ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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ANA RÜSCHE

 

I. O POEMA ESCURO

Homens do buraco branco são os cidadãos da legalidade metafísica, os habitantes da representação e da palavra anticorpo. O segredo desses homens consiste em que vestiram o uniforme da identidade mundana e acabaram por se confundir com ele. Esse uniforme, enquanto camisinha gigante, blinda o corpo contra a visita apofática do buraco negro e contra a visita epifânica da criança na corredeira, criança em estado de milagre. O homem uniformizado é um assustado, pois o abrigo na forma da determinação identitária está sempre ameaçado pela latência dos chacais. Como ensiná-los a amar os chacais que estão à espreita?

Juliano Pessanha

 

1. O POEMA BRANCO

e ela montada
no topo da bicicleta ergométrica
uma caixinha de música
laqueada como gelo
a rodar, a esperar
a agulha hipodérmica de endorfina
para capar seu coração.

um romance raso.
eu queria ser um esquimó
mas entre uma faísca e outra,
o frio da estroboscópica,
a solidão me dá picadas
uma cocaína negra com mel
que me anima. 

minhas mortes são semanais.
em lençóis alugados por pernoite
no degelo de teus cabelos negros
de latin lover 

e como você faz a tantas donzelas
teus dedos apalpam
minha pequena morte úmida
e lhe aplicam um
grito seco na canção de rádio pela tarde
olhos pretos cheios de branco

mas agora é escuro
pela pia de mármore duro
ela derrama a borra de café
que se transforma em terra
e embala os natimortos de nossos sonhos

um romance raso.
e ela entediada roía unhas
na internet os esquimós
seus pés assustadoramente descalços.

 

* * *
 

engole o peixe com a espinha
e tocarás a guelra de Deus
 

- Afonso Henriques Neto

 

A CANÇÃO DO LIMPA-VIDROS

eu, um peixe de aquário, gordo,
consumindo o que surge dessas águas turvas.

os passantes lá embaixo como polvos de patins,
uma menina com um buraco-negro a tira-colo e
chicletes.

ao lado dos jornais de internet,
meus cactos morrem em sua compulsão por água.

os ursos polares serão extintos pelas geladeiras.
na austrália, baleias se suicidam na areia.

continuo consumindo qualquer coisa que brilhe um pouco,
eu, um peixe a apodrecer gordo nessas águas sujas.

 

Não há mais novenas
porque os santos só saem
dos esconderijos
para as missas solenes.
Minas, prendei vossos santos.
 

- Donizete Galvão, Santos nas grades 

 

INACABADO SOBRE  BRENNAND

                             ao beto

as meninas de francisco
já nascem de calcinhas velhas
e culotes à mostra

as meninas de francisco
desabrocham
bicos de seio de barro e se deixam bolinar

as meninas de francisco
despetalam
de flor vermelha e choram orando para o céu

as meninas de francisco
nunca foram donzelas

 

*


Ana Rüsche (São Paulo) publicou dois livros de poesia, Rasgada e Sarabanda. É uma das organizadoras do evento literário anual FLAP e colaboradora do jornal literário Casulo.


*

Leia também um ensaio da autora sobre o Expressionismo alemão.

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