ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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 ÉMILE NELLIGAN



ÉMILE NELLIGAN

 

 

SERENATA TRISTE

 

Tais lágrimas d’ouro que do meu coração goteiam,

Folhas de minhas alegrias, todas, todas tombais.

 

Tombais no jardim de sonho para o qual vou,

Ao qual vou, cabelos ao vento dos piores dias.

 

Tombais daquela íntima árvore branca, abatida

Ao acaso, num ínfimo ponto da aléia das estátuas.

 

Cor de dias antigos, de minhas roupas de infância,

Quando os ventos d’outono soavam o olifante.

 

E tombais sempiternamente, mesclando agonias,

Tombais, entrecasando, pálidas, harmonias.

 

Caístes na alvorada à ranhura dos caminhos,

Chorais de meus olhos, tombais de mãos minhas.

 

Tais as lágrimas d’ouro que do meu coração goteiam,

Folhas das minhas alegrias, todas, todas tombais.

 

 

O ROMANCE DO VINHO

 

Tudo se confunde numa explosão de verde alegria.

Oh, a bela noite de maio! Em coro todos os pássaros.

E também no meu coração as esperanças de outrora

Modulam o seu prelúdio à minha aberta cruzada.

 

Oh, a bela noite de maio! A alegre noite de maio!

Um órgão ao longe arremete em melopéias frias

E os raios, assim como as espadas purpúreas,

Trespassam o coração do dia que morre odorífero.

 

Sou feliz! Feliz! Neste cristal que canta,

Versa, versa o vinho! Versa agora e sempre

A que eu possa esquecer a tristeza dos dias

No desprezo que tenho à turba maldita!

 

Sou feliz! Feliz! Viva o vinho e a Arte!…

Tenho ainda o sonho de fazer versos célebres,

Versos que gemerão músicas fúnebres

De ventos de outono que se perdem por brumas.

 

É o reino do riso amargo e da raiva

De saber-se poeta e objeto de derrisão,

De saber-se um coração e não ser entendido

Afora pelo luar e os grandes céus de trovão!

 

Mulheres! Bebo a vós que rides pelo caminho

Onde o Ideal me chama e abre os braços róseos;

Bebo a vós, homens, e mais, a vosso ar moroso,

Que desdenhais minha vida e me recusais a mão!

 

Enquanto todo o azul se estrela em glória

E que um hino entoa a repetição dourada,

Sobre o dia que, entanto, expira, não chorei,

Eu, que a minha negra mocidade tenteio!

 

Sou feliz! Feliz! Viva a noite de maio!

Sou loucamente feliz e não estou bêbado!…

Estarei feliz, por fim, por sentir-me vivo

E sarado o meu coração, depois de haver amado?

 

Cantaram os sinos; é o vento noturno, cheiroso.

E enquanto o vinho escorre em tragos vivazes,

Sou tão feliz, feliz, em meu rir sonoro,

Ah! Tão feliz, que temo estourar em choro.

 

 

 

O RECITAL DOS ANJOS

 

Cheio de saudoso spleen e de sonhos estranhos,

Uma noite dirigi-me à Santa adorada,

Em cujo lar se oferecia, na sala do empíreo,

Para a festa dos céus, o recital dos anjos.

 

E, nâo se opondo ninguém a essa livre entrada,

Fui, vestido com uma túnica de franjas,

Pela noite em que me dirigi à Santa adorada,

Cheio de saudoso spleen e de sonhos estranhos.

 

Damas desfilavam sob claridades laranja;

Os celestes lacaios portavam altas librés; 

E, com a minha presença de acordo Cecília,

Escutei o concerto que às divinas falanges

 

Lá no alto tocava, e seus ritmos estranhos…

 

 

Traduções: Horácio Costa



 

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Émile Nelligan nasceu em Montreal (Canadá), em 1879. Sofreu um colapso psicótico na juventude, vivendo num hospital psiquiátrico por mais de quarenta anos. Toda a sua obra foi produzida entre 1896 e 1899, mas apenas 23 dos seus poemas foram publicados antes de perder a razão. No filme La Face Cachée de La Lune, o ator Robert Lepage lê um poema do autor canadense, que retrata a sua obsessão pela mãe. Faleceu em 1941.

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