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MICHEL SLEIMAN


Haqlah


Aleli aleli aleli
A menina de tranças pisa a tumba do vovô da vovó da tia-avó do bisavô
A menina ergue a tampa e destapa o sol na fronte magra
A menina pisoteia a erva caída a bagaça
da romã e as folhas e as flores da amendoeira por amendoar
A menina arrodeia cirandeia sapateia
Aleli aleli aleli

Ya marjeyuun ya mar ya eyuun
Ya ojos de marwaan ya mar ya eyuun

O menino reza à porta dos mortais
O menino espia os portais
O céu as estrelas o breu misturado às horas
Eternais
Corre o corcel escorre o labéu por toda parte
Hão difamado o repouso hão resfoliado o teto
O manjericão cresce erva-espinhos
A terra resseca junto às pedras
Ali ali ali

A menina deixou a boneca de pano
que a chuva molha entrado novembro.

O menino enxuga-lhe a lágrima.
Ó flor, ó flor, ó flor

Ouvem-te te nutrem.

 

EU OS TENHO TODOS

Eu os tenho todos lado a lado na minha estante de comprados e bem guardados.
Tenho Adonis, este que fora Ahmad Ali Esber e ao lado
O Corão e ao lado o Alqur'aan e depois um tratado de botânica famoso.

É sempre manhã na minha lembrança
As casas caiadas e suas alcântaras de janelas, portas, portinholas e aberturas vitrificadas sobre as portas onde as lagartixas descansam o longo rabinho à noite.

Vejo a cidade com a sensação.
Não a vejo com o olho, vejo-a
Com a lâmina de minhas palmas
Com os vasos olfativos
Com a pulsação do sangue e do ar que engolfo nas sempre manhãs.

Correram atrás de mim porque eu amaldiçoara seu Muhammad
Criança correndo de manhã porque os meninos-corsos feito enxame de abelhas zangadas perseguem o algoz de seu mel
Melmelmelmelmelmel muhammad muhammad yilcan diinkon eu
Lhes disse cravejando esporas no meu corcel, par de pernas finas nervosas levantando poeira da ladeira que ladeia a parede caiada da casa de meu avô.

Foram dias fechado. Janelas-cântaros nacaradas pelas pedras e o vozerio dos meninos querendo minha cabeça eu
Lhes amaldiçoara o profeta deles sua lei eu
Porque eu fui amaldiçoado pela turba de zangões que
Meu avô e minha ascendência de padres fossem amaldiçoados yilcan khuriytak
Disseram na manhã fria de Alqarcaun e eu

Quem disse que a lembrança não
Que a lembrança não inverte o sem
O sem sentido?


Alliqâ


O couro da pele é manto de lã por sobre
O volume das carnes de camela farta
As mãos potentes patas de cordeiro em dia de abate
E o hálito bafo de bezerro mamão cheira a grama ainda quando
Aparenta galgar montes de cascalho o portentoso jumento montanhês.

Eis meu amado do deserto amado de gerações de sóis e ventos
Que me chega à noite aos vãos de minha tenda - algo mais sólida
Com paredes de concreto e sacadas por sobre a avenida trafegada de motores
Mas não por isso menos tenda -
Chega-me os pés empoeirados a barba grossa do óleo das máquinas
(seus dedos folheiam páginas azeitados pelo sebo do conhecimento)
Sob as unhas a fuligem do dia unhas cortadas com faca cega
Eis como vem o amado de minha alma cruzando desertos de mar
Tocando a caravana de especiarias (seus alunos na Cátedra) dedo em riste localizando o fluxo dos anos e homens e fatos e hiatos cíclicos
Meu homem amado me envolve o torso me lambe o pescoço me enrijece
O talo com seu fermento de sudores.

Uma fumaça tênue na meia-luz se esparge
Maçãs, tulipas, alecrim

E

Por sobre o tapiz de cores geométricas
Libamos amor às fartas; m. salmaso e eric satie nos assistem.


ODE NÔMADE
trota potro
toca os tacos
de palmira ao châm
trote e vôo maessalâm
pedra a pedra vou
vamos que vou
até silva a kamanja
a outras bandas
"tudo está pronto
a noite enluarou
firmes cascos e encilhos
vamos que vou"
no châm uma mulher
samira de samir
bagdâdiy e bagdâdiyya
châmiy e châmiyya
jasmim cabelo perfumou
ai samira espera eu vou
"tudo está pronto
a noite enluarou"
roda e rola e cantarola
yalla palmira espalma
palmeira de feiticeira
ao vento estua faceira
tempo bom alazão
forte a norte infla ventas
vamos que vou
tantas bandas... que abrem-
se outras rotundas
amarelas de tanto até circundam
nem miragem sol e ar
é capaz de estar
só um ser fará voragem
samira châmiyya
destapa o véu a um teu pajem
amor com amor
o resto é um nada
quase que valha
lua e luar
com
ou sem
pantalha


*


Michel Sleiman nasceu em Porto Alegre (RS). É professor de língua árabe na Universidade de São Paulo (USP). Publicou A Poesia Árabe-Andaluza: Ibn Quzman de Córdova.

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