ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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EVERARDO NORÕES

 

 

 

 

Primeira Virtude Teologal: O barroco indígena

 

Acosta Ñu

 

Eu sou

o curumim de Acosta Ñu.

Gritos afogados no céu.

Mãos cabelos úmeros

no fogo do martírio,

nos espaços mudos.

Eu sou

o curumim de Acosta Ñu.

Somos três mil meninos mortos,

nos escombros da palavra:

eu sou

o curumim de Acosta Ñu.

Pirâmides degoladas,

labaredas de vozes,

Teu ungüento:

Ore ru reiméva yvágape,

toñembojeroviákena nde réra.

Taoreañuamba ne mborayhu.

Olhai pelos que somos mortos:

eu sou

o curumim

de Acosta Ñu.

 

 

Meditações de Frei Martinho de Nantes

 

1

 

Oferto maiúsculas

ao Índio, nome e signo,

nas brenhas do

São Francisco,

pedindo à divina Majestade com

uma reconaissance la plus humble

os efeitos de sua misericórdia

sobre os pobres Selvagens.

Nos ermos da Igreja

ou

nas ilhas do Grande Rio Opará

(que nada lembra o Loire),

nem a douceur angevine.

De sol a sol,

a louvar a surpresa

e a tolerar a desgraça:

mesmo ao saber que apenas resta

a pena que se cumpre

no escasso papel

a brilhar à luz

de tua Graça.

 

2

 

A chuva fina – crachin –, o céu cinzento. Número de

passaporte, papéis formulários,

a ficha 17 sobre a mesa da Biblioteca de Nantes.

O pequeno livro, 307 anos, arquivado sob o número

36105 R,

relação sucinta impressa a Quimper, chés Jean Perier,

imprimeur du Roy,

du clergé et du Collège, da missão de Martinho de Nantes,

capuchinho, entre os Índios Cariris.

Na última página, caligrafia cursiva, Mademoiselle...

(o nome riscado, pouco importa),

sem data de impressão, a permissão do Grande Vigário

datada de 31 de dezembro, 1706. Firmada Jacques Furic,

padre, Vigário-Geral do Capítulo,

Sede Episcopali Vacante.

As vozes afogadas no rio Opará ressurgem no estuário

do Erdre:

piracema de estrelas.

 

3

 

Dzubukuá dos Cariris.

Língua travada,

lavada no rio

de horizontes mortos,

lavrada entre rimas e pedras,

através de serras e sombras.

Tramada entre caatingas e matas,

soprada entre nós da semântica,

a esquivar-se fumaça

que nenhuma brisa perturba

e nenhum fogo aquece.

Língua tombada

como o próprio Deus,

que a palavra fez brotar

entre ser e

semente.

 

4

 

Sonho um sol esmaecido de dezembro,

pássaros pensamentos,

criaturas do grande pântano,

o frio que paralisa a boca

e endurece as palavras.

Recordo a submissão da neblina

hóspede do tédio,

cuspida sobre o corpo das águas

no porto distante de uma cidade francesa.

E me escrevo

o último exercício de misericórdia,

enquanto a luz paralisa meus instintos

e uma grande mão

me atormenta e guia.

 

5

 

A geometria das árvores

inverte a natureza

dos eclipses:

copas horizontais,

tão distintas das florestas que percorri antanho,

onde tudo se alonga

e busca, em silêncio,

o Infinito.

No verdor das folhas,

o amargo que impede o claro

e nada filtra.

Nem mesmo

as réstias que fulgem

no descampado

e destroem

o arco

do Teu esquecimento.

 

6

 

Entre o grito e o eco,

Luz repentina:

céu a sucumbir nas folhas,

futuro na neblina dos espelhos:

um rosto.

Entre o eco e o grito,

uma nudez repartida,

campo sem flores,

o estigma na porta:

a Mão.

Entre o grito e o eco,

inquietos ramos.

E essas vozes aquáticas

vertidas no despenhadeiro

dos dias.

 

7

 

Nihil obstat:

reza a muito católica firma de Jacques Furic,

padre, Vigário-Geral do Capítulo, da Sede Episcopali

Vacante.

Tenho fome de palavras

para designar o feio,

auscultar os caminhos,

diluir a vontade.

Tenho sede da língua que não domo.

Busco não ser mais bárbaro

do que o bárbaro.

Assim,

faço do fio negro

a escorrer no papel

o traço de minha servidão.

 

 

Santa Maria Tonantzintla

 

Dependurados no domo,

entre frutas e pecados

eis o querubins dourados

de Santa Maria Tonantzintla.

 

Têm as pupilas abertas

de serpentes desatadas.

Contemplam a nós, peregrinos,

se esgueirando entre as escadas.

 

Os anjos tortos têm rosto

de um velho diabo menino.

Entre os dentes há sobejos

De grãos do milho divino.

 

Dizem coisas em náuatle

e fazem gestos profanos.

A Virgem, toda em sorrisos,

tiende sus oscuras manos.

 

Quatro pontos se confundem

na cor da rosa-dos-ventos.

O Senhor, de manto púrpura,

cochila entre os ornamentos

 

de uma coluna de cal

circundada de lagartos.

Um perfume de mescal

sufoca os santos ao lado.

 

Santa Maria Tonantzintla

Tem três vestidos de seda,

superpostos; e um jaguar,

a velar sua cintura.

 

Entre nacos de peiote,

de bananas e abacates,

os bordados nas paredes

dos treze sonhos de prata

 

de um ourives enterrado

a três passos do altar :

as garatujas na pedra

sentenciam em que lugar

 

Santa Maria Tonantzintla

perdoa nossos pecados.

Um suor frio me acode

entre os afrescos da nave.

 

Lá fora, entre três colinas,

a silhueta da estrada,

onde, de cócoras, sozinho,

um anjo louco me aguarda.

 

 

 

Segunda Virtude Teologal: Os jogos frutais

 

 

Goiaba (Psidium guayava)

 

A goiaba no pé

sugere o furto,

o gesto do arqueiro,

todas as ilusões da Física.

A goiaba no pé

desdobra escadas,

arremessa cordas

no infinito:

meteorito amarelo

             lançado

                          em nossa gula.

 

De longe,

objeto voado:

sofrê ou canário-da-terra.

 

A goiaba no pé

atiça o pecado.

 

 

Pitanga (Eugenia  uniflora)

 

A pitanga diz :

pode colher-me.

E acena o vermelho sobre

o ocre do barro.

Entre o viço das folhas,

a equação do galho:

a pitanga alvoreja:

sílaba tônica.

Sol raio vísceras:

do fogo, língua.

 

 

Cemitério Judeu

 

Para Saulo Charifker

 

O visgueiro abre sua copa feita em braços.

O rabino pergunta ao filho o nome hebreu do pai.

Fico a pensar que eu não conhecia os nomes do visgueiro,

com suas flores dispostas em calátides,

suas grandes sapopemas

que acariciarão o morto

Sob a vermelhidão do barro.

Faveira,

pracari,

paricá-grande,

andirá,

Andirá feito morcego...

Tantos nomes para o agasalho do tempo!

 

E eu a procurar no dicionário de botânica

a Parkia platycephala,

que domina, nessa tarde de agosto,

o cemitério judeu.

 

 

Terceira Virtude Teologal: O exilado em Argel

 

 

Estátuas

 

Na catedral de Nantes

há um general.

Um general deitado

em decúbito dorsal,

em pleno estado de composição.

Um general deitado,

arrodeado

das quatro virtudes

(nacionais ou teologais):

é um mármore frio,

no branco átrio.

 

Em Argel,

na rua Larbi Ben Mehdi

(enforcado por outro general),

ao ar livre

há uma estátua eqüestre

do Emir Abdelkader.

 

(Na gramática do tempo,

consuma-se a linguagem perfeita

das estátuas.)

 

 

 

As 3 Teologias Investigam o Homem – Ou de como estas se sintetizam no livro novo de Everardo Norões, Poeiras na Réstia (2010)

 

 

Tandô, o anão

 

talvez não visse

o mundo tão pequeno

como o sentíamos

éramos nós

os anões

e ele

punhal à mostra

assassinava a sílaba ofegante

do paraíso

talvez não sentisse

o mundo tão curvo

como o víamos

debruçado sobre os pés

ao oriente de si mesmo

a dominar o círculo

do escorpião

o dente de ouro

a flagrar nossa tristeza

bom-dia tandô

sentado sem pensamentos

no largo da sé catedral

como gostaríamos de ser

dentro do só das coisas

o pão a água e a benção do Padre Cícero Romão Batista

 

 

Carbono 14

 

o carbono 14 recorda

aniversários

lavra

no ocre do desejo

as nervuras da pedra

sob o céu manchado

entre lábios do calcário

defecam mocós

e o sumo da jurema

sedimenta meu sono

num travesseiro de nuvens

o carbono 14

registra despedidas

a rocha

desvela seu tempo

no caderno dos

homens

 

Amoras

 

luz

através da garrafa

púrpura veneziana

e o

pequeno móvel sol

carícia dos postigos

tudo o que filtra

desata

um ar de pedra:

semelha sótãos,

besouros noturnos.

indago:

amora ou soluço:

¿quantas letras ressuscitam

neste branco?

 

 

O anúncio dos bárbaros

 

Hamid, o cego,

disse:

o olho

é apenas circunstância do real:

a lógica não necessita cores.

Disse

e apertou meu braço

com a obsessão dos sonâmbulos.

Abriu a caixa do relógio.

com a ponta dos dedos.

Acariciou as horas.

E se foi.

Hamid, o cego,

tinha pressa:

a horda dos bárbaros

estava por chegar:

pelas escadarias das universidades

ou pelos fundos das

pequenas lojas

onde a dialética da escuridão

fabrica seus fantoches.

 

 

 

 

*

Everardo Norões nasceu no Crato (CE). Radicado em Pernambuco. Exilado político na década de 70 – viveu na França, na Argélia e em Moçambique. Organizou o volume “Joaquim Cardozo / Poesia Completa e Prosa” (Rio de Janeiro: Nova Aguilar; Recife: Massangana, 2008)

 

livros de poesia

 

A rua do Padre Inglês (Rio de Janeiro: 7Letras, 2006);

Retábulo de Jerônimo Bosch (Rio de Janeiro: 7Letras, 2008);

Poeiras na réstia (Rio de Janeiro: 7Letras, 2010).

 

traduções

 

Antologia poética / Carlos Pellicer (Recife: Ensol, 2005);

El rio hablador / O rio que fala: antologia de poesia peruana (1950-2000) (Rio de Janeiro: 7Letras; Recife: Ensol, 2007).

*

 

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