ainda se prende nos anéis do meu cabelo

           e com eles reata os dias desfeitos

Há um cheiro a cordeiros na terra

E a paz dos ninhos no alto choupo gelado

 

 

 

III

 

O CHAPÉU DE PALHA PERDIDO

 

Mãe, onde está o meu chapéu de palha?

 

_Alguém o viu no vale desolado

  Suspirando no vento.

 

Perto, longe

Longe e perto

 

O maligno turbilhão do vento  

Rodopia e silva como pião louco

Para os infernos arrasta o triste sol

 

Mãe, onde está o meu chapéu de palha?

 

— Vê, ainda lá está, onde o vento do Noroeste

  Fustiga a camisa de noite da planície nua

 

Zune e aquieta-se

Aquieta-se e zune

 

E quem é aquele que acordou

E das trevas nevoentas

Empunha o estandarte guerreiro

                   do dragão amarelo?

    

 

BALADAS

 

I

 

Esvai-se o tilintar da caravana

Cada pegada imprime a cada passo

A forma de uma moeda de oiro ou prata

Na marca de uma ferradura quebrada

Ainda guardada na memória do loess

Um par de sapatos de algodão agoniza

Deixa o seco rasto de uma imagem

Traçando em círculo no dédalo de pedra

Inúmeros padrões desordenados

Curvos no denso azul das sombras

Trespassando a parede oca

Negativos de um filme eikon

Ostentam o poder das aparências

No cintilar das estrelas

No rouco canto popular

No odor das batatas assando nas brasas

 

II

 

Juntámo-nos no pórtico

Quando o rio transbordou

Nivelando homens e mulheres

Aniquilando a infância

No rumor da água lamacenta

Contemos os peões

Que serviram para remendar o céu

A escada de madeira da nossa memória

Tem no topo um macio ninho de pássaros

Pássaros que já voaram para longe

Os ninhos que ficaram abandonados

Lembram bolos de milho ressequidos

Se nessa hora fosses Fu Xi o mítico Senhor

E eu Nu Wa a Deusa que remenda o céu

Quando o rio transbordasse

Só poderíamos representar papéis

De serpentes encantadas

 

III

 

Quando sopra o vento do Noroeste

Relembro a braseira

Sob os panos tradicionais da avó

O carvão ardente já não crepita

Mas fitando o chá na sua taça

Subsiste nele a cor de âmbar fóssil

Só a paixão morre como a balsamina rubra

Que se arrasta nas velhas baladas

Como a azálea que ilumina os olhos

Cintilantes dos fantasmas ressentidos

Olhos como manancial de vinho Jiu Quan

De onde jorra um punhado de areia amarela

Quando os dias de pranto se prolongam

Apanho então mãos cheias de neve morna

E limpo gotas de sangue

No canto dos olhos dos meus irmãos.

 

 

SOMBRA DE VELA EM ÁGUA BRANCA

 

Um sonho, um feitiço, dolente entardecer

Na planura esmorecem baladas de verso branco

Desato os cabelos flutuando na torrente

Ajustando o ritmo ao fremir da montanha

O perfil do navio sulca a linha do crepúsculo

Tece uma grinalda para a vela invertida

Funde-a nas sombras do Rio do Esquecimento

 

Assim nós mostramos a mesma postura

Enfeitamos o arco-íris com os membros rígidos

Longos braços de macaco hirtos no instante

A margem do rio evoca a lenda de um deus nu

Talvez a viagem aos tempos idos recomece

Nuvens rubras pintam de sangue a borda do navio

E o mastro pontiagudo atiça o sufocante poente

 

Assim efabulamos sob a vela vermelha

Reproduzimos imagens do caos primevo

                                    na luz de fundo

Ou expiramos nevoeiro e exsudamos suor

O corpo ressumando um lodoso riacho

                        uma torrente de vasa

A faísca do trovão no dealbar da vida

Queimou o submerso mundo da pré-história

Mói as almas que sonham contra o leito de rocha

 

Preferíamos talvez um lago calmo como um espelho

Trevas verde-profundo em vez de sereno céu azul

Encerrando ao mesmo tempo a maré lodosa

                            e a sangrenta catástrofe

Mas tudo o que apodrece será lavado e sedimentado

Só a plúmbea quietude não pode ser corrompida

Some a escura fita cor de cinza sobre as águas

O poente perde sonhos nostálgicos aos cachos.                                   

 

 

A NOITE BRANCA

 

De novo a noite é branca

Apaguei as cores que tinha registado

Memórias que esmorecem como flocos de neve

 

O nardo crepuscular trepa o alpendre

Suspensa da velha haste de bambu

Abriga-se uma aranha negra

 

Sonhos de Verão nas Terras do Sul

Mal aparecem se esfumam

Amargura que é o avesso da doçura

 

As janelas aceitam o beijo gelado

A neve esculpe-as, pupilas dilatadas

Fixando o reino dos sonhos

 

No mais fundo do meu coração

Ergue-se um palácio de gelo

O único que não fica a Norte

 

Ramos secos da acácia flamejante

Exasperam o sangrar rubro do sol

Simulacro ardente do desejo

 

Fúria do rio no reino das quimeras

Ramos de salgueiro pendem sobre as ondas

Sobre os nenúfares gémeos de cada onda

 

Vão anchovas coloridas deslizando

Caudas ondulantes, esquerda, direita

Puro e doce vinho doirado cintilante

 

Já o Norte não é o Norte agora

A noite branca transformou-se em rio

O meu sonho é um bilhete de navio

                       para ontem à noite.

 

 

 

O PESQUISADOR DE OURO DO DESERTO

 

Palavras negras em papel branco

Selos estampados em papel amarelo

Se és rico podes comprar um rolo de seda

Se és pobre só podes comprar uma peça de roupa

Se estás vivo, podes olhar para uma rapariga

Se estás morto, podes assombrar os  sonhos

                                                  e fazer um pedido.

 

Folclore do Noroeste

 

I

 

O vento rasteja, varre o deserto imenso

A tempestade bate o sol poente

Como um gongo de bronze

Repercutindo a Ocidente no crepúsculo

Desfaz em poeira de oiro sobre os montes

O núcleo amarelo do ovo cósmico

Do tumulto do magma primordial

Não se perdeu a rescendente sedução

A frescura do corpo de uma virgem nua

Manso lacrimejar de afecto em órbitas sequiosas

Mãos erguidas ao céu desatinadas

Dos cumes da velha montanha KunLun

E da antiquíssima montanha Qilian

Eleva-se de impulso uma rajada púrpura

Os pais incestuosos e as filhas

Efabulam o conto Quarenta Dias de Dilúvio

O qual encerra a casta virgindade delas

E o ressonar trovejante dos seus pais.

 

II

 

Pás, uma após outra

Altas, empinadas no deserto

São lápides fúnebres temporárias

Sem o nome gravado dos defuntos

Sem ano nem mês nem dia inscritos

Carne e sangue sob a areia

Todos destinados a ser múmias

Olhos que fitam gananciosos

A palma da mão dos companheiros

Firmemente agarrando o nada

Unhas crescendo ensandecidas

Patenteiam que os mortos solitários

No escuro ainda buscam areia de oiro

 

Emergem ossadas na crista das dunas

As pás enferrujadas incontáveis

Uma após outra vão caindo

Flechas de um arco tortuoso

Apontam em direcção ao Oriente

Onde o sol se erguerá

Sobre dunas de areia assombrosas

Como se o seio imortal da serrania

Traçasse um inquietante dédalo

 

 

III

 

Estão mortos os camelos e as mulas

O invertido busca refúgio nas grutas de Buda

Pintadas com as inúmeras Vidas Anteriores

Que o sol ilumina em misteriosos matizes

A Terra Pura surge quando menos esperas

Faces morenas de bigode, talha de luz doirada

Homens que repetem jogos imorais

Ou apostam nas fitas esvoaçantes

Das deusas menores, as Devatas

Há que suprimir o sexo do ofertante

Um  feroz e ambicioso homem

 

Talvez aqui não exista nada

Nem grutas nem perversões

Nem esplendoroso entardecer

Nem o odor das axilas

Nem sequer há ouro aqui

No sangue do jovem pesquisador

Apenas vapores do vinho da ambição

Num pesadelo gélido

Desenterra ouro como feijões

Eleva as mãos aos altos céus

Como a multidão de hipócritas na cidade

Para subornar o guarda do paraíso

Insolente é o seu riso de escárnio

Quando furtivamente beija

As quatro mulheres que Alá lhe concedeu

 

E agora não irá a lado nenhum

Mesmo que deva morrer uma vez mais

Quer morrer dissoluto e jubiloso

Por favor contem a história derradeira

              do pesquisador de ouro

À linda moça de nome Ayisha lá da aldeia

Digam-lhe que não espere mais por ele

Ela é agora a prometida de um morto

A gente do povo arrasta-se para o inferno

Reza, Ayisha, implora as bênçãos de Alá.

 

 

 

Tradução: Fernanda Dias

 

 

A tradutora agradece à da. Stella Lee Shuk Yee pelo constante apoio e paciente revisão, e ao ilustre poeta Gao Ge pelos preciosos e esclarecedores conselhos.

 



 

*

Shu Wang é o nome literário de Liu Yu Lian. Em Macau, fez parte dos encontros Poemas de Maio. Preside a editora Poesia Moderna de Macau. Coordenou as antologias poéticas Dream Back to Love, de Gao Ge, e Wonderful Ideas in the Mirror Sea, da autoria de cinco poetas da nova geração de Macau. Fez estudos nas seguintes instituições: Universidade de Lanzhou; Universidade de Wuhan; Universidade Xiamen; Instituto de Literatura da China; Academia de Ciências Sociais. Doutoramento na  Universidade de JinNan. Pos-graduação na Universidade de Nanjing.

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