ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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CASIMIRO DE BRITO

 

 

 

 

1

 

Só a música de mulheres, cheia de fruta,

alimenta os restos da infância.

 

 

2

 

Foram aves polidas na boca dos poetas

e na boca do vento polidas

as palavras de lume

sobre as maravilhas do mundo e as outras,

as que foram criadas pelo homem, a quem a morte

jamais se furta quando ele demanda

auxílio. Palavras luminosas de agonia

que pedras cegas festejadas pelo sol e pelas águas

ouviram. O mistério ouviram, esse que perdura

tanto nos poemas como na sílica em sua disputa

pela arte mais obsessiva: o ofício

da duração. Amar a vida inteira.

Por mim, que fui feliz em Epidauro, em Jeita

e noutras camas de relva e caruma fui feliz

regresso a palavras como quem mergulha

num charco púrpura onde se ouve ainda

a voz do antiquíssimo

coração.

 

 

Sófocles.

 

3

 

Fui jovem nas danças quando nos teus braços

respirei, no doce vazio que me deixava

entrar. E cantei. Não fales,

não digas nada se te resta algum segredo

na boca. Deixa-me ser triste,

a tristeza enrouquece-me e já não sei

se o amor é possível ou já caído.

Fui jovem nas danças.

Não digas nada, se acaso te resta

algum sabor nas bocas do corpo.

Deixa-me respirar

a flor cansada

que nada sabe

do seu mistério.

 

 

4

 

De muita carne alimentei a chamada alma

caminhando ligeiro por cima da cabeça

dos meus irmãos____ uns bebendo a flauta, outros ofuscados

pelas uvas do amor. Eu, que só queria dançar,

afasto-me chorando; abrigo-me

nas fendas da infância, na primeira sílaba

contra a luz escura. As lágrimas foram desde logo

naufragadas no corpo de mulheres

 que tanto amei. Os óleos do mar, o caos, a matriz

em carne viva, a fonte secreta

canto. Agora que não há leito nem sono

para as minhas mágoas. Árvore

nenhuma. Não sei que horas são, sei apenas

que já me pesa a densa luz, a casa

 desafinada. E eu que só queria

 dançar.

 

 

Homero. Platão. Shelley.

 

 

5

 

Vinho não me falta e vou bebendo

na sua fonte, amigo mais fiel

que musas. Mas o mundo,

insano e fugidio,

jamais me recusa o canto nem mágoas nem

prazeres. A poesia é, antes de mais, ser amável

como se o dia estivesse a começar mas também

um dom que dói. O estrume, a discórdia.

Amado serei por musas ainda cintilantes

mas tenho o coração calcinado

e não sei que fazer com a rosa

dos dias. Uma dança de caruma

e pó. Como se as palavras que vou pescando

fossem conchas de espuma.

 

 

6

 

Amado nem sempre sou

pela musa que já me lembra

o som da idade

o campo de folhas mortas

onde todos os poemas

 estão deitados.

E onde,

ao fim da luz

 me deito.

 

 

Sólon.

 

 

7

 

Só quem sofreu durante muito tempo

poderá escrever um poema de amor.

Chega o dia em que o som do vento

e a febre das folhas que vão caindo

já não trazem desgraça, apenas o sussurro,

a perdição amável de quem vive

a sombra e o Verão. Assim viajo

 até ao voo derradeiro

para dentro da pedra — um ovo!

E voar de novo, “à barca, à barca (…) oh, que maré

tão de prata!” — e cantar de novo,

de pedra em pedra, de ovo em ovo.

 Faça-se então

o ofício da dor. Talvez me seja dado

um poema de amor.

 

 

Gil Vicente. Camões.

 

 

 

CINCO POEMAS DO LIVRO INÉDITO

AMAR A VIDA INTEIRA

(TERCEIRO VOLUME DO “LIVRO DAS QUEDAS”)

 

 

*

Casimiro de Brito nasceu em 1938, em Loulé e tem sido um viajante infatigável. Publica desde 1958, e vão mais de 40 títulos: poesia, ficção, ensaio, aforismos, diário, traduções. Está incluído em 197 antologias, um pouco por todo o mundo e está traduzido para 26 línguas. Está a escrever: o Livro das Quedas (poesia), o Livro do Eros, o Livro das Obsessões (fragmentos), o Livro dos Haiku, o Livro do Desejo (ficção), o Livro das Pequenas Coisas (quotidianos). A obra anterior será reunida noutros “livros”. Ganhou vários prémios nacionais e internacionais: o Versília, pela obra reunida; o Leopold Senghor, pela carreira; o Europeu de Poesia, pela tradução italiana do Livro das Quedas (Libro delle Cadute). Conselheiro da Associação Mundial de Haiku (Tóquio); nomeado recentemente Embaixador Mundial da Paz (Genebra). Quatro dos seus livros: Labyrinthus (Prémio da APE), Opus Affettuoso (Prémio do PEN), Na Via do Mestre, Da Frágil Sabedoria.

*

 

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