ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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 A PERCEPÇÃO DOS PÉS – A NUDEZ ABAIXO DAS CANELAS



Foto: Pierre Gallanger / Reprodução

Antonio Vicente Seraphim Pietroforte

 

“Longe das argolas

 de ferro e  das

roupas  de couro,

para a podolatria,

é suficiente o olhar.”

 

 

 

O sentido do olhar

 

Assim que terminamos a M(ai)S – Antologia SadoMasoquista da Literatura Brasileira, eu e o Glauco Mattoso demos início à organização de mais uma antologia; próxima da mesma temática, seria a vez de uma antologia dedicada ao fetiche por pés. Estudioso do tema desde muito tempo – a primeira edição do Manual do podólatra amador – Aventuras e leituras de um tarado por pés é de 1986 – o Glauco havia recolhido bastante material literário relativo à podolatria, material que nos faltava na primeira antologia. O sadomasoquismo talvez seja, entre os brasileiros, uma prática mais frequente do que se poderia imaginar, no entanto, ainda não faz parte do nosso imaginário cultural o suficiente para dar forma a uma literatura SM. Assim, boa parte dos contos e poemas do primeiro livro ou tangenciava o tema, ou foi composta de textos de escritores contemporâneos, feitos especialmente para esse fim. O fetiche por pés, porém, aparece com mais intensidade. Por ser menos agressiva, a podolatria admite certa delicadeza em sua exposição; admirar um pé suave e delicado está distante dos aparatos – cordas, algemas e chicotes – que o sadomasoquismo, na maioria das vezes, implica. Todavia, como está afirmado acima, SM e podolatria podem se aproximar; os pés também podem oprimir, quando pisam, ou sofrer, quando são maltratados. O próprio Glauco sempre fez essa relação entre o fetiche por pés e o SM; eu mesmo nunca consegui fazer de outro modo.

Selecionados os textos em prosa – contos ou fragmentos de romances – e em poesia, partimos em busca dos autores contemporâneos, como no trabalho anterior. Nos emails trocados, muitos deles confessaram admirar os pés femininos, alguns disseram observar bastante as mocinhas que calçam sandálias – certa vez, em uma cachoeira, minhas amigas sem a parte de cima do biquíni, e eu só conseguia olhar para baixo, em busca dos pés descalços. Longe das argolas de ferro e das roupas de couro, para a podolatria, é suficiente o olhar.

 

As gradações do nu

 

Estar sem roupas é, necessariamente, estar desnudo, contudo, em alguns contextos, o “nu” não se confunde com o “pelado”. Reserva-se, para o conceito de “nu”, certo matiz do erotismo que “pelado”, muitas vezes, não tem; há uma considerável diferença entre ver fotos de mulheres peladas por aí e assistir a exposições de nus artísticos de Botticelli a Mapplethorpe. Talvez, o pornográfico fique pelado, o erótico ande nu... Não se deixa, porém, nessa discussão lexical, os domínios da sexualidade – desde que se entenda sexo do ponto de vista das paixões eróticas, e não em sua valorização prática de servir para reprodução das espécies animais e vegetais. Essa denotação do sexo para fins reprodutivos não exige o gozo; para muitas religiões, o prazer que acompanha a relação sexual deve ser evitado, assim como os prazeres das artes culinárias – deve-se comer para se sustentar, e não para se saciar.

Em livros de anatomia há corpos nus. Não me refiro aos corpos dissecados, nem às sequências de paginas em que os humanos perdem a pele, mostram-se os tendões e os músculos, os sistemas, formados por órgãos, por fim, os ossos – melhor pensar nos esquemas em que são feitas as diferenças derivadas do dimorfismo sexual entre machos e fêmeas. Nesse tipo de discurso, o corpo humano é concebido como máquina; faz parte dele, retoricamente, esvaziar o corpo de erotismo a favor da objetividade das ciências ditas da natureza. Salvo algum fetiche, a sexualidade conotada de paixões eróticas está excluída dos livros de anatomia humana; neles os pelados não são pornográficos, nem os nus são artísticos.

Cria-se, assim, um estatuto da nudez, que admite gradações desde sua valorização prática – médica, biológica, científica – até as valorizações míticas das relações entre o gozo e o sexo, próprias das paixões eróticas, ou, dependendo do ponto de vista, pornográficas. Nessas relações, as tensões entre o vestido e o despido, talvez, importem mais que estar nu.

Sem dúvida, cabe, às roupas, proteger – essa seria sua função prática, como é o sexo para a reprodução das espécies. Todavia, as roupas são investidas de conotações sociais; valorizadas miticamente, muitas vezes deixam de proteger para salientar – travestis e madrinhas de casamento submetem-se a invernos rigorosos, expondo ombros, braços e pernas – troca-se o conforto pela elegância – gravatas, saltos altos, espartilhos, sutiãs.

Entre o despido e o vestido, portanto, há um percurso semiótico que se constrói. Voltando aos corpos nus dos livros de anatomia, verifica-se que, na maioria das vezes, trata-se de desenhos, e não de fotografias – o desenho torna o corpo um corpo abstrato, sem referentes “reais” convocados em sua linguagem, como é o caso da linguagem fotográfica, que, contrariamente, implica supostos referentes externos – nesses desenhos, os corpos são esvaziados de seus adereços. Além das roupas, faltam-lhes maquiagem, cortes de cabelos, quaisquer tipos de marcas culturais como brincos, piercings, tatuagens; falta-lhes uma pose fora daquela ereta, estendida e frontal, em que sempre se encontram. Defini-se, assim, certo grau zero do corpo, no qual se pretende construir um corpo apenas da ordem da natureza, isento de quaisquer determinações culturais. Uma vez vestidos, as marcas culturais necessariamente aparecem; entre as conotações que carregam, as roupas e demais adereços podem dotar o corpo vestido de conotações eróticas; nessas conotações, criam-se fetiches sexuais: chapéus, roupas íntimas, roupas de couro, trajes de baile, trajes de banho, calçados, uniformes...

Do despido sem conotações culturais ao corpo vestido com erotismo, a insinuação de um gesto pode bastar para dar, ao corpo nu, conotações eróticas; um gesto pode ser suficiente para deslocar o corpo ereto, estendido e frontal, de seu suposto grau zero. Os nus artísticos são assim; há, no mínimo, sempre uma pose para enfeitar os corpos desnudos. No sentido contrário, do vestido ao despido, outras conotações eróticas podem ser projetadas nesse despir, dos simples ato de se desnudar ao strip-tease mais elaborado, da procura pelas partes expostas nos caminhos das roupas às exposições francamente deliberadas.

 

O admirador

 

Se do vestido ao despido o admirador do corpo projeta recortes sobre esse processo, fragmentando-o e detendo-se nas partes isoladas com alguma ênfase em sua fixação, podem estar em desdobramento paixões fetichistas. Na admiração do desnudamento, isolar as partes e o todo pode acontecer sistematicamente – o strip-tease, a dança de sete véus – sempre há partes nuas isoladas quando as peças de roupa são deixadas de lado, uma de cada vez. À espera do corpo nu, tais partes encaminham, no rito instaurado, a exposição do todo. Todavia, quando na relação totalidade vs. parcialidade o último termo se impõe sobre o primeiro, aparecem os fetiches sexuais não mais em botas, luvas e chapéus, mas em cabelos, mãos e nos pés descalços.

Essas partes do corpo, mais do que metonímias, tenderiam à personificação – em seus extremos, esse tipo de fetichismo tende a singularizar de tal modo a parte idolatrada, que ela se destaca do corpo, ganha animação própria, não vale por ele, mas além dele. O dono do corpo muitas vezes não importa; importam mais seus cabelos, seus pés, suas mãos. Em exposição deliberada ou casual – alguém que mexe nos cabelos para se livrar do vento, alguém que se descalça para descansar – a parte garante a totalidade da nudez; basta a parte nua para que, mesmo com as demais partes vestidas, o corpo seja percebido nu.

Presas da percepção, muitas vezes esses fetiches dependem mais dos percursos do olhar que dos gestos e poses dos admirados; em seus focos, a ideia fixa procura sempre as mesmas coisas.

 

Aquilo que punge

 

Em um de seus trabalhos dedicados à fotografia, A câmara clara, Roland Barthes lança mão de dois conceitos, com o propósito de conferir, em meio às considerações teóricas e objetivas que podem ser elaboradas a respeito do texto fotográfico, espaço para reflexões mais subjetivas. Trata-se dos conceitos de punctum e studium.

Grosso modo, o studium compreenderia as abordagens semióticas, históricas, psicológicas, enfim, antropológicas do texto fotográfico, desde a disseminação das intenções do fotógrafo na elaboração do texto e da geração do sentido nas relações entre formas de conteúdo e de expressão, às muitas possibilidades de interpretação dessas formas. O punctum, por sua vez, é aquilo que punge; aquilo que punge é, em uma fotografia específica, o elemento dela no qual você se detém, por motivos, quase exclusivamente, pessoais.

Nos exemplos d’A câmara clara, Barthes, após algumas observações da ordem do studium, aponta aqueles detalhes dos quais ele gosta, prefere, ou, até mesmo, não consegue deixar de olhar em algumas fotos: uma gola, uma fivela de sapato, um colar – o punctum de cada uma delas.  Em princípio aleatório, Barthes não remete o puctum a causas, sejam elas psicológicas, históricas ou semióticas, capazes de determiná-lo; em outras palavras, você se sente pungido porque sim. Entretanto, ao ser pungido pelo colar de uma das personagens de uma das fotografias, reconhece rememorar, nele, um dos colares de sua avó – o punctum, ao que parece, também carrega suas motivações além da simples pungência.

Para o podólatra, os pés sempre pungem. Quanto a mim, sejam imagens das Vênus do Renascimento, das santas do Barroco, sejam fotografias de atrizes, cantoras, modelos ou de minhas amigas, desde que estejam descalças, olho sempre para os pés; nem é necessário que sejam imagens visuais, a palavra basta para descrever mulheres descalças na literatura. Mesmo quando os pés não são o tema central do texto visual ou verbal, o olhar podolátra, dedicado a eles, termina por projetar seus anseios e realiza, onde muitas vezes não há, sua tematização erótica.

Posso dar dois exemplos, não no universo da fotografia, mas da poesia brasileira contemporânea, feita nesse começo do século XXI. Na poesia paulistana, encontro o poema A luz da lua, de Elizandra Souza, que começa assim:

 

 

A lua admira seu corpo semi-nu

nesses sujos trapos

seus pés descalços

continuam assim tão belos

esse se banhar sem água

atrás dessas árvores

 

 

Na continuação dos versos, a poetisa descreve uma moradora de rua maltrapilha, mas cuja beleza e sua majestade não é apagada pela miséria das condições sociais em que se encontra. Trata-se de revelar uma rainha decaída, que o olhar projetado pela poesia consegue descobrir e propagar. Nessa descrição, os pés descalços, embora continuem “tão belos”, teriam a função principal de conotar a pobreza, porque desnudos e desprotegidos, e de complexificá-la com a beleza, porque permanecem assim. É o caso de uma metonímia; os pés, parte pelo todo não apenas do corpo, mas da personagem e suas qualidades, remetem tanto à miséria quanto à nobreza da moradora de rua.

O outro poema é Batuque na calada, do carioca Pedro Rocha. Os primeiros versos são estes:

 

batuque na calada

ela sai descalçada

nem pára na esquina

que me esqueceu

de me chamar pra batucar

com ela camela

na calada daquela esquina

do ano passado

no carnaval que era

aquela época era

caramela

purpurina

serpentina

minha mina

agora sai descalçada

 

 

Esse poema descreve outro tipo de moça, descalçada não pela pobreza, mas para sambar. São versos festivos, mesmo saudoso e quase abandonado, o poeta celebra a erotização das danças e dos ritos de carnaval, tematizada na moça sambista. Ele não se fixa nos pés sambando descalços, os pés são um detalhe importante na construção da figura da moça, mas não único; o suor e os cheiros das demais partes corpo são tão relevantes quanto eles:

 

 

(...)

batuque na calada descalçada

suada sebosa

saída da tuba

jocasta

gostosa

(...)

 

 

(...)

batuque na calada

fedorenta

descalçada

pra nem carinho     

 

 

Ao que alguns versos indicam, o suor e os pés descalços estão em função do sexual desleixo da mocinha sambista; tanto em A luz da luz quanto na Batucada na calada não estaria, a rigor, tematizada a podolatria. Mesmo assim, embora reconheça neles bastante valor literário, seja em seus percursos temáticos e figurativos, seja em soluções engenhosas na expressão prosódica e fonológica dos versos, são nos pés descalços que me fixo na fruição dos poemas.

 

Outros sentidos

 

Encaminhado pelo olhar nesse modo de desnudar o corpo, a podolatria também se desenvolve em outros sentidos. Entre os pés nus e calçados, a podolatria insiste em coturnos, botas, saltos-altos, sandálias, tornozeleiras, unhas pintadas, tatuagens – tudo que cerca a parte enfocada ou remete a ela termina por ser convocado nos discursos do fetichismo. Ao lado desses sentidos, que recobrem os pés com conotações próprias dos calçados e dos adereços, há outras formas de semiotizar os pés além dos olhos.

Nos exemplos anteriores, das imagens vistas nas pinturas e nas fotografias, às imagens imaginadas nos dois poemas citados, os pés teriam sido apreendidos pelo sentido do olhar – nas artes plásticas, explicitamente, nas verbais, por meio da imaginação figurativa, os pés são “visíveis”. Em A luz da lua, a lua admira e ilumina a dona dos pés descalços; em Batucada na calada, quem admira e anseia pela moça descalçada é o enunciador do discurso, marcado, nos trechos citados, pelo menos no pronome possessivo do verso “minha mina”. Restam, porém, mais quatro sentidos para descrever os pés.

Dennis Cramer – o criador de Mara, a mocinha que está sempre descalça – em seu longo conto Falling into place, descreve os pés de Mara sempre lisos e macios, apesar de sujá-los e feri-los bastante em suas desventuras; Franco Saudelli, artista de HQs, embora ofereça aos olhos os pés de suas personagens através dos desenhos, desenha personagens seduzidas pelo som dos pés caminhando descalços; Glauco Mattoso se delicia quando descreve pés mal cheirosos; é dele, ainda, a criação da massagem podo-lingual.

Enfim, para a podolatria, os pés são fontes de prazeres e de sinestesias.

 

Do punctum ao podo

 

Entre os vários modos de ser pungido pelos pés, em Aos pés das letras – antologia podólatra da literatura brasileira, optamos pelos textos que, explicitamente, tematizam as muitas formas da podolatria. Há a pungência pelos pés, sem dúvida, mas neles o leitor encontrará uma intenção podólatra, e não apenas aquilo que suas manias e fixações sempre buscam em quaisquer lugares. Mesmo que o escritor não seja o que se poderia chamar “militante” da podolatria, ao tematizá-la, ele se tornaria um podólatra eventual, apto a ser reconhecido pelos mais constantes.

O trabalho está dividido em três partes: na primeira, estão selecionados os textos literários, entre contos, fragmentos de romances e poesias; na segunda, há uma coletânea de depoimentos, colhidos na internet; na terceira e última parte, alguns poetas glosaram, em literatura de cordel, um mote dado pelo Glauco Mattoso.

Para concluir, do punctum ao podo, um fetiche, acima de tudo, com a própria palavra.

 

 

 

Nota explicativa: o texto acima publicado é prefácio do livro Aos pés das letras, antologia podólatra da literatura brasileira

 

*

Antonio Vicente Seraphin Pietroforte é livre docente em Semiótica e Lingüística Geral pela Universidade de São Paulo, onde leciona. Publicou, entre outras obras, Sara sob céu escuro (Annablume, 2011); Aos pés das letras, antologia podólatra da literatura brasileira  - org. em parceria com Glauco Mattoso – (Annablume, 2011); O livro das músicas (Annablume, 2010); Os tempos da diligência (Annablume, 2009); Palavra quase muro (Demonio Negro, 2008); Semiótica Visual - os percursos do olhar (Contexto, 2007); Antologia SadoMasoquista da Literatura Brasileira (Dix, 2008); Fomes de formas (Demonio Negro, 2008);  A musa chapada - em parceria com Ademir Assunção. (Demonio Negro, 2008). O retrato do artista enquanto foge (Dix, 2007); Amsterdã SM (Dix, 2007), além de vários artigos e ensaios.

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