ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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WELLINGTON DE MELO

 

 

 

 

18. MENINO MENINA

“The panic, the vomit.

The panic, the vomit.

God loves His children,

God loves His children, yeah!”

Thom Yorke

 

menino tua perna-borboleta-sahara teu sonho-milícia-amputação a lágrima-facão-mina menina teu sexo-náusea-primavera tua mutilação-rosa-quasímodo a lua-gilette-clitóris menino teu sorriso-coxa-alabastro teu lençol-inocência-caniço a carícia-pai-bestafera menina tua cabeça-almofada-catapulta teu suor-chão-matadouro a bala-seixo-columbine menino teu sorriso-balanço-labareda tua verdade-lírio-armagedom a nave-rochedo-tomahawk menina tua matrioska-crack-bordel teu pesadelo-cárcere-salvação a calma-planalto-cafetina menino menina menina menino eis meu destino eu-pós-fúria eu-pós-medo eu-pós-mim

 

2. ONDE

onde teu medo parede vigiada onde tua fúria fera engaiolada onde teu medo solidão sitiada onde tua fúria manhã mascarada onde teu medo desejo saciado onde tua fúria pânico alado onde teu medo só e metrificado onde tua fúria verso esfacelado onde está tua fúria de fim de semana fúria escondidinha no canto da sala fúria silenciada pelas vitrines pela campanha salarial pelo medo tua fúria beck na gaveta de mamãe  fúria bolinhas na festa hype aquela tua fúria cara-pintada onde é essa tua fúria é essa tua fúria é essa onde está teu medo de dizer nada teu medo de dizer sem verso sem metro teu medo encurralado pela fome pelo tudo-vai-ficar-bem pelo tapinha nas costas teu medo de dizer na cara teu medo de dizer agora onde é esse teu medo é esse teu medo é esse

 

5. MINHA FÚRIA

essa fúria não é nada domar o desejo do abismo essa fúria não é nada passar o fim de semana high essa fúria não é nada desejar feliz ano novo aos bêbados na praia essa fúria não é nada uma palavra na garganta sufocada essa fúria não é nada as colônias de bajuladores afogadas essa fúria não é nada é minha fúria ceifada pela esmola dos editais de cultura é minha fúria igual à fúria igual à fúria embalada no top 10 da mtv é minha fúria higienizada no jornal do brasil é minha fúria prét-à-porter para as baladinhas cabeça é minha fúria esfregada na cara dos alternativos classe média dos porraloucas classe a é minha fúria-legalize-já é minha fúria-maconha-de-grife é minha fúria-glamour-bossa-nova é minha fúria é minha fúria não é nada não é nada é minha fúria

 

 

8. ANTIQUÁRIO

guardo a fúria de todas as coisas do antiquário guardo a fúria do velho relógio da viúva cega guardo a fúria do portarretratos vazio da mãe do natimorto a fúria do abajur da primogênita do pedófilo guardo a fúria dos livros com dedicatórias esquecidas guardo a fúria dos jogos de chá que beberam a hipocrisia dos casarões açucarados do recife guardo a fúria da caneta tinteiro do traficante de órgãos a fúria da poeira sobre todos os cadáveres abandonados na penumbra do antiquário guardo a fúria das coisas que é a fúria do suicida a fúria de nunca mais voltar

 

9. DOIS TYGRES

pra não esquecer quem sou eu pesei minha experiência e plantei dois tygres em minha retina quando adormeço depois do jornal nacional depois da pizza de domingo depois do sorriso do meu filho atiço meus tygres de estimação eles me arranham o juízo mordem o tédio devoram o olho de meu pesadelo meus tygres meus companheiros a fúria e o medo

 

10. CRIA CORVOS

é pesado o medo é pesado você acaricia o seu a cada manhã no espelho alimenta-o lentamente no semáforo fechado é pesado o medo é pesado eu desenhei o medo na umidade do vidro do carro vomitei meu medo na porta da escola do filho vigiado é pesado eu sei é pesado você saboreia seu medo-fast-food enquanto mima seu casal de gatos siameses enquanto acaricia a chuva os corpos dos condenados e a lama lava os córregos da periferia você dá de mamar a seu medo enquanto os meninos se esfaqueiam ao som do danúbio azul no banheiro da repartição jurando que é de dia você inaugura seu medo é pesado eu sei é pesado e seu pesadelo é seu medo no bolso do paletó esperando o momento de dizer basta      bas ta            b  a  st          a

 

 

11. C  RLOS

I

meu medo não é o teu c  rlos não é teu medo ainda que da morte seja que da vida seja que depois da morte da vida da morte não é teu medo c rlos teu aristocrático medo sobrevoando congressos imaginários não é teu medo esquerda engajada medo pupilas no horizonte à espera de fúrias com nome e cpf nem registro tem meu medo c rlos medo sem cara medo quarta capa eu conheço meu medo c rlos fecho o vidro pra esquecê-lo é medo com vergonha de ser medo medo noite chuvosa medo currado em banheiro de rodoviária c rlos é medo plantão da globo medinho safado esse meu medo c rlos não é teu transatlântico medo da bomba meu medo c  rlos é o medíocre medo da bala

II

ah teu medo c rlos teu mofado medo de gabinete teu medo óculos na cara teu higiênico medo vindo de telegrama teu educado medo a milhares de quilômetros se arrastando teu medo funcionário público gratificação no fim do ano teu medo poeminhas safados na gaveta do quarto medinho bossa-nova ah teu medo de bruços na cama do hotel teu medo algemas e cinta-liga c  rlos cantá-lo uma última vez antes da hecatombe quero teu medo pupilas rasgadas quero teu medo esbofeteá-lo em praça pública quero teu medo vilipendiado pelas crianças do jardim da infância quero teu medo arrancar-lhe as tripas fazer um colar para o réveillon em copacabana teu medo para iemanjá quando o mar for cinzas quero teu medo por um instante quero teu medo mas antes quero teu medo para lembrar que ainda sou além que ainda sou além do parabrisas

 

12. ÁLV  RO DE C   MPOS

álv ro de c mpos crucificado no pórtico da catedral submersa álv ro de c mpos desmembrado pelas engrenagens da máquina álv ro de c mpos empalado por seu ego álv ro de c mpos violado por todos os poros de sua alma futurista álv ro de c mpos chorando como um órfão na manhã do bombardeio álv ro de c mpos encolhido no canto do quarto enquanto me aproximo pelo corredor empunhando minha fúria empunhando minha fúria

 

13. ANTICR  STO

A Baudelaire

 

anticr sto devorou sua solidão no pátio lotado diante de suas concubinas debutantes anticr sto chorou pelas vielas não nascidas não há sorrisos que comprem sua paz de gabinete ah não mais a fuligem do dia seguinte não mais o perdão para as mães dos genocidas não mais as flores nos funerais dos inocentes anticr sto sentou-se à direita do pai para pedir clemência para as almas dos burocratas ah o doce cheiro dos corpos incinerados à beira do lago do incesto ah o café da manhã das damas de respeito perturbado pelo sublime gemido das crianças mutiladas ah o lamento de anticr sto abafado pelo intestino dos jasmins que eu plantei no bunker eu diante do espelho que apenas cala um dândi pelos escombros da cidade em chamas

 

14. J   RGE

eu evoco as sete lâminas de og m contra o medo encravado na pupila da presa  eu te evoco ferro forjado de fúria ferro forjado pelo fogo de j  rge  eu pisoteio o pânico do parabrisas com exércitos de crianças cegas a og m senhor de todas as demandas eu ofereço meu medo estripado no no jornal das seis a j rge guardião da verdade esse poema lança afiada no olho direito dos alcoviteiros eu debulho o medo das repartições com um rosário ensanguentado eu incendeio com a tocha de o gum os sorrisos do bistrô lotado eu esmago com o cavalo de j  rge as cabeças deitadas sobre terra arrasada da praça de alimentação

 

15. C  RDEIRO

pra não esquecer quem sou eu pesei minha inocência eu procurei em meu baú meu cordeiro dois tygres devoram o cordeiro enquanto o alvorada anuncia o enterro cruzes estrelas ou luas não há qualquer perdão de criança em teu olhar de domingo não há dois tygres devoram o cordeiro enquanto eu passo de carro pela marginal a guerra civil o cordeiro sorrindo e dizendo adeus

 

16. G  BRIEL

eu vi g briel cruzar tel aviv com um rastro flamejante descer sobre a terra com a fúria de mil deuses vi o sorriso carbonizado das meninas de rafah seus dentes arranhando o asfalto derretido vi o touro blindado violando o ventre seco a terra santa o jordão mudo banhado pelo sangue de sete mil virgens eu lambi as seis pontas da estrela eu rocei a palma da mão no fio minguante da lua eu assisti à cruz silenciosa no púlpito escarlate esbravejar baixinho eu vi as ruas inflamadas à meia-noite e as novas lágrimas das últimas carpideiras eu vi um homem-bomba se masturbando diante do muro das lamentações maldizendo a chegada da hora fatídica o soldado dizendo amém ao apertar o botão vi as luzes flácidas da canção matinal dos obuses o sol deitado nas colinas de golã por seis dias e seis noites vi um muro que não cessa não cessa que avança sobre a luz da alvorada eu medi meu medo e vi que era bom meu medo de presente para os homens do deserto para o peixe-ômega que me olha do altar claudicado para os deuses cintilantes do shopping center todos os deuses esquecidos para os herdeiros de auschwitz para os desterrados de gaza todos os órfãos de jerusalém eu vi minha dor de existir esparramada no sofá da sala eu me vi tecendo numa manhã ensolarada minha mortalha eu me vi rasgando o que há de humano em mim eu temi o que há de humano em mim eu me vi enfim humano eu me vi

 

 

18. WELLINGTON DE MELO

não não serás grande poeta porque letra não se faz com afago não se faz com pena do amigo ou de seus alfarrábios não se faz temendo fúria de crítico frustrado engolindo medo de ser culpado serás funcionário cinza de iniciativa privada terás alguns belos fins de semana na praia e um um ponto zero meio usado uma vidinha classe média e uns poucos amigos sinceros não importa quanto sangre cada livro que letras mortas e pupilas empoeiradas em tuas costas sempre pesarão beberás como um cão sorrisos de canto de boca de burocratas do mecenato sobreviverás a lançamentos solitários em tardes ociosas de shoppings lotados farás rimas fáceis em troca de um trocado bajularás os papas da literatura provinciana do recife por um prefácio velado lerás talvez um dia um comentário insosso num blog pouco visitado darás em tua vida uma entrevista de três minutos um dia morto numa rádio muitos anos depois que te fores depois dos prêmios de todos os grandes poetas de tua geração terem se transformado em notebooks carreiras de coca viagens a ocun programas com boyzinhos descolados teu filho encaixotará teus livros não vendidos num sábado funerário e te esquecerão não serás grande poeta não n o n ã o

 

30. ART R ROG  RIO

um último poema mas você se eleva com  um lagarto aceso com uma verdade de sete estrelas plantada na boca com um não incinerado na língua um último poema num varal de esperanças cortadas mas você me rasga a pálpebra com filetes de madressilvas me presenteia um espelho oco um terno mofado larvas de poetas abortados só queria um último poema mas último poema não há porque um último poema é como encaixotar palavras em cinco livros porque não há poema que caiba não há poema eu tentei destruir o verso e o peso do medo mas não acaba eu tentei mastigar a carne da poesia mas não acaba barr to c mpello não acaba dr  mmond não acaba bl  ke não acaba y rke não acaba b  ndeira não art  r rog rio não acaba p  ssoa não acaba porque é muita carne pra pouca boca não acaba porque desliza como aquele lagarto aceso como o olhar de l rca aquele olhar de l rca antes do fuzilamento como a pupila de l rca soterrada pela areia quente de granada como a presa do cão andaluz mordendo o derradeiro olho de l rca mas l rca não cabe na boca do cão não acaba fed rico  numa vala anônima fed rico sorrindo do meu último poema e de teu último livro porque ele sabe não cabe não acaba mesmo que a sua seja língua e a minha seja olho a sua riso e a minha náusea não acaba não cabe em nenhuma parte porque a pupila de aulo na minha pupila refletida carbonizou todos meus poemas retalhou toda a carne da poesia dinamitou a solidão do blog esquecido de rodr a de aulo leão esse reflexo vale mais que o medo vale mais que a fúria porque essa poesia não é nada porque em recife ou salamanca em são aulo ou barreiros um olhar feio um trejeito um tiro certeiro uma estocada depois disso nada porque no final a conta tem que ser paga porque de nós só restarão mornas tardes em seminários inúteis com meninas menstruadas e esses livros de ventre morto

 

21. 68 PALAVRAS SOBRE O MEDO

A Luciano Huck

 

teu medo engaiolado vidro aço couro plástico teu medo ar-condicionado acerte a hora do dial acerte no olho do dia teu medo domesticado muda a estação que teu medo não muda mudo teu medo aguarda o sinal fechado ao lado teu medo levanta o vidro balança o dedo teu medo oh teu medo blindado poderoso teu medo pupila dilatada no mais leve acenar do menino vendedor de balas

 

21. 68 PALAVRAS SOBRE A FÚRIA

A Férrez

 

tua fúria céu aberto carne asfalto lama concreto tua fúria ferro carregado acerta o olho do inimigo acerta o olho de tudo que é outro pena  tua fúria mudando o canal se perdendo por um relógio no sinal fechado ao lado tua fúria roça o medo cuidado pra não perder tua fúria  teme teme tua fúria anti-playboyzinho um dia vendendo livros de autoajuda tua fúria na revista caras

 

 

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Wellington de Melo (Recife, 1976). Poeta, professor e tradutor. Publicou O diálogo das coisas (2007, Ed. Universitária, Recife) e [desvirtual provisório] (2008, Ed. Canal6, Bauru/São Paulo), que deu origem ao poema instalação homônimo, exibido na última Fliporto. Recebeu menção honrosa no Prêmio Nacional Mendonça Júnior de Crônica e Poesia (2007) com o poema “Casa”. Organizou com Lucila Nogueira (UFPE) e traduziu ao espanhol a edição de A musa roubada (CEPE), livro de poemas inéditos a partir dos manuscritos da poetisa da Geração 65,  Terêza Tenório, lançado na Bienal do Livro de Pernambuco de 2007. Faz parte atualmente do grupo Urros Masculinos, com quem organizou oSarapateliterário - leilão de manuscritos de escritores em Pernambuco. Organiza com o mesmo grupo para novembro a primeira FreePorto, Festa literária do Recife. Trabalha atualmente vários projetos, entre eles o poemário O peso do medo - 30 poemas em fúria, a extensa narrativa Estrangeiro no labirinto, ainda sem previsão de publicação, e o livro Espaços vegetais & outros contos.

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