ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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SAMANTHA ABREU

 

 

 

 

Todo homem é uma ilha

 

Existe um espaço entre eu e você,

talvez, um mínimo espaço

onde nossa matéria tente ser a mesma, mas não consiga, onde meu corpo insista em ocupar o mesmo lugar do seu, mas ainda seja apenas eu.

Existe esse espaço,

feito do mesmo oxigênio presente em um terço da água.

Um vão que pode ser água entre nós dois:

o homem é uma ilha isolada, Sr. John Donne.

 

 

 

 

O golpe

 

A diferença entre a pancada e tombo está no cambalear das pernas.

As mesmas que vibram durante o ato - teu dia amanhecendo em mim – são as que cedem diante do fato de que tua ausência seja sempre

passagem.

 

O teu perfeito golpe me pega na rigidez das coxas para o amparo dos braços antes da queda. Mas o tombo chega inelutável, fazendo do susto o sonho

sempre depois do nascer do dia

o nocaute, a lona.

 

 

 

 

Acaloramento de dentro

 

Tenho a lava que se eleva, um fervor

na medula.

Nenhuma recomendação de gelo alivia,

quando estou no centro do fogo.

E se chama, ouço queimar.

 

Não há saída que não seja para o alto,

no céu onde ele está,

acalorando espaços entre braços e dentes.

 

Quando caí,

ficou um sol inteiro orbitando em mim.

 

 

 

 

 

 

Depois da Guerra

 

Depois da guerra, regresso.

Um combatente em retirada, que entra pelo portão de uma casa que não é mais sua, embora ainda lhe pertença. As pessoas dali ainda têm o seu sangue, mas acostumaram-se à sua ausência. Os lençóis já não o reconhecem, os colarinhos e coisas não mais têm o seu cheiro.

Ele mesmo, soldado vencido, já não se encontra mais em si. Não se acha, mesmo quando vasculha, apressado, as gavetas do peito e da própria cabeça. Não reconhece suas novas cicatrizes, não lhe parece familiar a textura da pele nem os calos nas mãos. É alguém que, no cansaço da luta, se fragmentou em mortos e feridos, e mudou na velocidade do disparo de cada bala.

Sou eu esse guerreiro.

Sou eu que reapareço, trazendo comigo pedaços de corpos e almas que não me pertencem, mas agora fazem parte da unidade necessária para que eu me recomponha e, no devido tempo, retorne ao meu campo de batalha.

 

 

Glossário da pequena morte

 

A voz de dó no baixo

arranhando o grave de todas as trilhas.

Panturrilhas que dançam no vai-vem

dos músculos,

e pedipalpos que enquadram o sorriso raro

na escassez do não: canibalismo.

Cigarro pendendo no triz

entre um lábio e outro desejo:

eu querendo ser o trago.

O in [possível] do out let. Não deixo, mas nego.

Por puro capricho do sempre contar gotas

que não pingam de densas,

doce de colher.

 

Todo lento e pesado, me toma de pouco.

Mas toma por inteiro de tudo.

 

 

 

Alice contra o espelho

 

Falsas verdades não me parecem mentiras.

Eram apenas demasia

de um capricho transbordando

de mim para o outro.

Alice e o gato,

por horas a fio

atraindo-se pelo recôndito.

O que se mostra não me fascina.

Eu cobiço o incompreensível

e o inexplicável

que me resuma.

Procuro a passagem secreta no tronco da árvore,

e um mundo farto

de dogmas imperfeitos.

 

 

 

O Arfar do Mistério

 

Você deve juntar todas as forças

e malas vazias

para poder partir em direção ao mistério. Parecerá desmesura de encanto, mas aprende-se que é mais doloroso. Todo mergulho traz consigo o bater seco na água. O afundar, o sufoco.

Um segredo na pressão nos ouvidos, o peito contraído e um quase morrer. Um quase morrer... de coração que se esmaga entre dedos.

Quanto mais fundo, mais apertado.

Quanto mais mistério, mais despedaço.

Esse triz de privar o sopro terminando com o soco do fundo. Sem peito e sem ar, o chão.

Um agachar que arremessa a volta. Todos os nervos já estreitados e o buscar louco pelo novo fôlego.

É na volta que te pega o sortilégio: pouca força nas pernas, já não há tona.

 

 

 

 

Pandora

 

Mulher de muitos cabides, acostumei a manter as fantasias esticadas e livres.

Quando as dobrei para guardá-las na mala de fuga, co­mecei a sentir as dores. A cada dobra uma contração de par­to retido. A primeira fisgada na altura do ventre, depois nos seios e nos braços.

Empilhei fantasia sobre fantasia dentro da minha bolsa de segredos intocáveis. Contorcidas, gemiam umas sob as outras.

Mas foi no momento de trancá-las que começaram os gritos. Já me acostumei às contínuas dores e ardumes das dobras, mas os gritos... os gritos...

Eu, Pandora desvairada, já não posso mais pendurá-las. Hoje me amedronta desatar tanta amargura entre elas aba­fada.

 

 

*

 

Samantha Abreu é de Londrina, Pr. Publicou o livro “Fantasias para quando vier a chuva (Orpheu, RJ, 2011), escreve o blogue Haute Intimité e a série Mulheres sob Descontrole. Já foi publicada em antologias e revistas literárias, participa e organiza eventos de literatura e tem um projeto de vídeo-poema no youtube.

 

 

Youtube:

www.youtube.com/saabreu

 

Blogues

Alta Intimidade:

http://samanthaabreu.blogspot.com

Mulheres sob Descontrole:

http://mulheressobdescontrole.blogspot.com

 

E-mail de contato:

sa.d.abreu@hotmail.com

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