ZUNÁI - Revista de poesia & debates

[ retornar - outros textos - home ]

 

 

NUNO JÚDICE



FOTOGRAFIA DE MULHER NUM MOLHE


O vocabulário da experiência constrói o poema,
pedra a pedra, somando o que se diz que é a vida
ao que dela dizemos. E no meio desta troca de
palavras, a mulher da fotografia avança até ao
fim do molhe, com o chapéu de chuva aberto.
Ouve as ondas, como se elas lhe falassem; e
olha para o outro lado da água, onde se abre
uma escura margem de ciprestes e choupos.
Eu diria que, entre a mulher e o bosque, correm
as águas do poema. Não sei dizer de onde
vem o seu curso, nem qual o estuário em que
desagua. Porém, se me aproximasse da mulher,
e lhe pedisse para fechar o chapéu de chuva e me
deixar ver o seu rosto, uma explicação poderia
surgir; mas acaso ela teria consigo a chave
do poema? O seu mundo limita-se a esta baía
que as suas mãos envolvem, numa busca de
recordações. E eu estou fora de tudo o que ela
pensa, enquanto construo o poema de que ela
faz parte, com a solidão que a protege de mim.

 

APARIÇÃO NUM DIA DE INVERNO


Um dia, lendo este poema, lembrar-te-ás:
o amor falou através dele. Ouvirás no seu ritmo
a voz que tantas vezes desejaste; reconhecerás
nos seus versos o corpo que encheu
a tua vida; tocarás em cada uma das suas palavras
os dedos que te ensinaram a medir os dias
pelas suas contas de ternura. E o tempo
entrará por ti como esse rio que alagou os campos
do inverno. Olharás à tua volta, vendo a desolação
de uma paisagem inundada. Algures, porém,
uma árvore antiga sobressai; e os seus ramos
verdes dar-te-ão a esperança de uma nova
primavera, em que voltes a ouvir a voz
que o poema te trouxe com os seus dedos
de música.

 

O SOL NA MANHÃ DE INVERNO


Porém, ao pensar no domínio da primavera
sobre o campo, enquanto uma extensão verde se transforma
em ideia de renascimento, o céu impõe-se sobre
o pensamento. Que segredos aquele azul escondeu, e quantos sonhos
se cristalizaram na distância que o homem não domina,
obrigando-o a construir um teatro de deuses para
abrigar a sua imaginação?

Depois, descendo ao plano da realidade, apanho
uma flor que começa a abrir, no seu ramo. Está viva, ainda,
e o caule cola-se-me aos dedos, húmido
de verdura. Sei que a sua perfeição contraria a ideia
de morte, e que durante algum tempo poderei
olhar a flor como imagem plena da vida e da
eternidade de uma beleza que rejuvenesce o espírito.

Entre esta flor e o céu que o tempo esvaziou
de deuses e de nuvens, não hesito, e ponho a flor
no álbum que trago comigo, onde ela irá secar, deixando-me
a memória desta manhã de primavera num dia de Inverno.
Impossível seria o contrário - pegar no azul do céu
e pô-lo onde está a flor. Mas ao abrir o álbum, e ver
a flor seca, sei que o azul é a sua seiva, e ela corre
pela minha alma enquanto lhe toco, e volto a sentir
a manhã limpa em que a colhi de um ramo
inesperadamente vivo.

 

ERRO DE REVELAÇÃO


Quando as fotografias se sucedem às fotografias, há um
instante em que o fumo envolve as mãos que se preparam para
disparar, como se o gatilho tivesse explodido antes
de tempo e a composição surgisse inteira do simples pensamento
que antecede o gesto. Podia explicar melhor esta ideia,
em que projecto uma filosofia antiga, grega, na qual se diz
que tudo o que fazemos já está previsto que seja feito, porque
nada inventamos que não tenha sido imaginado pelo
ente perfeito de que somos o reflexo. No entanto, quando
recuso tirar a fotografia, e ela se antecipa ao próprio
instante da pose, o improvável revela a sua existência, e
só tenho que esperar pela demonstração, quando o papel
sai da máquina completamente negro. "Excesso de
exposição à luz", diz o empregado; e não vou entrar
em nenhum diálogo com ele, para não ter de o
convencer de que os sofismas também estragam
os rolos, sobretudo quando a máquina se tornou
um prolongamento da mão que, por sua vez, é
um prolongamento do cérebro; e este, embora seja
uno e individual, tem dentro dele toda a filosofia
antiga, mesmo que o não saiba, para estragar
a única fotografia onde o mundo se poderia ver,
inteiro, como se o mundo se pudesse ver.

 


Conheci um homem fechado na sua choupana.
As traves eram de vidro. Pelas janelas entravam
os ventos de todos os pontos cardeais. A cozinha
enegrecera com o fumo de antigas refeições.
O homem limpava as paredes com os panos
da cama. As suas mãos tinham a cor da fuligem
e do pó. Pelos olhos vazios escoava-se a luz
dos séculos. Mas o homem, fechado na sua
choupana, não abria a porta a ninguém.
Podiam dizer o seu nome. Podiam pedir-lhe
que saísse, por uma vez, e soubesse que
havia sol. Lá dentro, o homem não sabia
de nada. Esquecera-se do mundo. Fechado na
sua choupana, entre as traves de vidro e
as paredes sem tinta, o homem soletrava
o nome de deus, sem nunca chegar ao fim.

 

*

 

Nuno Júdice (1949) é poeta e ensaísta. Publicou seu primeiro livro, A noção do poema, em 1971.

*

 

retornar <<<

[ ZUNÁI- 2003 - 2005 ]