ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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JORGE ARRIMAR

 

 

 

 


ANIMAL OBSCURO

Um animal desconhecido depura a paisagem manuscrita,
um animal obscuro, entre o rasurado e o ambíguo, fragmento
de cenários perdidos, barro seco dum molde esboçado
sobre o peito das mulheres carregadas com a fome
dos filhos. Sua língua esmaga a comissura dos lábios
gretados de poeira e a boca dardeja um vocabulário
de fracturas. Os pássaros que chegam já só esvoaçam

entre cada tremura dos novos tambores, inventados
dos materiais que os subúrbios permitem. Nas suas penas
prendem-se alfinetes de petróleo e broches diamantinos
que os bicos rachados matabicham, essas atarantadas
bichas de matos e mangais de que a morte não se alimenta.

Obstinados, os corvos perseguem minhocas cinzentas
por entre balaios de adivinhar pedras e búzios. As peles
das cabras vivas de olhar oblíquo e ensanguentado
já estão a secar no terreiro e o  desenlace do pêlo
que o vento emaranha, que o vento desencanta e incendeia,
já está por aí, teia de aranha, aracnídea rede
onde se capturam os espaços que o corpo testemunha.

E é por aí que assistimos à lapidação das cicatrizes
e nos incorporamos no enterro das escamas
que o tempo coagula; nos emborcamos na gula meretriz
da terra em chamas.

(*) Este poema é um diálogo com Depurar, de Claudio Daniel.    

                                               

SEVILHA EM FEVEREIRO

Deixa cair a tua fronte no meu ombro e devagar
abre a porta das mãos, deixa os batentes vergarem-se
como ramos de acácia, rubras já as flores atapetam o chão.
Não fiques aí. Fica antes comigo entre medos e vigília
e derrama os teus dedos no meu corpo em chama,
numa infusão de ervas silvestres, de musgo e tília.
Não fiques aí. Vem ter comigo hoje
como ontem: o gesto a moldar a brisa que respirávamos
e os lábios a reterem o sopro que o amor largava.

Chove muito sobre as copas das árvores,
chove muito sobre os telhados das casas 
e chove muito sobre nós. Sevilha em Fevereiro
esconde-se moura de véus e cetins de água fresca,
silhuetas a fugirem de nós embebidas no aguaceiro.
Os nossos passos derramavam-se apressados
pelos pátios molhados de silêncios e vozes: uma guitarra andaluza
geme desafios com o tamborilar da chuva nas lajes do chão
e eu teimo em deixar uma flor de laranjeira
na palma aberta da tua mão.  

 

 

VINDULULU


Diz-me outra vez por que razão as casas
se abrem sozinhas, como se a tarde ferisse
os muros e as paredes com lâminas de sons
transparentes como o vidro, primeiro

os que saem das cordas das gargantas, depois
as que saem das cordas das tchiumbas. Só
depois o vento amaina para deixar passar
os sons da pele, da que protege as plantas
dos pés que dançam com o chão, e também
da que forra as palmas das mãos
que se espalmam na pele dos tambores.  

Voz intensa de todas as cordas, voz imensa
de todas as palmas, de todas as plantas,
de todas as peles.                      

 

 

TEMPORAL

Chegas sempre com as marés do final
da tarde. Uma canoa solta nas águas salgadas.
Primeiro são os olhos que se recusam ancorar
em ti, mas depois os dedos remam devagar
sobre a água tépida que a tua pele transpira.
Uma onda, duas, e o mar inteiro desequilibra
o meu navio.  

Acende-se ao longe um farol. Mas não
queremos um cais sereno, uma margem tranquila
aonde chegar. O facho semeia promessas
sobre as vagas, promete a fuga à tormenta
que nos abala, que nos lança um contra o outro.
Mas não! Que se apague o farol. Que desapareça
o facho na escuridão letal.

São minhas as algas que te amarram o sossego,
que te prendem a respiração. Mas são nossas as velas
que se rasgam do mesmo vendaval.

 

 

SEMENTES

olhou as sementes que os calcanhares evitavam
na sua marcha, apanhou-as e atreveu-se a dividi-las
por cada um dos dedos. ninguém podia adivinhar

que havia lágrimas dentro delas, mas o sal que deixavam
prolongava o sabor da memória.  talvez  
a raiz que a luz inventava não se descobrisse
nas mechas que os olhos atiçavam. depois afastou-se
da terra húmida sem saber onde guardar o chão
que transportava no côncavo dos pés
 

 

AS JANELAS DAS RAÍZES

Eu sei que as paredes grossas
da casa onde nascemos
se começaram a construir
no tempo de outras gerações.
E ambos descobrimos isso
quando gatinhávamos
pelas primeiras letras
dos livros mais antigos
que lhe serviram de alicerces.  

Ainda os vemos de páginas abertas
no chão húmido da memória,
como se fossem as janelas
das raízes que nos suportam.

 

RESISTÊNCIA                                 

Num maboqueiro
três maboques
À sombra do maboqueiro
um luando

Luanda
um maboqueiro
três maboques
um luando
três mabecos  

Na lua anda
uma matilha de mabecos
No luando
resisto ao sono
Um maboque
dois maboques
três maboques
Acerto apenas num mabeco

Em luanda
no luando
com três maboques
resisto
Um mabeco morto  

A lua andando
lá no alto
e no luando
chupo o suco
dum maboque
e retempero as forças
Agarro em dois maboques e espero  

  *
 

Jorge Manuel de Abreu Arrimar nasceu em Chibia, Huíla (Angola), em 1953. Na década de 1970, criou com amigos o Grupo Cultural da Huíla (Grucuhuíla). Estudou na Faculdade de Letras da Universidade de Luanda, tendo concluído a licenciatura em História e especializando-se em Ciências Documentais. Foi professor de português em Açores, onde dirigiu, com Carlos Loureiro, um suplemento literário chamado Página Africana.  Publicou, entre outros títulos, Ovatylongo (1975), Poemas (1979, em parceria com Eduardo B. Pinto), 20 Poemas de Savana (1981), Murilaonde (1990), Fonte do Lilau (1990), Secretos Sinais (1992) e Confluências (1997, em parceria com Manuel Yao). Em 1985 radicou-se em Macau, onde ocupou o cargo de diretor da Biblioteca Nacional. É colaborador do Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, organizado pelo Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro e prepara uma Antologia de Poetas de Macau em parceria com Yao Jingming.  Reside hoje em Portugal.

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