ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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Prosseguindo o debate iniciado em sua edição anterior, Zunái publica a terceira parte da série Poesia e Agoridade, organizada por Jorge Lúcio de Campos e Rodrigo de Souza Leão. Confira as respostas dos autores convidados à seguinte questão:

Como os artistas, entre eles, especificamente os escritores e, entre eles - mais especificamente ainda - os poetas poderiam intervir neste mundo?


Claudio Willer: De vários modos. Poesia circula pouco, seus livros tem tiragem pequena etc, mas se projeta na diacronia, faz história, exerce influência sobre a linguagem, e, por extensão, sobre a consciência e a percepção do mundo.

Um exemplo especialmente eloqüente de intervenção da poesia e de poetas, conforme já observei várias vezes, é aquele dado pela Geração Beat. Em poucos anos, um movimento de poetas, tornado público por causa do impacto da leitura de Ginsberg e seus companheiros na Galeria Six, tornou-se movimento geracional, e deu origem à contracultura e às rebeliões juvenis da década de 60. Portanto, projetou-se de modo quase imediato, direto, na diacronia. Favorecidos por uma expectativa de renovação, conseguiram uma espécie de ligação direta com a sociedade.

Mas a Beat é um caso á parte. A principal mediação é o ensino. Nesse sentido, preocupa o refluxo da literatura no ensino, especialmente nos currículos brasileiros. Se associarmos literatura à civilização, se enxergarmos a adoção da literatura pelo ensino como um fundamento, desde a Grécia antiga, da nossa civilização, então o abandono da literatura, especialmente da poesia, pode equivaler a um retrocesso, a um gradativo retorno á barbárie.

Para ficar claro do que estou falando, cito Ernst Robert Curtius, que, em Literatura européia e Idade Média latina, diz o seguinte: "A literatura faz parte da "educação". Por quê, e desde quando? Porque os gregos encontraram num poeta o reflexo ideal do seu passado, de sua existência, do mundo dos deuses. Não possuíam livros sacros nem castas sacerdotais. Sua tradição era Homero. Já no século VI, este era um clássico. Desde então a literatura é disciplina escolar, e a continuidade da literatura européia está ligada à escola".

Já argumentei desse modo em artigos defendendo o ensino da literatura e mais atenção à poesia, pois, admitindo-se que haja mesmo tal coisa, uma "civilização ocidental" que foi mudando ao longo do tempo, para melhor e para pior, e que a literatura seja constitutiva dessa civilização, como pretendem Curtius e Octavio Paz (com sua argumentação, em El arco y la lira, de que a poesia, sendo histórica, também produz história), então sua saída do ensino anuncia seu fim, ou, ao menos, a ruptura com ela.

Mudanças e rupturas fazem parte da história. Mas, rompendo com o devir da civilização, teríamos algo para pôr em seu lugar? O quê? Por trás da crítica relativista hoje dominante em nossos currículos ao valor, à norma culta, à erudição, de seu aparente pluralismo, não haveria um espesso conformismo? Ao longo do século XX houve um deslocamento do prestígio do livro e da literatura, com a entrada em cena de veículos, novos suportes que privilegiaram outros sistemas de signos. Rebaixar a importância da literatura em instituições de ensino é sancionar semelhante estado de coisas, em lugar de oferecer alternativas à sociedade midiática.

Mais sobre isso, naquele capítulo sobre poesia e ensino em A outra voz, de Octavio Paz.

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Donizete Galvão: Penso que a ressonância de sua obra junto ao público é a grande dúvida que divide todo escritor. Sem essa ressonância sua capacidade de intervenção fica interrompida. Essa insegurança sobre o seu papel social está no cerne mesmo das criações modernas. A utopia de mudar a vida dos surrealistas, ainda que bela, acabou resvalando para o sectarismo. Ninguém tem ilusões salvacionistas ou messiânicas. Houve, é claro, um rebaixamento do papel da literatura. Ninguém quer cair nas mesmas armadilhas ideológicas e na demagogia da arte engajada. A poesia de Francis Ponge e de Mallarmé, por exemplo, podem ser vistas como recusas ao mundo mercantilizado.

Entretanto, a desumanização do homem, a devastação do meio ambiente, a ditadura do mercado e da direita religiosa, a injustiça social são realidades. Não podem ser vistas como inevitáveis. Alguma utopia deve ser cultivada. Uma das intervenções é negar veementemente esses "valores". Dizer um não bem redondo a todas essas coisas. Se não pode mudar o mundo, pelo menos o artista nega-se a se adaptar a ele e exaltar os falsos benefícios desse progresso tecnológico. A negatividade pode se tornar, portanto, uma forma de intervenção. Pessoalmente, eu sou um pessimista teimoso. Acho que o trabalho de escritor é uma luta vã, mas mesmo assim necessária e justa. Criar é uma maneira de valorizar a imaginação e uma forma de ver o mundo. Escrever é um exercício de liberdade em um mundo que sente cada vez mais falta disso. Desde que li Ascese de Kazantzákis, naquela tradução do querido José Paulo Paes, entendi melhor porque não devemos entregar os pontos. "A virtude suprema não é ser livre, mas lutar pela liberdade" afirma Kazantzákis de maneira apaixonada.

Além de Kazantzákis, encontrei em Ernesto Sábato muito das minhas interrogações sobre o que é este papel do escritor no mundo principalmente em livros como La resistencia, Antes do fim e O escritor e seus fantasmas. Criar uma obra artística é uma forma de resistência. Está lá nos livros de Sábato; "a maior nobreza do homem é a de erguer sua obra em meio à devastação, sustentando-a incansavelmente, a meio caminho entre a agonia e a beleza".

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Fabiano Calixto: Bem, vou falar primeiro do mais específico em sua pergunta, o poeta. Em primeira instância, o poeta pode e deve intervir no mundo fazendo poemas - assim como o pedreiro fazendo casas ou o lunático inventando napoleões. As coisas estão aí e as pessoas têm que transformá-las. É claro que, como cidadão, o sujeito contemporâneo tem várias formas de transformar a realidade que o margeia. Uma pena é que os rumos difiram tanto. Um quer o poder para o enriquecimento próprio e ilícito, o outro o quer para tentar melhorar uma determinada situação. Como equacionar isso?

Voltemos ao mais específico. O poeta, repito, tem que escrever poemas, mas não apenas. Pensar criticamente o mundo em que vive é, creio eu, uma tarefa do poeta. A poesia fútil, de estrelinhas amarelinhas ou emoçõezinhas baratas ou greguismos masturbatórios, não interessa ao leitor consciente enquanto leitura da sua realidade. Não quero dizer com isso que a mitologia grega, ou qualquer outra, não possa ser utilizada como material estético no poema de um brasileiro do século XXI, o que quero dizer é que há uns "poetas" por aí que são loucos para criar epopéias tal qual fulano, obras definitivas tipo sicrano ou bobagens afins. São sujeitos deslocados do seu chão. Em O Discípulo de Emaús, o poeta mineiro Murilo Mendes escreve (Frag. 286): "Viver a poesia é muito mais importante e necessário do que escrevê-la". Como o retardo-poeta "homérico" vai viver sua poesia? Junto com o lunático e sua trupe de napoleões? só pode ser.

O poeta intervém no mundo quando é honesto consigo mesmo. Quando faz poesia da vida e vice-versa. Quando sua poesia sangra. Lembro-me de um trecho de um manifesto interessante do jovem poeta mexicano Heriberto Yépez que diz o seguinte: "?Qué hace el poeta en el mundo?: hace al mundo". Ou seja, o poeta, o compositor popular, o erudito, o professor, o bancário, o mineiro, as pessoas fazem o mundo fazendo sua parte, seu trabalho. Penso na atitude (palavra que deveria ser melhor pensada pelos artistas) de pessoas como Chico Buarque, Sebastião Salgado e José Saramago quando se uniram e colocaram sua arte em prol da causa do MST, isto sim é intervenção artística! Veja, um pop star como Bono Vox, que poderia estar indiferente à sua realidade, está sempre dizendo-cantando palavras cheias de atitude, seja engrossando o coro dos que pedem o perdão da dívida externa dos países pobres, seja escrevendo canções contra o racismo ou contra guerras. Há uma coerência muita grande em atos como estes. Artistas que tratam da realidade em suas obras e botam o dedo na ferida, contestam, fazem, causam. Atitudes assim fazem brilhar mais ainda canções como "Assentamento" ("Quando eu morrer / Cansado de guerra / Morro de bem / Com a minha terra: / Cana, caqui / Inhame, abóbora / Onde só vento se semeava outrora") de Chico Buarque; ou uma exposição como "Êxodos" de Sebastião Salgado. É bom saber que Bob Dylan e Joan Baez, no dia 28 de agosto de 1963, participaram da Marcha pelos Direitos Civis em Washington, assim como é bom saber que Bono Vox canta para platéias enormes versos como "And it`s true we are immune / when fact is fiction and TV is reality / and today the millions cry / we eat and drink while tomorrow they die". Episódios como estes, alguns entre outros tantos, nos enchem de esperanças, nos fazem continuar a crer na maior de todas as utopias: um mundo mais justo. A maior intervenção é fazer o mundo e não apenas passar por ele.

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Claudio Daniel: O pensamento romântico, a partir do final do século XVIII, aproximou as noções de arte e vida, como se fossem uma única coisa. Esta confusão entre signo e significado tem como precursores o William Blake de O casamento do céu e do inferno, prossegue no conceito do "poeta-vidente" de Rimbaud e atinge seu ápice no movimento surrealista, no início do século XX. Mudar a vida, mudar o mundo: estes foram os emblemas das primeiras vanguardas, que associaram a busca de novas formas estéticas e vivenciais à revolução social. Em suma, a imaginação no poder. Hoje, estes paradigmas foram afastados pelo conceito de pós-história: não se trata mais de mudar, mas de aceitar o mundo, ou certa idéia hegemônica de mundo.

Curiosamente, nunca antes a aproximação entre cotidiano e representação estética foi tão intensa como hoje, quando sofisticados recursos de microeletrônica e tecnologia digital são empregados para veicular o discurso da ordem, da estabilidade, do consenso; a linguagem mais avançada transmite o discurso mais conservador. Ao mesmo tempo, elementos antes transgressivos, como o rock and roll e a liberdade sexual, foram incorporados e convertidos em ícones da estrutura imaginativa contemporânea: imagens sexuais estão presentes em toda parte, de programas infantis a campanhas de saúde publica. Vivemos num ambiente de permissividade tolerada, e por vezes até incentivada, o que causaria surpresa aos libertinos da era vitoriana. Você pode comprar de tudo, graças à Internet: incesto, necrofilia, zoofilia e assim por diante. O parque de diversões de Bill Gates oferece inclusive o orgasmo digital, um seguro método contraceptivo e de prevenção de epidemias. Enfim, este é um cenário em que a experiência estética e a fruição erótica foram incorporados ao ambiente cotidiano e à nova mitologia do poder, realizando, de maneira caricatural, distorcida, o sonho dos poetas românticos e dos primeiros modernos, ou seja, a estetização da vida. A indústria cultural se alimenta de tudo, inclusive do inconformismo. É a maneira que o sistema encontra para renovar os seus próprios códigos e conteúdos, para fortalecer e ampliar seu domínio e, ao mesmo tempo, esvaziar o potencial demolidor das novas linguagens, amortecer o seu impacto.

O que os poetas e escritores podem fazer para intervir no cenário atual? Como artistas, nossa tarefa é escrever, criar poemas, ensaios, romances. Exercer com plenitude a criação. Esta é uma das poucas maneiras, numa época mercantilista, de se exercer a liberdade. Poesia é a arte da resistência à banalidade, ao lugar-comum, para manter vivo o idioma e renovar as formas de pensamento. Por outro lado, como cidadãos, temos o compromisso moral de questionar o estado de sonambulismo ou hipnose coletiva, refletir criticamente sobre as formas viciadas de viver, sentir e pensar. A poesia não vai salvar o mundo, mas o poeta pode participar dos esforços dos agentes sociais no sentido de construir uma nova proposta para o planeta. Vejo como sinais auspiciosos o crescente movimento pacifista, a consciência ecológica, o dialogo da ciência com as tradições espirituais, como o budismo, e a resistência civil aos aspectos mais nocivos da globalização, que sinalizam a possibilidade de formação de um novo tipo de humanismo.

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Rodrigo Garcia Lopes: Não é muito o que podemos fazer hoje, mas tem seu valor, é vital, estratégico, precisa continuar existindo. Se poesia é a arte da linguagem, como disse, os poetas têm que buscar não só a beleza, precisão de sentido, mas também estar atentos para os usos de linguagem a seu redor, bem como para a ligação entre linguagem e poder. Os poetas são, naturalmente, críticos da linguagens comuns e autoritárias, normatizadoras e fabricantes do "real", usando a linguagem para produzir este estranhamento que se chama poesia. O poeta deve continuar usando a linguagem para provocar sentidos, revelar outros, aguçar percepções, dar sentido ao caos, beleza, auto-consciência e consciência do outro. De minha parte, seja como artista, escritor e poeta, esta intervenção é feita através dos meus livros, como o de entrevistas Vozes & Visões, as várias traduções que tenho feito nas última duas décadas nos mais diversos veículos, em que introduzo textos e autores pouco conhecidos entre nós, seja através do trabalho de guerrilha cultural que é editar uma revista como a Coyote num país que valoriza pouco a poesia, ou ainda através dos shows de música e poesia divulgando o CD Polivox, onde tento conquistar novos públicos e acender nos mais jovens o tesão e a curiosidade pela junção de poesia & música (minha e de outros). A situação é dramática porque parece que cada vez menos pessoas lêem poesia. Não que tenha sido diferente no passado, mas hoje ela parece estar se transformando mais e mais num código cifrado, restrito a poucos iniciados. A ponto de muitos parecerem estar escrevendo apenas para outros poetas, para os críticos, e não para a moçada ou leitor comum. Além disso, tento intervir me colocando como cidadão, mantendo uma postura crítica em relação às desigualdades e desumanização atuais. É de Auden a frase "a poesia não faz nada acontecer". Mas poderíamos mudar a ênfase e dizer que é justamente este "nada" que a poesia faz acontecer. Se tomamos esse nada no seu sentido anti-capitalista, anti-utilitário, anti-mimético, esta coisa alguma que é a poesia passa a ter um valor sagrado, transcendente. Creio que o poeta deve atuar em todos os espaços possíveis, seja criando sites e revistas, promovendo leituras, organizando debates, antologias, estabelecendo diálogos com poetas do mundo, resenhando os poetas de sua geração etc. Acho que já é bastante. A poesia do lirismo, tipo torre de marfim, está em crise. A poesia brasileira periga virar, ou talvez já tenha virado, como disse, coisa para iniciados. Se "a poesia está morta" ela está para os cadernos culturais (mais preocupados com manufatura de egos, poder, mercado, banalidades e reality shows), quando não tratam a poesia como ilustração cult. Se está morta para o establishment (que assim justifica o fim da história, que termina em algum grupo canonizado de autores, obviamente) isso não significa que não esteja bem viva para os milhões de leitores, tradutores e poetas espalhados pelo planeta que continuam produzindo e interagindo com a poesia como uma coisa viva. O fato é que essa interrogação da linguagem que se chama poesia, passaporte para outras percepções, modo de investigação, nunca morrerá. Ao contrário, nunca ela foi tão necessária. Riding escreve em algum lugar: "Escrever um poema é como estar vivo para sempre". Eu fecho com ela. Por isso a saída para muitos poetas, nos últimos anos, têm sido criar outros espaços e territórios de difusão. Usando a Internet, criando redes de diálogo entre pessoas de diversas partes do mundo, ou como estamos fazendo agora na Coyote, o de criar núcleos de resistência à comodificação e à imbecilidade. Os poetas parecem esquecer que, mais que um tipo de enunciado, um poema é sempre o produto de formações discursivas do lugar histórico e do país em que ele aparece. Ainda é como se o discurso da poesia não estivesse sendo afetado, como Perloff lembra numa entrevista para Vozes & Visões, pelo mundo complexo à nossa volta. Muitos poetas ainda hoje se encasulam em suas abadias e adotam uma postura puramente esteticista. Vale a pena lembrar o perigo que um enfoque único sobre a "materialidade da linguagem" acarreta para a poesia, como aponta Marjorie Perloff em entrevista para mim em Vozes & Visões: "O perigo é tornar-se só um jogo de palavras inteligente, fazer trocadilho pelo trocadilho, ser tão auto-consciente da linguagem, mas não ter nada a dizer. Acho que é o seguinte: na poesia, seja na do século 17 ou na contemporânea, se você não tiver nada para dizer, sua poesia não vai ser interessante".

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Fabrício Carpinejar: Liberdade não é inconseqüência, mas responsabilidade. Nesse sentido, nossos direitos têm limites, nossos deveres não. O poeta não vai mudar o mundo, mas criar um mundo fiel ao que está sendo destruído. As palavras formam a realidade, não apenas a nomeiam. O poema e a arte são um antídoto contra o medo atual do homem de ficar sozinho, de olhos abertos, no próprio corpo. Somos falsamente ocupados. Não temos mais receio de se reunir com os outros, porém de ficamos sem os outros. Todo homem virou uma ilha de edição. A poesia grava o que não queremos enxergar: as imperfeições que nos humanizam. A serenidade é atingida pela compreensão dos limites, não pela crença que devemos ultrapassá-los. Existia uma ilusão de que o poema bom era aquele que não se entendia. A qualidade do poema estava ligada à sua incompreensão. Isso mudou: um poema bom é o que comunica suas experiências. Poesia quebra as hierarquias, nunca promovendo a exclusão do conhecimento. Não era o poeta que estava procurando desesperadamente seu público, mas o público que procurava desesperadamente o poeta.

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Glauco Mattoso: Se considerarmos que a arte é uma fantasia, ou seja, uma espécie de faz-de-conta, podemos entender que a realidade é que interfere (a sério) no artista, e este devolve a interferência fantasiando, isto é, brincando. No caso faz mais sentido chamar um artista de "arteiro", como um moleque fazendo arte. Quanto ao poeta, sua brincadeira está justamente em jogar com o sentido próprio (sério) ou figurado (brincalhão) das palavras, donde, na minha opinião, um poeta ser tanto maior quanto mais satírico. Se a intervenção do poeta é devolver a seriedade transfigurada em ridicularidade, a poeticidade da palavra
dependeria de sua elasticidade caricatural (além da natural plasticidade), cabendo ao poeta apenas o trabalho de esticar ou soltar o elástico, como ilustro neste soneto:

SONETO 187 CLASSICISTA

Os gregos e latinos são modelo
e herança do poeta gozador.
Difícil não nos é fazer humor;
difícil é deixarmos de fazê-lo.

Partindo de Aristófanes, que fê-lo
em fase de apogeu e de esplendor,
passando a Juvenal, onde o sabor
picante em Marcial ganha cabelo...

A sátira é fatídica ao poeta.
E se me perguntarem se é difícil
fazer a poesia mais direta,

Direi que são os ossos do meu vício
De duas, uma: ou fácil seja a meta,
ou é quase impossível nosso ofício.

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Jorge Lúcio de Campos: A exemplo do que já ocorre por aí, como sabemos, em alguns espaços, criar significa, sobretudo, "resistir" (acompanhando o sentido do termo latino resistere, ou seja, "colocar de novo"), cada vez mais "situar-se" diante dos múltiplos reducionismos gratuitos que nos fazem cerco, "fazer frente" aos incontáveis universalismos sonsos, espalhados, camufladamente, como engenhos de guerra, ao nosso redor. Seja como for, isso implica em não se submeter à tentação das filiações fáceis. Canonizar-se em arte (literatura, poesia...) significa remeter-se a um rol de nomes santos, de indivíduos e escolas mortos (alguns já em adiantado estado de decomposição), com suas receitas demasiadamente prontas para inspirarem atitudes adequadas para a dinamização de nosso presente. Isto posto, não creio que seja possível (ou aconselhável) falar-se seriamente, hoje, de um cânon ou de cânones em poesia e, muito menos, levantar a hipótese de seu restabelecimento. De que serviria fazê-lo senão para uma estratégia fatal de fingimento? Pois é verdade que não faltam aqueles que fingem e sabem fazê-lo bem, para quem nada acontece à toa, tudo está sempre em ordem, o tempo nunca passa etc.

Não tenho dúvida de que a mais genuína (e digna) inclinação da poesia brasileira contemporânea é, a exemplo do que acontece em todo o mundo ocidental, a sua vocação para desconstruir. Desconstruir as grandes referências sejam elas quais forem (pátrias, apátridas ou alienígenas), as grandes progenituras sejam elas "genuínas" ou não, as grandes doutrinações sejam elas justificáveis, vantajosas ou não, desconstruir, pensando bem, o próprio habitus - culturalmente perverso nestas terras - de sempre se pôr num estado de referência, de descendência, de engajamento frente ao outro, de sempre submeter-se aos encantos de sua "geração espontânea". Embora não sejam muitos, são significativos os poetas que, driblando o apelo canônico do mercado, propõem, com consistência, dicções alternativas que não necessariamente rompem, mas renovam, redinamizam o que já foi fartamente dito ou timidamente gaguejado. Mais premente do que uma pluralização gratuita (a essa altura, inevitavelmente reacionária e catastrófica) seriam a pesquisa e a experiência em bases não-ortodoxas, uma nova configuração da poesia, a possibilidade de torná-la um aspecto intersticial da vida, de uma nova dimensão do existir que possamos, em breve, quem sabe todos, assumir sem nenhuma "culpa".

No prólogo de seu Critique et clinique, Deleuze, em cima de uma fala instigante de Proust - a de que "os belos livros estão escritos numa espécie de língua estrangeira" (Contre Sainte-Beuve), nos adverte que, para os artistas (particularmente os contemporâneos, aí inclusos os poetas), "o problema de escrever é também inseparável de um problema de ver e de ouvir", pois, "com efeito, quando se cria uma outra língua no interior da língua, a linguagem inteira tende para um limite assintático, agramatical, ou que se comunica com seu próprio fora". Uma outra convicção, provocativa como a anterior, mas originalmente fomentada por Klee - a de que não cabe ao artista reproduzir o visível, mas tornar visível o que ainda não era - é igualmente pervasiva (tornando-se quase sempre um pouco urgente) para a sobrevivência das práticas poéticas no mundo hodierno. Juntamente com a estrangeiridade proustiana, ela abriga (ou se aninha em?) uma terceira: a de que uma postura de busca de diferenciação deve ser, assumida e estrategicamente, levada adiante por todos os artistas no sentido da implementação, mesmo que um tanto obstinada e até áspera, de uma visibilidade exclusiva. O fato é que, numa sociedade como a nossa, cada vez menos refratária não só à repetição e à reprodução de suas coisas, ferramentas e relações, mas também aos jogos fáceis de linguagem, em seu sentido mais torpe, ou seja, enquanto dispositivos de obturação do real, de fixação e perpetuação da histeria paralisante do capitalismo avançado, ou a poesia se descaracterizará de vez (como vem ocorrendo, na maioria das vezes) ou ela, de algum modo (e não me perguntem qual) encontrará um caminho - mesmo que este, lembrando Heidegger, "não conduza a parte alguma", arriscará um rosto incerto, afirmará uma identidade-de-si-no-outro, embora pagando o preço (para muitos poetas, alto demais) do anonimato mercadológico e da apatia crítica.

Creio que caberá aos poetas um importante papel na reversão desse quadro. Caberá também a eles reensinar o valor da lentidão, do apuro e da metáfora - seja contra o demônio malvado da velocidade acelerada, seja contra o desarmamento geral de todos os simbolismos, seja contra o achatamento discursivo das mentalidades, pois é, no nível da linguagem, que as mais decisivas batalhas estão sendo vencidas ou perdidas atualmente. Poetas do náipe de João Cabral tendem a ser revisitados justamente em função de - afora a indiscutível pujança estética das rupturas que propõem - atentarem, numa justa medida, para esse problema crucial, o da linguagem, ou melhor, do desarmamento das linguagens, da disjunção que hoje chega a ser abissal entre o que lhe é permitido e o que, em nome dela, se permite. Por outro lado, penso numa poesia também marcada pela obsessão do qualia, que gera, sem medo, conceitos quase táteis em sua aproximação com o que é concreto.

Mas como não valorizar também uma poética, como a drummondiana (não devemos, igualmente, esquecer a vitalidade de Bandeira), que se empenha na expressão do profundo, da temporalidade e da contingência, num acirramento figural do imaginário e da memória num mundo em que sempre nos sentimos mais achatados e inespessos? Ouso afirmar que se trata de duas angústias que se coadunam. A angústia do dentro pela falta do fora e a angústia do fora pelo esquecimento do dentro. Afora os modismos de sempre - com seus motivos a priori duvidosos - o homem contemporâneo, uma vez cônscio das dimensões de sua crise, decerto se potencializará com o que os bons poetas puderem lhe oferecer. Urge reconstruir - em novas bases, é claro - a cena futura do humano, devendo a tão esperada integração do dentro e do fora se dar, num primeiro momento, mediante uma reeducação dos sentidos e, depois, quem sabe, por um modo surpreendentemente criativo de resolver os dualismos. Só assim, penso, é que estes poderão ser, um dia, definitivamente superados.

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Luiz Roberto Guedes: Em princípio, praticando seu ofício de modo consciente, rigoroso. Tomando consciência de seu tempo, sua circunstância, do sentido propriamente civilizatório de sua arte, de toda arte, num mundo onde corpos são moldados e mentes são condicionadas para consumos acríticos. Não se trata aqui de engajamento obrigatório com uma causa, dogma ou programa. Mas de conduta ética, de atuar sempre para afirmar o humano, a dignidade do ser, com lucidez e liberdade. Acredito, sim, que escritores e poetas podem dar testemunho de seu tempo, refletir os horrores da hora sem, contudo, apequenar sua arte, fazer obra panfletária, mera "mensagem na garrafa". Penso em escritores como Graciliano Ramos, Máximo Gorki, Stendhal, narradores como Balzac, ou nos grandes romancistas da América hispânica, por exemplo. Receio que seja uma generalização acaciana, mas creio que o modo mais efetivo para o escritor intervir no mundo é escrevendo. E escrevendo com "sangue vindo do coração", elemento essencial para a "alquimia" da escrita, segundo postulava Guimarães Rosa. Muito da melhor prosa brasileira atual comprova as virtudes dessa receita. Autores como Luiz Vilela, Luiz Ruffato, Marçal Aquino, Fernando Bonassi, para citar uns poucos, possuem esse olhar de raio-X, focado no real, desnudando as aparências, devassando nossa violência cotidiana, visceral. Não se trata de uma fórmula, mas de uma literatura que emerge de uma urgência histórica. Quanto a intervir politicamente, provocar mudanças e melhorias, é questão de mobilização: escritores e poetas precisariam organizar-se, formular projetos para a cultura, por exemplo, e ir bater na porta do governo, reivindicando e pressionando sistematicamente. Dá trabalho, claro, mas persistir dá certo. Quem diria que o PT chegaria à presidência da república? Para tanto, seria preciso agir de modo coeso, "corporativo", e escritores e poetas não me parecem muito gregários.

Se os primeiros parecem coexistir pacificamente, estes últimos costumam congregar-se em pequenos grupos e facções, com diferentes visões/teorias/cartilhas sobre o que é poesia da boa. Publicam revistas, o que é bom, que são vitrines/casamatas de tais ou quais concepções e filiações. O critério de "rigor" se confunde, muitas vezes, com monolitismos de Poetburo. Em face desse isolacionismo, eu me pergunto como essas tribos antagônicas poderiam aliar-se para "intervir" em algo. Imagino que uma "intervenção" desejável seria ampliar o público para a poesia, digamos: voltar à praça, às ruas, como já recomendou Lawrence Ferlinghetti, mas com qual poesia? Pelo que parece, o paradigma vigente em nossa "superestrutura" cultural é que poesia é ofício especializado, altamente técnico e complexo, domínio de poetas com formação acadêmica: poetas-professores-críticos-ensaístas. Biscoito fino com selo de qualidade universitária: não seria para o bico da massa nem de poeta sem graduação. O excelente José Paulo Paes já tinha assinalado num arguto artigo que o drama do artista periférico é aspirar a uma obra acima da compreensão da massa local, mas capaz de impressionar o distinto público de Nova Iorque, Paris, Berlim ou Salt Lake City, Utah. Ou seja: Narciso desejaria contemplar-se num espelho estrangeiro. Um síndrome composto, talvez, pelo complexo cultural do colonizado (diagnóstico do dr. Darcy Ribeiro), somado ao conceito de progresso técnico e agravado por uma certa tradição "rupturista" que ganhou corpo, aqui, ao longo do século 20. Aliás, Octavio Paz advertiu que a noção de "progresso" havia extrapolado o campo das técnicas e contaminado o território da arte, nossa própria percepção, fazendo crer que as artes "evoluem", e que as poéticas presentes, por exemplo, são superiores à produção dos séculos anteriores. Como se não valesse mais a pena um escultor dominar a anatomia para espelhar em argila, mármore ou bronze um tendão humano retesado. Creio haver uma vigência dessa mentalidade tecnomodernizante, ansiosa pela próxima ruptura, o próximo "salto qualitativo", embora existam, graças aos deuses, os cultores ciosos da sincronia, que valorizam repertórios culturais milenares, do Ocidente ou Oriente. Considerando esse "caosmos", não vejo muita probabilidade de ordenamento para intervenções programáticas. É tempo de poesia proscrita, com a tribo à míngua. Exceto por alguma ração de poesia encapsulada nas boas canções de todos os tempos.

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Leia também:

Poesia e Agoridade I
Poesia e Agoridade II

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