ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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ADRIANO BOTELHO DE VASCONCELLOS

 

A morte da música pode ser lisa entre o início de um verão
e a direção que faz o silêncio. A surdez levanta a imagem
que a sombra distraidamente enterrara a cinco
palmos do chão. Para o coração se salvam as gaivotas
que levaram os mares para bem perto do sol que se despe
com o jeito das mulheres. A cicatriz é delicada
como se tivéssemos que olhar para a memória
com uma outra escolha astúcia. Hesita-se mas sabemos
que no ombro se fazem as glórias muito breves
e à deriva do coração. Cada erro persegue o espírito
que faz o teatro dourar mais que uma lágrima, um longo
cenário acaba por disfarçar-nos perante
o que nunca fomos. Faz-se um corte no dedo indicador
quando se perde a aurora para que a terra
fique mais perto da insónia. Vemos o abandono da juventude
vindo agora de nós uma interpretação
sem chamas. Por isso as palavras vão compondo
numa só estrofe o que a vida mesmo atenta não pode
consagrar.


* * *

As armadilhas foram apresentadas depois de terem
escrito num ofício os epitáfios, porque o declínio não se pode
suportar só com as promessas dos irmãos. Os irmãos sabem
que só podem estar de costas dadas uns para os outros
na direcção cuja geometria só os poetas conhecem,
porque a direcção do sabre tem a sua força na perfeição
da sombra que foi preparada pelos que foram escolhidos
para serem heróis depois de passarem acordados
sete dias na escuridão para pensarem com fundo suficiente
de vidas humanas como se impedem
os editais.


* * *

Uma ilusão levanta-se de um escombro mas não se apanha
o poeta que por ela mais a ensaiou num percurso e palco
que nunca fora estranho a Deus. Um cágado não pode passar
limpo e com estilo pela cinza porque não viu
como mais à frente se salvou uma lavra. Salva-se algo
como a primeira escolha
apesar de todos não terem para onde se virar senão
para a fé da palavra que nos pede
um momento
de vaidade.


* * *

Tudo o que foi quase um poema veio com o teu âmago
e talvez seja essa febre interior que te faz
corrigir com as lágrimas a posição
dos guaches.

*

 

Adriano Botelho de Vasconcellos nasceu em Malange, Angola, em 1955. Publicou, entre outros livros de poesia, Voz da terra (1974), Anamnese (1984), Tábua (2004), que recebeu o Grande Prêmio Sonangol de Literatura, e Olímias (2005).  Organizou os livros Caçadores de sonhos: antologia do conto angolano (1960), Boneca de pano: coletânea do conto infantil angolano (2005) e Todos os sonhos: antologia da poesia moderna angolana (2005). Atualmente, é secretário-geral da União dos Escritores Angolanos (UEA).

*

 

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[REVISTA ZUNÁI- ANO III - Edição XII - MAIO 2007 ]