ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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 DINO CAMPANA


 

 

BATE O BOTE

 

No navio

Que rebola,

Com os barcos com quem choca

De uma aurora

Sobre a proa

Brilha um olho

Incandescente:

(O meu passo

Solitário

Bebe a sombra

Pelo cais)

Dentre as luzes

Uniformes

Dos navios

Até a cidade

Só esse passo

Que na noite

Solitário

Repercute

Pela noite

Dos navios

Solitário

Repercute:

Assim vasta

Tão ambígua

Pela noite

Assim tão pura!

A água ( O mar

(será que a exala?)

Dentre as rotas

Dentre as noites

Bate: cego

Pelas rotas

Dentre d´ olho

Desumano

Dessa noite

De um destino

Nessa noite

Mais ao longe

Pelas rotas

Dessa noite

O meu passo

Bate o bote.

 

 

 

                   

GÊNOVA

 

Depois que a nuvem  estancou nos céus

Ao longe sobre a tácita infinita

Marina  presa  nos longínquos véus,

E retornava  a ânima partida

Que tudo em volta dela já era arcana-

mente ilustrado  do jardim o  verde

Sonho na aparência sobrehumana

Das coruscantes estátuas suas soberbas:

E ouvi canto ouvi voz de poetas

Nas fontes e as esfinges nos frontões

Benignas um primeiro olvido aos pronos

Humanos pareceram dar: dos secretos

Dédalos sai: surgia branco no ar

Um torrear: inúmeros do mar

Pareceram os brancos sonhos das manhãs

Ao longe dispersando encadear

Como um ignoto turbilhar de som.

Entre as velas de espuma ouvia-se o som.

Pleno estava o sol de Maio.

 

*

 

Sob a torre oriental, nos terraços verdes na ardósia (lousa)

                                                                        [cinérea

Alastra-se a praça ao mar que adensa  os navios inexáusto

Ri o arcado palácio roxo do grande alpendre:

Como as cataratas do Niágara

Canta, ri, variega férrea a sinfonia fecunda urgente ao

                                                           [mar:

Gênova canta o teu canto!

Em uma gruta de porcelana

Sorvendo o café

Olhava da vidraça a multidão sair veloz

Entre as vendedeiras feito estátuas, estendendo ofertando

Frutos do mar com roucos gritos esbatendo deslizando

Sobre a balança imóvel:

Assim lembro-te ainda e vejo-te imperial

Subindo tumultuosa a ladeira

Rumo à porta descerrada

Contra o azul da tarde

Fantástica de troféus

Míticos por entre as torres nuas no sereno,

Agarrada a ti em volta

A febre da pristina

Vida: e pelos becos lúbricos de fanais o canto

Estornelado das putas

E vindo do fundo  o vento do mar sem pausa.

 

*

 Pelos becos marinhos na tarde

Ambígua empurrava o vento entre os fanais

Prelúdios do emaranhado dos navios:

Os palácios marinhos tinham brancos

Arabescos na sombra enlanguecida

E íamos eu a tarde ambígua:

E eu erguia os olhos para os mil

E mil e mil olhos benévolos

Das Quimeras nos céus . . . . . . . . . .

Quando,

Melodiosamente

De alto sal, o vento como branca fingiu uma visão de Graça

Como do suceder-se infatigável

De nuvens e de estrêlas dentro do céu noturno

Dentro do beco marinho  em alto sobe,

Dentro do beco que roxas alto eleva

Marinho as asas roxas dos fanais

Arabescavam a sombra enlanguecida,

Que no beco marinho no alto sobe

Que branca e leve e quérula subiu!

“Como nas asas roxas dos fanais

Branca e roxa na sombra do fanal

Que branca e leve e trêmula subiu...”

Já agora no roxo do fanal

Já era a sombra fatigosamente

Branca

Branca quando no roxo do fanal

Branca  afastada fatigosamente

O eco atônito riu de um riso

Irreal: e que o eco fatigosamente

E branco e leve e atônito subiu...

Já em toda a volta

Luzia a tarde ambígua:

Pulsavan os fanais

O palpitar na sombra.

Ruiam ao longe ruídos

Em solenes silêncios

E perguntavam se do mar

O riso não subia...

E perguntavam se o ouvia

Infatigavelmente

A tarde: no suceder-se

De nuvens lá no alto

Dentro do céu estrelar.

 

*

 

 

No porto  pousa o batel

No crepúsculo que brilha

Nas árvores quietas de frutos de luz,

Na paisagem mítica

De navios no seio do infinito

Na noite

Cálida de alegria, luzindo

Num grande num grande velário

De diamantes estendido no crepúsculo,

Em mil e mil diamantes em um grande velário vivo

O batel descarrega

Rangendo ininterruptamente,

Atroa incansavelmente

E a bandeira amainou e o mar e o céu é de ouro e no molhe

Correm as crianças e gritam

Com gritos de felicidade.

Já aventuram-se aos bandos

Os viajadores à cidade trovejante

Que estende suas praças e suas ruas:

A grande luz mediterrânea

Fundiu-se em pedra e cinzas:

Pelos antigos becos e profundos

Rumor de vida, alegria intensa e fugaz:

Velário d’ouro de felicidade

É o céu onde o sol riquíssimo

Deixou seus despojos preciosos:

E a cidade compreende

E se acende

E a chama titila e absorve

Os restos magnificentes do sol,

E entretece um sudário de olvido

Divino para os homens cansados.

Perdidas no crepúsculo toante

Sombras de viajantes

Vão pela Soberba

Terríveis e grotescos como  os cegos.

 

*

 

Vasto,  dentro de odor tênue esmorecido

De alcatrão, velado pelas luas

Elétricas, no mar que mal se mexe

O vasto porto adormece.

Alça-se a nuvem das chaminés

Enquanto o porto em um doce chiar

De cordas adormece: e que a força

Dorme, dorme que embala a tristeza

Inconsciente das coisas que serão

E o vasto porto oscila em um ritmo

Fatigado e  se sente

A nuvem que se forma pelo vômito silente.

 

*

 

Ò siciliana proterva opulenta matrona

Às janelas ventosas do beco marinheiro

No seio da cidade sovada de sons de navios e de carros

Clássica mediterrânea fêmea dos portos:

Pelos róseos cinzas da cidade de ardósia

Soavam os clamores vespertinos

E depois mais quietos os ruídos dentro da noite serena:

Via às janelas brilhando como estrelas

Passar as sombras das famílias marinhas: e os cantos

Ouvia eu lentos e ambíguos nas veias da cidade mediterrânea:

Pois era a noite funda.

Enquanto tu, siciliana, dos vidros

Côncavos em um jogo torto

A sombra oca  e a luz vacilante

Ò siciliana, nas tetas

A sombra encerrada eras tu

O polvo das noites mediterrâneas.

Rangia rangia rangia em suas correntes

O guindaste do porto no oco da noite serena:

E dentro do oco da noite serena

E nos braços de ferro

O débil coração batia em  um pulsar mais alto: tu

Tinhas a janela apagada:

Nua mística oca no alto

Infinitamente olhuda devastação era a noite tirrena.

 

Traduções: Aurora Bernardini



 

*

Dino Campana (1885-1932), poeta italiano de estética próxima ao simbolismo. Sua vida foi tumultuada por numerosas viagens pela Europa e internações em hospitais psiquiátricos. Influenciou diversos poetas contemporâneos da Itália, como Montale e Caproni. Sua obra Cantos Órficos e Outros Poemas, prefaciada por Lucia Wataghin e traduzida por Aurora Bernardini, sairá pela editora Martins ainda neste ano.

*

 

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