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 SADOMASOCHISMO NO CANCIONEIRO BRASILEIRO



Revista Cult/ Reprodução

Glauco Mattoso

 

O texto dialogado, abaixo transcripto, foi extrahido da columna BOLINHOS DE CHUVA, assignada por Glauco Mattoso no portal Cronópios na qual sua interlocutora é Beatriz Goldonut (a Bia), que tracta o poeta por "tu".

O texto original foi postado em julho de 2006.

 

 

 


- Glauco, hoje vou ser sadica comtigo: si não tiveres resposta prompta p'ras minhas questões, tiro os bolinhos do teu alcance...


- Orra, Bia, cada maldade que você inventa! Que pergunta tão complicada é essa?


- Ja estamos no assumpto: tu me aponctaste o sadomasochismo na litteratura, mas ainda não me fallaste quaes são as obras-primas do thema na musica popular, ou mesmo si existe tambem alguma canção essencialmente podolatra. Chegaste a analysar isso?


- Não vae ser desta vez que me deixo torturar: portanto, o masochista é que vira sadico, privando a sadica desse gostinho. Vim prevenido, ja que você tinha dicto que iriamos fallar de MPB. Aliaz, o CD que lhe gravei desta vez é justamente uma selecção SM contendo Noel Rosa, Ary Barroso e Sinhô, p'ra attender a uma inevitavel abordagem thematica.


- Do Sinhô só pode ser a marchinha "Pé de anjo". Mas Noel Rosa?! Ary Barroso?! Não me digas que Noel e Ary são mais SM que "Assum preto" do Luiz Gonzaga! Pensei que fosses resumir tudo na cegueira...


- Sob esse poncto de vista, ou de falta de vista, não posso fugir daquelle exemplo implacavel do Gonzagão. Mas o que achei em Noel é mais que exemplo de "maldade das pió" só porque "furaro os óio do assum preto p'ra elle assim, ai, cantá mió": achei a propria philosophia que tá por traz desse gostinho de fazer soffrer ou de se fazer de soffredor. Digo até que o Deleuze tinha que ter ouvido Noel antes de elaborar sua theoria comparativa de Masoch e Sade.


- Nunca me commentaste coisa assim de Noel. Sei que elle é cheio de lamentação pelos fracassos do amor, attitude aliaz natural num cara consciente da sua inferioridade physica e physiognomica deante da rapaziada saudavel. Mas dahi a se especializar em SM... Onde foi que foste buscar essas revelações? Não foi nas mulheres dos malandros, foi?


- Isso é o que não falta na MPB: sambas como aquelle do André Filho, "Mulato de qualidade", onde a Carmen Miranda canta que "vivo feliz no meu cantho sossegada, tenho amor, tenho carinho, ai, tenho tudo e até pancada". Na verdade nem são só as mulheres que levam porrada: um dos sambas mais antigos, do Canninha, se chama justamente "Essa nega quer me
dar", dizendo que "eu não fiz nada p'ra apanhar... Pancada de amor não dóe, por isso apanho calado"...


- Si formos por ahi, lembro até daquelle do Gadé com o Walfrido que ouvi outro dia no disco do Joel & Gaucho: "Estão battendo, si for commigo diga que não estou, só pode ser o cobrador! É a mulata que ha pouco tempo você abandonou, está zangada, de cara feia, e traz um vassourão p'ra te batter..."


- Mas ahi ja enveredamos pela comedia total. Gadé e Walfrido são humoristas inveterados. Não é por ahi que analyso. O que quero dizer é que Noel não se limita a quem leva ou quem dá a surra: vae do physico pro psychologico, explica por que o prazer do sadico depende do prazer do masochista, e vice-versa. E não é numa canção só: achei uma meia duzia philosophando em volta disso.


- Por exemplo?


- Numa elle se faz de masoca autosufficiente; noutra, de sadico do contra. E tem até uma do Ary que mostra a incompatibilidade entre dois sadicos, provando que o sadico precisa dum masoca. Vou por partes. No primeiro caso, cito o samba "Eu sei soffrer". Repare na parte que diz: "Quem é que ja soffreu mais do que eu? Quem é que ja me viu chorar? Soffrer foi o prazer que Deus me deu. Eu sei soffrer sem reclamar. Quem soffreu mais que eu não nasceu. Com certeza Deus ja me esqueceu. Mesmo assim, não cansei de viver, e na dor eu encontro o prazer. Saber soffrer é uma arte, e, pondo a modestia de parte, eu posso dizer que sei soffrer."


- Esse é mesmo um masoca convicto e conformista. Mas que seja autosufficiente, ponho em duvida. Si alguem quizesse polemizar dando uma de Glauco, podia dizer que esse masoca não seria independente da pessoa do sadico, porque o papel do sadico ahi é representado pela figura de Deus. Que me dizes, Glauco?


- Digo que você está chegando onde eu quero. Veja o segundo caso, do sadico que se affirma justamente por contrariar a vontade do masoca. É o samba que diz: "O maior castigo que eu te dou é não te batter, pois sei que gostas de apanhar. Não ha ninguem mais calmo do que eu sou, nem há maior prazer do que te ver me provocar."


- Seria esse aquelle sadico authentico de que fallava Deleuze? Daria p'ra dizer que esse sadico seja autosufficiente?


- Pretensamente autosufficiente, como no caso do masoca. Repare que o masoca só sahirá frustrado si desejar o castigo physico que o sadico lhe nega. Mas si o masoca achar prazer no castigo psychologico, os dois acabam se satisfazendo mutuamente, certo?


- Em these, sim. Precisa ver si na practica essa situação é facil de acontecer.


- Agora veja o terceiro caso: são dois que se separam porque ninguém quer se sujeitar ao papel do masoca. É o samba "Duro com duro" do Ary, que diz assim:


Meu bem, tudo acabado,

cada um para seu lado.

Nosso amor não nos convem.

Você, o que pensa, faz

e eu tambem não fico atraz.

É sabido que ha mal que vem para bem."


Em plena liberdade

viveremos à vontade,

sem mentira e humilhação.

Ser feliz na apparencia

eu não quero, tenha paciencia,

nem devo escravizar meu coração.


Sei que você tem prazer

vendo alguem padecer.

Eu tambem sou assim.

De maneira que a nossa união

seria um horror, não me diga que não,

pois duro com duro não faz bom muro.


- Engraçado, né, Glauco? O Ary usa um vocabulario typicamente SM, falla de humilhação, escravidão... Parece mesmo intencional.


- Por isso mesmo é que vejo nelle e no Noel uma postura de philosopho do thema e não meros repetidores dos chavões do malandro que manda e da mulher que obedece. Noel vae alem da pancada. Elle capta o espirito da coisa.


- Tu dirias que elle chega a uma conclusão?


- Elle deixa a conclusão a nosso cargo. Mas eu só reforço aquillo que já penso sobre o assumpto: que não existe "o sadico" ou "o masochista". Não importa si o acto é physico ou só psychologico. A questão tambem não é si um pode ou não se satisfazer na relação com o outro.


- Qual é então tua these?


- Simplesmente a de que o unico termo possivel, para qualquer um, é "sadomasochista". Todo sadico é tambem masoca, e vice-versa.


- Como assim? Queres dizer que todo mundo é capaz de inverter papeis?


- Exacto. Mesmo que não chegue às vias de facto, ou mesmo que só ponha em practica um dos lados. A explicação é que não existe um sadico que não imagine o que o masoca está sentindo, e não existe um masoca que não se ponha no logar do sadico p'ra phantasiar como o outro goza emquanto elle soffre. Portanto, não é que um não viva SEM o outro. Mais que isso, um não vive sem SER tambem o outro. Saca?


- Sabes, Glauco, o Deleuze precisava era ter conversado comtigo, e não apenas ter ouvido o Noel...


- O importante é que você tá conversando commigo, Bia. E ja que continua disposta, que tal ler mais uns sonetos? Suggiro o "Para um contracto de desaccordo" e o "Para um coitado conformado", que estão no CANCIONEIRO CARIOCA E BRASILEIRO.


- Ja pego. Prompto, la vae:



SONETO PARA UM CONTRACTO DE DESACCORDO [2652]


Si sadomasochista foi Noel,

Ary não fica atraz. "Duro com duro

não faz bom muro", e em cyma desse muro

não fica, si a questão é ser cruel.


Casal? Dupla de sadicos? Papel

fará de masochista quem, no escuro?

Alguem tem de ceder, mas "Asseguro

que não sou eu!", diz cada um, rebel.


Quem gosta de ver outros padecerem

não pode ser parceiro dum confrade:

na cama a mesma coisa os dois ja querem.


Dilemma a resolver! Nem mesmo Sade

queria um masochista. Si puderem,

os sadicos torturam quem "Não!" brade.



SONETO PARA UM COITADO CONFORMADO [2683]


Noel sadomasoca se revela

o tempo todo. Às vezes, diz que sabe

soffrer calado aquillo que lhe cabe,

às vezes se revolta e se rebella.


Sorrir de quem padece: elle ri della,

querendo se vingar, caso se gabe

de ser quem, no namoro, tudo acabe,

mas saca que melhor rirá a cadella.


Vingança é só pretexto: o que elle quer

é ver que uma mulata sapateia

até no seu caixão, quando couber.


Emquanto elle não morre, quer que creia

o ouvinte que elle batte na mulher,

mas della é pedestal, bonita ou feia.



(reorthographado em 14/02/2012)

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