ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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GASTÃO CRUZ


 

O PIANISTA

Senta-se imita
o autor Os
holofotes douram-no
é a vítima
dos expansivos círculos do som

Em torno dele o som é como
um laço
Está sentado na margem do
teclado detendo com os braços
a força ameaçadora das águas

 

PARÁFRASE

Deito um peixe no eixo do meu peito
aí o deixo devorar primeiro a vida
os coágulos depois o osso enfim
os arcos das costelas
o esterno
já referido pelos dias

É ele o meu pulmão o músculo do meu
sangue perdido
barbatanas escamas guelras eixo
peixe
deitado no meu peito e vivo
entre ruínas

 

AS AVES

4
As aves que se movem já não têm
esta vida das folhas apagada
aves apenas mortas e sem nada
que lhes suprima a morte ou dê sequer

o movimento pálido do ar
nelas passando vezes que não é
possível já contar pois tantas vezes
o ar as move que se movem aves

embora no outono já não caiam
folhas ou aves ou talvez só caia
o movimento destas folhas morto

pois é pálido o ar aves e folhas
morrem na seca palidez que o move
e porque os homens não os move o ar

18
Pele que não reflecte
o brilho destas valas do exausto
céu das noites de outono
privada de reflexo

da lama do outono
e do brilho dos vivos acidentes
dum corpo
dos acidentes vivos que promovem

a alegria e queimam como dentro
da névoa a vida queima
o corpo

pele que não reflecte
nenhum corpo
pele coberta e vã pele privada

24.................................... cf. RILKE, Herbsttag
Olhamos estas folhas que
o céu expele estas árvores ásperas debaixo
da secura do céu e quem não tem
casa não a terá

quem hoje move
a sua vida sob a queda gasta
das folhas mais extremas
sob a queda

das folhas
moverá
a espera da estação

que as reconduz
aos ramos que cessaram
e começam

 

A MORTE PERCUTIVA

1
Cobalto nos faróis
no azulado zinco dos cabelos
no calor ampliado das axilas
nas vértebras arando o pavimento

O contacto cruzado e celular dos ouvidos no vácuo
a esfera de sangue nivelada à distância dos poentes da terra
o impossível fixo das marés
o mar
e a lua vazia de folhas e animais

O movimento do suor no ar
o cansaço nos troncos e no sol
a terra
o fumo os ascensores os incêndios
a suspensão dos astros sobre a noite

O nível do cobalto a construir a morte nas vertentes
a penumbra das rectas
os arbustos fechados no quadrante dos pulsos golpeados
a sede o espaço o pânico
a mobilização do horizonte
no patamar de vento da cidade

8
Caíram folhas brancas nesta casa
o soalho de chumbo e gasolina
mais envelhece a perguntar o dia
caíram no soalho bombas rápidas

Ergo nos dedos ossos esmagados
e fica o pó das folhas nas retinas
mais velha faz-se a casa na planície
despenharam-se nela aviões ávidos

A pergunta da noite sobre os mortos
vem das aves caídas e da terra
passou o outono já a guerra é morta

e desloca-se o vento para o norte
a resposta da morte envolve a terra
devolve ao chão as folhas e os ossos

 

*

Gastão Cruz (1941) estreou na publicação conjunta Poesia 61. Também é crítico - seu livro de ensaios A poesia portuguesa hoje é obra de referência nos estudos de poesia portuguesa.

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