ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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JORGE FRAGOSO


 

O ACTO-POEMA

Diante do corpo aberto
como o sangue em flor veias
como sulcos o sangue percorrendo
os veios de arado a lavrar palavra

o sangue mergulha a mesma cor
move o movimento que move
incessante movente o sangue

falo a palavra             uma arte que move
o dizer das palavras que os gestos breves
melopeiam de sons

e será aí
nesse impreciso  momento
que a seiva inteira do corpo a abrir
se derrama sobre o corpo que aguarda
para saber a posse antiga do tempo

e é sempre a língua que age
uma linguagem a construir de branco
novo
a imagem quase conhecer
a figura feita completa
o acto universo do poema

 

 

A PROCURA COMO GESTO

A procura como gesto de ver
arredondar-se o passo dentro das mãos
como mágicas e proféticas
são as visões dos deuses
arrasando os matos e os muros
florestas afoguedas de cansaço.
Abrir lentas as trevas
semeá-las nas névoas do fi­m das horas
e como o branco pálido dos lenços
soltar na boca o eco dos planaltos.
Sem mágoas, sem fráguas de sombra
e luz pelos quintais
ir demorando a réstia do que vier a ser vento.
No mesmo paraíso das penumbras
a cintura de lua nova
é a linha limite dos seios da mulher
amante fascinada.
Talvez haja uma geografia do desejo no aceno simples da procura.
E provável descobrir a cor. Não descobrir
a tocha lustre candelabro. E provável descobrir
os brilhos. Não descobrir os olhos que olham
o descansar do arco da obscuridade.
Como uma água que dorme
a procura solta
no soletrar dos dedos.  

 


RITOS VELHOS

Sobre o início existe sempre o nevoeiro
como sobre o fruto     a oferenda            a culpa
e em todas as vestes com que se aparelha
o mundo
voa a pomba
sucede a mulher mãe maternal
a fazer dos filhos pasto de Cronos

e há o sopro feito carne             barro             verbo
mesmo na ausência da face

o hálito desmedido do pássaro
só metade vertido no corpo absoluto
derrama toda a idade madura
de estrelas
e mares condoídos de espuma
e vento de garras gordas
e mistério enlouquecido na explicação
do tríptico            poliédrico         e fantasma

Afinal as barcas são simples formulações das mãos
e fazem-se navios na esquina das páginas
da púrpura da espécie

São muitas correntes sobre a garganta
e o alumiar das lágrimas
na religação das águas

Em cada princípio há um verbo
mesmo na crença inerte
da morte demorada da lenda                                                                

 

Causa: ideias de Robert Duncam em

Tribal Memories - Passages 1

 

*
 

Jorge Fragoso, poeta português, nasceu em 1956, em Beira (Moçambique). É licenciado em Filosofia, poeta e editor. Membro da Oficina de Poesia (curso livre da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra), é também subdirector da Revista Oficina de Poesia, de Coimbra. Obra: Inima (poesia, 1994); O Tempo e o tédio (prosa-poética, 1998); A fome da pele, (poesia, 2004); Rua do Almada (contos, 1995); Dez Horas de Memória (romance, 1999). Poemas dispersos foram publicados em revistas e antologias em Portugal e no exterior.

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