ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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HELDER FAIFE

 

 

 

 

CHEGAMOS

 

Com a manhã humida e lânguida

a rebolar sobre a cidade

e o sol a derreter-nos

o gelo suado da paciência

 

Chegamos

 

viemos quentes

das gélidas catacumbas do destino

infestar o sexo da calçada urbana

com nossas trouxas anti-municipais

 

de noite somos caçadores de lua

de dia vendedores de rua

 

 

O FRUTO DA ACÁCIA

 

Ainda que floreça

a acácia não dá frutos comestíveis

mas á sua sombra

a senhora vende amontoada de fruta na capulana

estendida

e faz as contas.

….

a senhora amontoada vende frutas estendida  na

capulana

e faz as contas.

….

estendida na capulana a senhora se vende amontoa-

 da de frutas

e faz as contas.

….

e compra-se o fruto com o mesmo deleite que se

lhe colhe de éden

e faz-se de contas.

 

 

ALVORADA

 

Ja nãoé o trompete irritante dos galos que nos anun-

ciam a alvorada!

basta o vento se calar de gemer no veludo das àrvo-

res

um arroto suave de  luz se deixa vomitar

evergonhados os cães nocturnos

que se recolhem para o escuro perseguindo a noite

e passarinhos soltam-se dos ninhos

celebrando a claridade

gotas de orvalho escorrem o dorso dos limbos

e antes da queda desfazem-se ao vento ,evaporam

o sol espreguiça mas não se levanta ainda

apenas uma réstia sonolenta espreita

e afaga as paredes precárias de caniço madeira ou

zinco

 

nos pratos de ontem uma água urgente espanta as

baratas

que ainda se refastelam

a capulana embrulha o dia e pendura um nado ás

costas

a vassoura acaricia o chão com eficiência doméstica

num cesto de palha cabe toda a arca do noé

legumes e frutas vao para esquinas atapetar o chão

empoeirado

 

descalço um menino funga o hálito matinal e espirra

para escola

as moscas que declaram aberto o mercado

são borboletas alegres e pousam sua higiene no

vento

como a abelha que em voo fecunda a flor e adocica

com mel a vida

 

ja nao é o trompeta irritante dos galos que nos

anuncia a alvorada!

 

 

 

Há o mimetismo dos semáforos

camaleão das três cores

e os veículos que obedecem ou não

Há a avalanche de pessoas que vêm e vão

formigas apressadas

que se conhecem ou não

Há o sol que cresta

no labirinto da hora da ponta

e a folhagem das árvores que dão sombra ou não

Há o menino que promove bugigangas

confunde-se com o tumulto

e o pneu estridente que na avenida chia ou não

Há a buzina que o violento

e num salto felino

escapa do asfalto ou não

Há o automobilista que nos insulta

e o puto de outro lado da estrada

que entende a sua culpa ou não

Há o vendedor ambulante

engolido nas teias espessas do quotidiano urbano

que cumpre seu expediente diário ou não.

 

 

CICLO

 

Impiedoso

o sol chamusca os legumes em promoção

há uma sede urgente que os amarela

esta água que os refresca ainda que barrenta

foi  a mesma que pariu a vida micróbica

evoluiu cílios e flagelos

de barbatanas faz quarto patas

ergueu-se acrobática sobre duas e chamou –lhes per-

nas

das outras duas faz braços

estendeu­-os para que fossem asas

e voou para casa: a morte

 

e cumpre seu incerto ciclo potável e vertiginoso

 

 

*

 

Helder Faife nasceu em Maputo, em 1974. Poeta, cartunista e artista plástico, estudou Arquitectura e Planeamento Físico na UEM. Atua na área da publicidade.

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