ZUNÁI - Revista de poesia & debates

[ retornar - outros textos - edições anteriores - home]

 

 

KATYUSCIA CARVALHO

 

 

 

 

Um dia encontrarão
os fósseis rupestres
de uma saliva
já extinta

virão tradutores
e ólogos e istas

capitalizarão:

[beijos cravejados na rocha]

e os poetas dirão:
a fotossíntese da pedra!

as ortodoxias
intoxicando tudo
implorarão o milagre da obra
de uma língua santa:

- uma palavra sua e seremos salvos!

pigmento inteligível para espécies vorazes
corroendo caverna
sanguinidade de sal

mas que lábios
que línguas
que linguística guerrilha
deixa fendas na fala?

como corpo sem carne
a linguagem não cala
só o homem sucumbe à ausência de órgãos
falência múltipla

na boca nunca insossa do tempo

 

 

* * *

 

Pão e vinho feitos nome

 

Tão úmida a sede

em meu sotaque

 

bebo-te a voz!

 

tens timbre de Tejo

salivas o mar

 

 

* * *

 

desse teu nome

minha boca carece

 

verbo que carne!

 

atocaio-te a língua

com minha fome

 

 

DESABOTOADURAS

 

Poesia com dentes

mordendo-me a fala

 

Poesia com falo

com tato, com toque

 

Se não me roça

ao pé da letra

Se não me rasga

botões à pele

diante dela

,frígida,

- calo!

 

 

 

PENUMBRA DA PONTE

 

Não há tela que o prenda

ou pincel que o retoque

é um rio onde passa uma sede por cima

:sede que afoga, e ninguém atravessa

 

é muito aquém de uma ponte que caia

é para além

é para longe a perder-se de vista

:linha inimaginária

 

é o prenúncio daquela que não se represa

que mora sem muros,

mas tem trepadeiras

:por onde subir para a copa de um sonho

 

o que ninguém vê

é o exílio em seus olhos

não demarca o caminho de volta com pedras

:amnésia de mapas

 

vai ter com uma índia, reaprende a rezar

e resigna os búzios

às vezes reparte poesia entre monges

:mas não se ajoelha

 

um nômade a ama,

com ele copula

e compõem heresias no alto da noite

:arregalam-se estrelas

 

Nas duas orelhas adorna risadas

e sabe ouvi-las até soluçar

estende tapetes à beira de um charco

:convite ao que é bento, batismo de barco

 

dá nome ao rio

nomeia com seiva suas iniciais

e sabe lhe ser sob a lua estuário

:só por isso perene

 

cabeceira do mundo na margem de lá

 

 

DESEMBOCADURA

 

trago à tona

esse fundo de mar

no fundo das coisas

que é só onde alcanço

um refúgio de ilha

poça de terra

avesso de água

 

tão profunda é a ida,

que volto ferida

arranhada na pele

dessa vil dura concha

de tão delicada:

a das palavras

 

bebo-as então

para desafogá-las

do meu corpo náufrago

 

sei andar descalça

sem cortar os pés;

mas não sou a que anda

sou como a que nada

de boca aberta

por entre corais

 

de arrecifes cortantes

minha voz, que eu sei

só o sal cicatriza a língua das frases

 

e esse rio,

até que deságue,

ainda é raso de tão doce

 

 

PARA-DENTRO

 

Por vezes parar

para apurar olhares e

afinar pensamentos

 

Aprofundar interiores

Inconter silêncios

 

Apalpar um grito que

não terminou

amputado por alguma canção

que soou mais profunda

 

Amparar um devaneio

pendido logo ali

à frente do corpo freme

 

Chegar ao cerne

Lamber a carne

 

Ferida é flora aberta na pele

pedaço de pano preso em arame

 

São os rasgos que os riscos

sempre nos deixam

 

Tremer de frio

mas não de medo

 

Apontar acertos

aprimorar os erros

 

Aspirar o pó dos pontos finais

soprá-los pra dentro

fechar o baú

abrir bem os olhos

 

Sem pára-quedas, pára-raios,

paradeiros, para-sempres ...

 

E só então ir ter com o presente

de peito aberto

por saber do impulso que o habita

 

Pronta

Pular

 

 

 

EU POLÍGRAFO

 

das tulipas no alpendre . dos seus polens suicidas . de utopias retorcidas . divas viúvas . véus ao avesso . das mudas musas cotovias . das pudicas desavisadas . do pó-de-arroz que assopro pálido . para acordar a deusa póstuma . do prefácio nunca escrito . do difícil livro pródigo . da palavra prematura . que não vingou no sol da boca . do prelúdio em pleno ventre . da água escassa em pote raso . do par de terra jazendo paz . das pás de mãos em pé de guerra . dos pedintes por beleza . do desespero retirante . do pelejar de um anjo torto . de um trovador em profecia . das duras pedras que apanho . dos caminhos que apalpo . das pérolas que por ora empenho . do que me atiram porcos parcos . do meu corpo apedrejado . a pesar nas minhas pálpebras . do penhor da iniquidade . do meu hino em letra morta . perambulando em exposta carne . oxímora, paradoxa, . dos semidons que me aprofundam . do punhal em peito nu . do medo pávido em dorso prévio . de que palavras despedacem . do parecer, do perecível . do desapego de um pária . da voz sem povo, dependente . desapontando o horizonte . trespassando o meu poente . à minha frente sucumbindo . despencando a minha fronte . precária alma de ser gente .

 

 

NÃO SER DE SOBEJOS

 

Faço uma fissura no vento que passa . assopro um sussurro de interrogação . será que um dia as minhas palavras . serão pressentidas, mais que desfolhadas, . pois que desse assanho, suspiro ou sobejo . eu não me comovo, sou eu o outono! . e por tudo que morro, as linhas que escrevo . não são o meu ar: são a respiração .

 

 

PÉTALAS EM BRANCO

 

Olhos feridos de não se fecharem . joelhos rasgados, marcas de não correr . essas mãos ora frias . por tanto tocarem . estão chamuscadas de vulcão e silêncio . uma vida . e não basta . a dizer-se mulher . sangrando e sangrando numa língua imprecisa . talvez mesmo preciso . seja mais que uma carne . para os ossos doerem . a fratura dos lábios . já de face cansada . inclinada na haste . daquela açucena . que ao florir, era inverno .

 

 

UM DEUS PARA O NOME

 

O que quer que eu diga? . Não quero inventar um deus para o nome; . não o faz menos mortal. . Os nomes estão cansados de batismos. . Dou-lhes a minha amnésia pagã. . E os chamo pelas suas significâncias, . como faziam os índios com seus significados. . Já se nasce impermanecível, nessas asas de ficar. . Tantos pássaros privados no passeio público. . Tanta gente aprisionada ao que julga serem as chaves. . Outro dia abri-me a porta para um menino de rua, . ele me salvou da humanidade. . E não tinha nome de santo.

 

 

*

 

Katyuscia Carvalho é poeta e mantém o blog http://katyuscia-carvalho.blogspot.com/.

*

 

retornar <<<

[ ZUNÁI- 2003 - 2011 ]