ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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DONNY CORREIA

 

 

 

GRAF ORLOK

 

nave lançada

ao mar:

 

peste

 

passeia

entre nautas

morte eminente

mascotes

roedores

águas castigam

o casco

 

um a um

corpos robustos

quedam-se

ressequidos

 

 

noturno               títere

zumbi               acordado

ergue                  ereto

do                    caixote

a    r   r   a  n  h  a  d  o

 

a loucura

paira através

do horrendo resto

sombras

governam o convés

 

ao ancorar

do umbral a velas

um conde

com sua morada

a tira colo

reconhece a

vizinhança:

 

nova

condenada

 

 

DECRÉPITO

 

encéfaloesterco semeando

soberba

 

pela goela vejo seu

câncer d´alma

cisticercose em sua suína

arruinada demência

 

pestilência é seu fetiche

matraca incalável

bibelô, palhaço:

seus espelhos

 

sua voz sifilítica

seus hormônios vazios

boneca de silicone

a caminho da flacidez perpétua

 

velha cela de pele, ossos, e vácuo

 

seu ibero-sangue

cegou a caverna sem fundo:

          seus olhos

 

bigorna, martelo, estribo

          surdaram

e, assim, seu surto de rameira

     (enfadonho, cafona)

exigem meu nome

     nesse contrato acintoso: vergonha

 

os vexames de nossa ex-cama

     regalo agora a só você

     com asco

 

do poço, seu eco:

     meu cuspe

 

p.s: com face de farsa, histérica, arredia

       você morreu: paixão cretina

       e foi ser minha escrota poesia

 

 

KANÇER (UM SOLILÓQUIO)

 

I

 

Quando me convenci

de que eu era imortal

veio o Doutor e disse:

- É câncer...

 

Aquela coisa tagarela,

pulsante e, em certo

aspecto,

imunda

era um câncer.

Faminto roedor que,

forjado por células

mortas, tragou

a fumaça que eu pensava

expelir ao mundo

e cresceu viçoso e

Traiçoeiro.

 

Uma femme fatale

beijando-me lixo

amando-me sobras

trepando-me restos

 

 

II

 

Aquele ser

de vontade própria

fazia com prazer

a fotossíntese em

meus brônquios

como se o pulmão

tornado, agora,

vaso de um bonsai das Bestas,

fosse o pasto, a laringe

uma latrina,

a descarga, o coração

 

 

III

 

Às vezes cheguei a sentir

subirem a sopa e o suco cadavérico

à boca em arrotos

de azia.

Desciam de volta, ardidas no peito,

gota após gota como se, do câncer,

fossem lágrimas de alegria

pela fartura indigna:

Ainda que não o merecesse,

esse câncer me tinha.

 

 

IV

 

Este obscuro mascote

carrega em si muito

mais de mim

do que eu mesmo posso.

Este tufo de morte me

regala como

o pão por Cristo aos seus

discípulos.

Se assemelha a um alarme

e soa sempre tresloucado

quando sinto certo riso

despertar em minha arcada.

É o riso de quem se esquece

por um átimo, o ataque

virulento de tal

pólipo depravado.

Mas é Claro que o diabo

agarrado em meu pulmão

grita logo e muito alto

recordando que, de assalto,

Esse pulmão não é

mais meu.

 

 

V

 

Portanto

o alívio de um sorriso

é o mau hálito

de um morto falante.

E assim sou a casa

de uma peste

morada da morte

hospício dos vermes

refúgio de um beijo

adúltero.

Mas,

 

 

VI

 

Amigo,

imundo amigo,

a você proponho

um pacto de obediência

mútua:

Te alimento mais e mais

com a fumaça suja

com o tabaco sábio

e você

rói

mais doce, moderado

mais lento

minhas carnes de dentro

e me ajuda a enganar a

morte, a trapacear

os urubus.

 

 

VII

 

Prolongue minha vida

insípida

que eu prolongo seu

banquete último

provoque pouco estrago

a curto prazo

que, a longo,

comerá mais de mim

entregue à sua gana torta

em bandeja necrotéria.

Rói

mais lento

minhas carnes de dentro

 

 

VIII

 

Eu serei seu alimento

e você, o meu motor

serei seu combustível

e você, meu velocímetro

serei seu servo

e você, meu amante

autoritário.

Algoz atento,

rói

mais lento

minhas carnes de dentro

 

 

IX

 

Riremos juntos

do tempo.

A você juro fidelidade:

Nem químio, nem rádio

terapia alguma,

nem Hidréia.

Sei que esse o executasse

se tentasse extrair de mim (que

de pouco eu mesmo tenho)

sua raiz primeira plantada

em meu adubado pulmão,

você voltaria, mais forte

mais sedento, mais insano

e insensível,

para cobrar a quebra de acordo.

Então juro fidelidade

como jamais fui fiel a algo

ou a alguém.

 

 

X

 

Siga:

Roendo

mais lento

minhas carnes de dentro

 

Já não me toco.

Não me sinto.

 

Estátua de pedra permeável

por cuspes e risos de hienas

obsessivas, sou.

 

Passe um ano ou passem

cem, amigo, imundo amigo meu,

rói

mais lento

as carnes sujas de dentro

Que as de fora, vou à forra,

E rôo eu.

*

 

 

Donny Correia, poeta e tradutor, nasceu em São Paulo, em 1980. Morou em Londres entre 2000 e 2003, onde editou uma coluna de entrevistas no jornal Brazilian News. Publicou o livro de poemas O eco do espelho (2005). Atualmente, é coordenador cultural da Casa das Rosas, Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura.

*

 

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