ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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ADONIS

"Aproximaram-se os ginetes e gritaram para nós da margem: "Voltem, não tenham medo", mas eu nadei, e comigo o meu irmão pequeno. Eu me virava para ele para encorajá-lo, mas ele não me escutou e, levado pela confiança neles, temendo afundar, apressou-se em voltar em direção deles. Eu cruzei o Eufrates. Então abriram caminho para ele, confiante, foi aí que o decapitaram, eu o vi, um menino de treze anos. Voltei-me a mim mesmo: eu corria, e era como se voasse."

- Abderrahmán o Imigrante

(O Sacre de Coraix) 

 O SACRE

 

Entre a presa e o cavaleiro, ante meu rosto
vi repousarem as lanças, e meu corpo


descamba empurrado pela morte, e os ventos,


cadáveres pendentes, são-lhe elegia


e é como se o dia


empedrasse varando a vida
é como se o dia fosse


comboio de lágrimas


            muda o teu tom ó voz


            ouço a voz do Eufrates:

 

-       "Coraix...
cáfila rumo à Índia
a levar o fogo da glória"

... e o céu se deita sobre a ferida,     e as margens
murmuram  e s t e n d i d a s:
entre mim e as margens
há uma língua, há um diálogo
que as garças envolvem a rodearem-no   como velas
entre nós
            (ó Eufrates, une-me, cobre-me)
e eu desci fundo
            muda o teu tom ó voz, ouço a voz do Eufrates:
 

-       "Coraix...


pérola a incender em Damasco


entre olíbano e sândalo, mais fina


que as finezas do Líbano, mais bela


que os contos sobre Oriente..."

... e eu no vácuo dos gafanhotos, sob as nuvens feridas
sou pedra de asas mortas
sou pedra de plumas mortas
e a morte encilha cavalos
e a vítima
é um pelicano a debater-se
            muda o teu eco ó voz
            ouço a voz do Eufrates:

-       "Coraix...
só resta de Coraix
o sangue corredio como a lança
só resta a ferida."

Escancarai vossas portas de ferrugem, ó desertos, eu sou rei e
meu tributo é o espaço, o meu reino os meus passos


avanço  , rei, e ergo sobre o que venço


sobre o gelo de cepa,


sobre a teimosia


            o pilar da conquista

 

sei ferir a areia e, em suas fendas, plantar palmeiras


sei despertar o espaço morto


enquanto


o caminho desenrola os medos  e estreita

e é de espelhos o caminho
livros e espelhos
percorro seus ocos, perscruto, tateio restos
de cavaleiro amante dos passos
leio o passo, a erva,
a palmeira,
um certo   h   o   r   i   z   o   n   t   e

tecido   por curtos respiros            onde

o fogo não extingue
e não findam os passos


príncipes.

Acordei nas fendas
a apalpar os instantes
a sacudir os mamilos dos desertos
andei mais ágil que a flecha mais ágil
feri os feixes e o pó
e a terra estreitava mais que a sombra da minha lança - morri
ouvi o sibilar dos escorpiões, guiei as gangas no espaço ignoto -
morri, inclinei-me na terra em maior paciência que a própria terra - morri
derribei-me nos ombros do vento
e rezei
sussurrei até às pedras
e li as estrelas, tomei seus pontos
e apaguei-os
meu desejo a traçar um mapa
com meu sangue e as entranhas.

Sem dormir, entre a minha raiz e seus ramos, a água
a fluir,
e as ninfas a plenar a fronte
com flores secas e tumbas cândidas,
indo acima até as torres da transformação
onde o terror
onde a cinza destila
onde desperta o soluço e se apaga Simbad.

Se soubesse como o poeta mudar as estações
se soubesse conversar com as coisas
enfeitiçava a tumba do pequeno cavaleiro no Eufrates
a tumba do meu irmão na ribeira do Eufrates
(morreu sem bálsamos, sem enterro, sem orações)
e dizia às coisas e estações
juntai-vos como se junta o ar
estendei-me o Eufrates
verta a água verde como a oliva
no meu sangue enamorado, no meu tempo ancião.

Se soubesse como o poeta tomar as núpcias
das plantas,
cobria estas árvores nuas com crianças,
se soubesse como o poeta domar o insólito
fazia nuvem de cada pedra
para chover sobre a Síria e Eufrates,
se soubesse como o poeta mudar a hora da morte
se soubesse ser
profecia que adverte ou dá sinal
eu gritava nuvens
condensai-vos e chovei
em meu nome sobre a Síria e Eufrates
por Deus, nuvens...

Abriram-se os céus, e
da poeira
fizeram-se livros, e Deus estava em cada livro
sem dormir
pedra alguma dorme em meu rosto, miragem alguma retém o meu olho -
um sinal vem do Eufrates:
            sou aquele que habita em teu colar, ó pomba
em teu bando migratório, ó gaivão
sou aquele que como o adivinho
espalha seus signos e visões
                        no horizonte, em suas muitas línguas
eu sou o Eufrates e a Península.

Um sinal...
            devagar, minha saudade...
O Sacre no seco das veias, nas urbes dos pensamentos íntimos
o Sacre como halo gravado no portal da Península
e o Sacre saudoso e confuso entre o sonho e o pranto
e o Sacre em seu desespero criador, em seu labirinto,
ergue no cume, no fundo do fundo,
o Alandalus profundo
de Damasco a Ocidente o Alandalus
levando a colheita do Oriente.

O Sacre escreve ao espaço, desconhecido generoso,
a pedir-lhe um lugar, limpo como em suas veias.
O Sacre acena a outros sacres -
cansado, levam-no os dédalos, levam-no as rochas
e ele se inclina, a alimentar as rochas, a alimentar os dédalos,
rosto avante, o sol por encalço,
e o espaço
é fornalha,
e os ventos, velha a tecer seus contos,
e os sacres,
cortejo a abrir o céu.

Como se amante audacioso
juvenil de paixão audaz
ergue o Alandalus profundo
ergue-o para o Mundo - esse novo santuário
todo espaço em seu nome é livro
e todo vento em seu nome é hino.

(Criação em árabe por Adonis, primavera de 1962. Tradução de Michel Sleiman, verão de 2006)

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Adonis (Síria, 1930), pseudônimo de Ali Ahmad Said Isbir, é um dos renovadores da poesia árabe contemporânea. Poeta e professor, publicou os livros de ensaios Poética Árabe (1985) e A Palavra das Origens (1989), e os de poesia Cantos de Mihyâr, o Damasceno (1961), Homenagem às Escuras Coisas Claras (1988) e Índice das Ações do Vento (1998), entre outros.

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