ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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EDSON BUENO DE CAMARGO

 

 

 

 

XAMÃS

 

 

o poeta é sacerdote

da própria religião

xamãs inebriados

pensam enganar a realidade

na tentativa de ludibriar a morte

 

clérigo imoral

sua ética

incorpora as realidades de todos os mundos

e outros ainda

 

como Hermes ou  Exu

pendente entre as cosmogonias

carrega mensagens dos deuses

(para cima e para baixo)

 

um bom poeta só o será

ao encarar a sua extinção pessoal

 

Rimbaud foi

bruxo a seu tempo

usou a extinção de sua quintessência

e fez poesia além da palavra

 

 

 

INDISCUTÍVEL

 

 

há um desenho

perfeito em teus olhos

de acumular pedras da estrada

e icebergs a deriva

 

água pura

a salvo

para que se tome

um chá de gosto indiscutível

antes de se morrer

 

 

 

FOLHAS DE VENTO

 

a lua se quebra

em penhascos de faca e gelo vivo

escamas de turquesa fina aguda

plumário de serpente

 

folhas de vento

suçuarana de sopro

suave fumaça leve

que dá vida ao barro

 

irmão coiote

caminha sobre as línguas da pradaria

sobre as pegadas dos que já são extintos

dos que sempre estarão

 

onde o velho jaguar pisa

nasce o caminho

que se revela

a bíblia do homem não é mais a do animal

desfez-se a harmonia

as manchas das costas de felino

escrito está o nome da criança deus

 

porção branda da brisa

serve de alimento

às dores da rocha mãe

o parto do tempo

areia esculpindo o mundo

a cria dos peixes à superfície da água

respirados pelo grande espírito

que é pai e mãe ao mesmo tempo

inflamam os pulmões da terra

cultivam vida até onde se pode levar

 

tornar a lembrar o que vai acontecer

que a chuva já caiu aqui ontem

e cairá lavando as dores e  o medo

por pior frio

há primavera

alento e cores

 

soa o tambor dos olhos

soa o coração nos dedos

soa o trovão

chuva que chega

volta sempre a carne para meus ossos

 

 

 

PEDRAS NUAS

 

corpo de tesoura

(de metal animal)

de corte regular

de linhas femininas girando ao eixo central

destas de coser carnes

sangue em pequenas pedras

a língua mergulhada em aço reluzente

 

doando ao ar todo o espelho

espectro de dias e horas

o livro que contém todos os nomes

que nas bordas trazem profecias

de vates infantis e incompletos

de bandeiras em frangalhos

 

as fotografias espalhadas no lençol

tudo em desalinho o quarto

a janela de vento e cortinas vivas

o recorte da vida

em meio a uma descoberta tétrica

 

a tentativa de racionalizar o medo

enquanto o vento dobrava as bananeiras

e o quintal se transferia ao poucos para o futuro

e depois o esquecimento

em uma máquina de devorar a si mesma

 

nunca mais houve um dia como aquele

e o gosto de menta doce e pedras nuas

calor morno subindo a espinha

fôlego parado em afogo

quase um útero por um segundo

 

lua de água azul

e sempre a mesma memória

 

(quando nasci não chorei

arrancaram-me da morte sem meu consentimento)

 

 

 

TODAS AS COISAS

 

I

 

qual a distância

do latido de um cão?

 

II

 

esta lua trouxe para minha casa

uns panos muito brancos

que alvejados de anil

doem os olhos do menino

(mais tarde se descobrirá poeta)

 

III

 

incomoda-me a lua cheia

e sua menina andando

de braços apertados

em uma braça de flores

que não estão ali

 

ou de braços abertos

tentando enlaçar o vento

com seus dengos

 

com olhos de regato seco

e sardas na cara

que pisa insolente

nas águas do rio em que me banho

 

(ou não serão mais

as mesmas águas?)

 

IV

 

pois que todas as coisas

tem um nome

e este nome as pariu

 

 

 

PLANO

 

um peixe

com um dado

desenhado no dorso

qual tatuagem

 

de um azul elétrico

de facas de aço novo

que corre o corte

 

e soa em harmonia perfeita

de pássaros pendentes

em fios que seguram o horizonte

entre postes

cinco linhas matemáticas

pauta natural

 

em geometria própria

a música do universo

que emenda vidro e cristal

(como grito)

 

e tudo são olhos

de ver verticalidades das montanhas

que ocupam silenciosamente

o fundo do plano

 

 

 

EFÍGIE

 

o olho de uma mulher

é uma efígie

 

e todo aquele

que se aventurar

além do limite do horizonte conhecido

mergulhará em um vazio escuro

 

onde em frio espaço

em silêncio de pedras

de queda interminável

estarão todas as respostas

 

e nenhuma será reconhecida

 

 

 

NOVAS PALAVRAS

 

não inventario novas palavras

estas me inventam

com boca de sede insaciável

e primaveras com dentes

 

as letras são códigos completos

cada uma

carrega um poema vítreo

olhos de peixes fossilizados

em complexidade

 

toda a palavra é criação

desde o princípio de tudo

até o último suspiro da matéria escura

 

desde a água vermelha

que me completa

até as pedras calcárias

produzidas em meus rins

 

 

 

placenta

 

vento

desenha seu movimento na grama

uma mão invisível

acaricia os pelos de um gato imaginário

que se eriçam

 

a terra aparenta

ser um animal dócil

mas carrega as entranhas de felino e fera

a placenta da destruição espera

 

nos talos e espigas

se equilibram bicos de lacre

(aves clandestinas neste solo)

o macho e a fêmea

a ensinar a colheita a seus filhotes

juntos fazem a refeição

em espreita

batendo em revoada

até ao movimento do vento

 

 

2

 

neste canto do mundo

os pássaros vivem suas vidas

não são parte

das tragédias que os emolduram

 

este sinistro conjunto de prédios de calcário queimado

e esqueletos de ferro e aço

é uma casa da dor

onde se mordem as palavras

antes de alcançarem as línguas

todas as pústulas e dores

as partes finas do corpo

delicadamente cortadas

e extraídas

 

 

3

 

bebo o tropeço

dos insetos ao rés do chão

em sua marcha perene

que pode abolir o tempo

 

onde tudo é uma máquina de devoração

 

 

 

4

 

ai de nós que sabemos

de nossas dores

e dos dias de morrer

após os dias de viver

escritos no livro dos testemunhos

 

e do quanto nos recusamos a esta justa medida

 

 

 

5

 

agora é hora

de só observar

e aceitar a aragem

acariciar com suavidade

 a grama

 

 

*

 

Edson Bueno de Camargo nasceu em Santo André (SP) em 1962.  Mora em Mauá (SP). Publicou: o livro de poesia Cabalísticos na Coleção Orpheu – Editora Multifoco (2010), De lembranças & fórmulas mágica,” Edições Tigre Azul / FAC Mauá (2007); entre outros títulos. Foi publicado esparsamente em algumas antologias poéticas, jornais e revistas literárias, no papel e na Internet. Correio eletrônico: camargoeb@ig.com.br.

*

 

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