ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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ANTÔNIO MARIANO

 

 

 

 

DEVOÇÃO

 

Devoto,

eu vos elejo,

Ceres,

bendita entre as fêmeas,

razão da existência

de minha fome.

 

A senhora é pra comer

rezando,

banquete divino

que se renova

em moto-contínuo,

pés,

mãos,

olhos,

boca,

peito,

umbigo,

greta sagrada,

orifício,

ajoelho-me

e vos adoro.

 

 

ZERAR-SE

 

Pulvis et umbra sumus

Horácio

 

Partir

sem deixar

lembrança, mormaço

cheiro, grunhido

pó ou sombra, Horácio.

 

Partir

nenhum prévio aviso,

esfumaçar-se.

 

Partir

sem dizer adeus

nem ao diabo.

 

 

CANTO INFAME

 

Patife

é matéria

que quebra

quando cai.

 

Vaso ruim,

se espedaça,

cacos, farelos,

pó que o vento leva

pro inferno.

 

Estátua de sal,

um olho maior

espatifa-o

basta voltar-se

para trás.

 

 

REACIONÁRIA

 

O contato da colher

no prato vazio

como toque de recolher.

 

Código de sentido

comum a subviventes,

vísceras malsãs.

 

Subversiva,

a poesia da fome

não implora

direito de expressão.

 

Nada, liberdade:

afundam homens e animais

fraternos na miséria,

todos desiguais.

 

 

FLOR SELVAGEM

 

(a partir do conto São Marcos de J. G. Rosa)

 

mandinga bendiga

seiva seja saravá

não zombar da alheia fé

a filosofia de lá

palmas claras e mãos negras postas

aliviam a dor dali

desfazem o caminho sem

volta, esfera do desespero

moendo o redemoinho

tição de fogo benzendo a pólvora

reza braba dobrando

o tinhoso que nada terá

preto velho cinge o cenho

vudu não trespassa Rosa

vaidade vento que foi

no coração dele não há

vemos nos sons as verdades

de uma boca desdentada.

 

 

A MEU FILHO

 

Eu vejo um livro

que se move e pensa,

página única e múltipla

em forma de gente.

 

Eu vejo Ivo

com seus mundos

paralelos de palavras

e palavras,

tantos paralelepípedos

na jornada a perder de vista.

 

Eu vejo um filho

que sabe ler

e é lindo

dando-se à vida,

poesia de primeira água,

prosa vigorosa.

 

 

UMA ROSA, MAIS QUE UMA ROSA

  

Uma rosa

não era uma rosa.

 

Batom extraviado

de Gertrude Stein

nos desjardins dos lábios?

 

BAUDELAIRIANA

  

Ela não lê

o poeta francês

mas nele sei-a

completa

flor do bem

aberta

Matematicamente

Delta

 

 

NARCISO AO AVESSO

Sabia que não era feio

e o que insinuava

não era o espelho.

 

Mirava-se

no que era externo,

ilusão de horizonte,

extensão dos olhos,

imagem mais bela.

 

Primeira lição de admirar:

o melhor reflexo

está na janela.

AFASIA


Mendigo
,
calado
,
estendo
a
mão
:
uma
palavra
,
por
caridade
!

 

 

*

 

Antônio Mariano nasceu em João Pessoa, em1964. Graduou-se em Educação Artística com habilitação em Artes Cênicas pela UFPB. Publicou quatro livros até agora: O gozo insólito (poemas, 1991), Te odeio com doçura (poemas, 1995), Guarda-chuvas esquecidos (poemas, 2005) e Imensa asa sobre o dia (contos, 2005). Tem um livro de contos em preparo e três romances inacabados. Textos publicados em várias coletâneas e suplementos literários na Paraíba, no Brasil e no exterior, a exemplo de Arco-Íris de Oxumaré, Caderno da poesia brasileira atual, Revista Homúnculos, Número 3, Ano 2 Lima (Peru), Dezembro de 2004 (Org. Claudio Daniel). Em 2010 seu poema Before the dream foi estudado na obra Brazil, Lyric and the Americas (org. Charles Perrone, University Press of Florida). Atuou como editor da revista Correio das Artes (05/2009-06/2010), produto do governo do Estado da Paraíba. É um dos criadores do Clube do Conto da Paraíba. Coordena desde 2004 o projeto Tome Poesia, Tome Prosa.

 

 

Leia outros poemas do autor.

*

 

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