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ARMANDO FREITAS FILHO


Foto: Sérgio Liuzzi

 

 

TERCETOS NA MÁQUINA

Tercetos terríveis
de tantas arestas soldadas
sem cuidado e melodia.

Suas linhas diferem
em alcance e precisão
além de toda medida.

O pensamento não parou
para refinar um pouco
a irrecusável caneta de ferro

ora em brasa, ora gélida
na escritura minuciosa
no contraforte da montanha

onde a aparição - esfinge
tácita - se debatia
atrás da couraça imóvel.

Atrás do coração controverso
que não se expunha
para fora do seu pulso

mostrando em baixo-relevo
na treva do chão, a ferrugem
da existência corroída pela dor

inevitável, inerente
apesar da mirada azul
do olhar e da serra.

Que não poupava ninguém
no corte da sua herança:
laços de sangue coagulados

há tanto, na terra devoluta
que escorreu, entre os dedos
fracos e quebrados do malvisto 

nascido para o desmonte
e carência, enquanto crescia
sob a luz da derrisão.

Iluminação negativa provinda
de um sol desligado, repentino
que ainda brilha na memória

da retina, e vai se retirando
dentro do passo do dia
quando cai, no lusco-fusco

em meio à pedra e céu
e atinge o instante do equilíbrio
de perfil e fundo, no ar.

Maio não há nesta tarde
sem eflúvios, nem flores
em coro, no campo ermo.

A perfeição da morte
longe da mortalha de Minas
no esquife que estala

o verniz novo, forrado
de exato fustão áspero
capitonê, e o corpo

enverga o rigor do seu rosto
que se acentua pela decisão final
e irrecorrível, que transpira

através do terno grosso
na noite dos livros fechados
na escrivaninha, depois exposta

dependurada na abóboda, numa
espécie de mudança interrompida:
nem nave ou ave metafórica

mas mesa de madeira irredutível
que cede à transcendência
absorvendo os riscos, os lanhos

com suas gavetas fechadas
de chaves perdidas para sempre
recuando para o lenho original

durante o rosário de horas do relógio
da escrita suspensa e superposta
de releitura detida, no tampo

em que o encaixe se fixou
a martelo e pregos batidos
até o fim, até que, da ponta

à cabeça, cada um desapareceu
na espessura do cedro duro
seco, estanque.

O nome chegou antes do féretro.
Letra por letra composto
e alfinetado no veludo negro:

exposição aguda debaixo de luzes
em riste, em pleno uso
sobre o casco opaco, irremediável.

Já sem mediação ou escanção
imediata, o vinho do seu copo
a vida e o verso se adensavam:

se reuniam, concentrados
em uma só sentinela
e o seu brusco sentir silencioso

se distribuía, cifrado, não oferecido
nas entrelinhas tortas, escuras
feitas de recusa, remorso, labirinto. 

O desígnio da clara esfinge
é difícil - refulgenigma
no sol-posto, seu recorte:

pedra bruta sem preparo
ensimesmada na estrada
coisa em si, sem fim.

 

Escrito a partir da leitura do livro Razão da recusa, de Betina Bischof.

 

*

Armando Martins de Freitas Filho nasceu no Rio de Janeiro, em 1940. Publicou, entre outros, os livros de poesia Palavra (1963), Dual (1966), Marca registrada (1970), À mão livre (1979), De cor (1988), Números anônimos (1994), Duplo cego (1997), Fio terra (2000). Em 2003, publicou Máquina de escrever - poesia reunida e revista (1963-2003), e em 2006, um novo livro de poesia, Raro mar.  Recebeu, em 1986, com o livro 3x4, o prêmio Jabuti e em 2000, com o livro Fio terra, o prêmio Alphonsus de Guimaraens, concedido pela Biblioteca Nacional. É o organizador da obra de Ana Cristina César. Armando Freitas Filho foi pesquisador na Fundação Casa de Rui Barbosa, secretário da Câmara de Artes no Conselho Federal de Cultura, assessor do Instituto Nacional do Livro, no Rio de Janeiro, pesquisador na Fundação Biblioteca Nacional e assessor no gabinete da presidência da Funarte, onde se aposentou. É um dos principais poetas brasileiros contemporâneos.

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