ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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  PENSANDO A POESIA BRASILEIRA
EM CINCO ATOS

 

 

Claudio Daniel

 

Há muitos caminhos para a invenção poética, que não segue um fio evolutivo em linha reta, mas movimenta-se em espiral, numa dialética de formas. A experiência da vanguarda recente precisa ser estudada e levada em consideração como um dos pontos de partida para novas experiências com a palavra. Não se trata de dar continuidade a modelos históricos, mas de buscar outras possibilidades de ruptura e metamorfose.

 

ATO I

A poesia concreta provocou um abalo sísmico em nossa tradição lírico-discursiva, que apresentava avançados sinais de mofo. Ela abriu novos caminhos para a comunicação poética, substituindo a sintaxe normativa e a lógica linear por outras possibilidades de grafia e leitura: um poema concreto pode ser lido na horizontal, na vertical, na diagonal, com os elementos visuais, as cores e o espaço em branco integrados ao som e ao sentido das palavras, dando uma nova potência ao verbo. Essa mobilidade desde logo se chocou com os limites do objeto livro, exigindo outros suportes para sua veiculação (como o holograma, o móbile, o CD Rom). Pois bem: ao explodir o verso, as estruturas e formatos tradicionais de nossa herança literária, o concretismo colocou a poesia brasileira em crise. "O que fazer depois disto?" é a pergunta que muitos fizeram após a leitura de poemas como Tudo está dito, de Augusto de Campos (para não citarmos uma longa lista que poderia incluir outros exemplos de radicalidade inventiva, como o â mago do ô mega, de Haroldo de Campos, ZEN, de Pedro Xisto, o Formigueiro, de Ferreira Gullar, ou Mayá, de Décio Pignatari). Como avançar a partir daí? Com certeza, não havia a possibilidade de aprofundamento dos processos inaugurados pelos concretos nas décadas seguintes (anos 60-70), pela escassez de meios tecnológicos. A capacidade imaginativa dos poetas ficou restrita pela ausência de novos suportes, que surgiriam apenas nos anos 80-90, com o computador e outras mídias eletrônicas. Não sendo possível dar o passo adiante, a crise se traduziu no retorno às formas tradicionais, aceitas e canonizadas pela academia.  

Nos anos 70, assistimos ao retorno a uma dicção coloquial-cotidiana, derivada do Modernismo dos anos 30, com ênfase no poema-piada, na paródia e no poema-crônica-de-jornal, enfocando temas geracionais ou relacionados ao contexto político. Autores como Francisco Alvim, Cacaso e outros (reunidos por Heloísa Buarque de Hollanda na antologia 26 Poetas Hoje) reciclaram procedimentos já exauridos por nossos modernistas, sem acréscimo de informação nova. Basta fazermos uma comparação: colocarmos, lado a lado, um poema de Manuel Bandeira (de Estrela da Manhã, p. ex., de 1936), e outro de Francisco Alvim (de Elefante, publicado em 2000). A comparação talvez seja cruel, pois Bandeira, quando usou os recursos do humor e da fala coloquial (a partir da antipoesia de Jules Laforgue), fez algo inusitado, naquela época, em nossa tradição, tão acostumada à solenidade parnasiana; repetir os mesmos procedimentos setenta anos depois, porém, longe de ser uma atitude iconoclasta, revela antes uma postura resignada e conformista, de quem prefere seguir o caminho mais fácil: não responder ao enigma proposto pela esfinge, virar as costas e retornar a uma paisagem conhecida, mas de  imediata aceitação. O uso da ironia, da fala coloquial e das referências à cultura de massa foi empregado de modo mais consistente por Sebastião Uchoa Leite (que estreou em livro nos anos 60), herdeiro da arquitetura cabralina e sempre atento à construção do poema como estrutura, onde as palavras funcionam pela sua materialidade, e não apenas pela vontade lírica (embora o poeta fosse capaz de traduzir, na forma rigorosa, o seu mundo interior, tal como fez nos poemas mais intensos de seu último livro, A Regra Secreta, abordando a experiência de internação numa UTI). É possível verificarmos essa densidade em algumas obras de Armando Freitas Filho, como o Duplo Cego, nas peças mais elaboradas de Ana Cristina César e sobretudo em Torquato Neto, o Nosferatu que soube unir construtivismo e informalidade pop. A falsa antinomia entre lirismo e investigação formal, apresentada como argumento contra a suposta "frieza" das vanguardas, parece-nos hoje mera desculpa para justificar poéticas frágeis, incapazes de traduzir a subjetividade em peças de alto impacto estético.

Convém ressaltar que a vertente coloquial-cotidiana não foi a única praticada nos anos 70, apesar da ficção publicitária construída em torno da "geração mimeógrafo". Precisamos destacar uma outra tendência, formada por autores que se deixaram influenciar por algumas contribuições do concretismo, mas também pela música popular, histórias em quadrinhos, contracultura, zen-budismo e mitologia beat. Autores como Paulo Leminski, Régis Bonvicino, Alice Ruiz, Duda Machado e Antonio Risério receberam a difícil tarefa de "dar por encerrado o ciclo histórico" da vanguarda recente e avançar em outras direções, para a tão necessária renovação de águas de nossa poesia. É possível reconhecer, nesses poetas, o uso da gíria, a temática urbana, o humor, a síntese, o gosto pelo trocadilho, pelos jogos de linguagem e pela espacialização, recursos que ficam evidentes em livros como Polonaises, de Leminski, Zil, de Duda Machado, ou Navalhanaliga, de Alice Ruiz (a poesia de Risério, publicada esparsamente em revistas, seria reunida em livro apenas na década de 90, com Fetiche e Brasibraseiro, este último escrito em parceria com Frederico Barbosa). Apesar das evidentes qualidades desses autores, certamente os melhores poetas do período, eles pouco avançaram, em termos formais, em relação à "poesia-pílula" de Oswald de Andrade e ao próprio concretismo. Suas criações mais originais e consistentes talvez tenham ocorrido na canção popular (via Tropicália: p. ex., Torquato Neto, Wally Salomão) e na prosa inventiva (Catatau, Metaformose e Agora é que são elas, de Leminski, que deve ser destacado também pela obra tradutória e ensaística, ocupando o lugar de figura central de sua geração, quase um mito).

 

ATO II 

Uma outra tendência iniciada no final dos anos 70 e que evoluiu até os dias de hoje é a da poesia visual, representada por poetas como Arnaldo Antunes, João Bandeira, Lenora de Barros, André Vallias e Elson Fróes. Este caminho criativo retomou processos da vanguarda dos anos 50 e se aproximou das artes plásticas e dos meios tecnológicos, como o computador e as mídias eletrônicas. Um autor que merece ser destacado nesse grupo é o mineiro Sebastião Nunes, autor da Antologia Mamaluca, onde empregou a fotografia e o cartum, o antianúncio e a paródia tipográfica em colagens no estilo ready made de Marcel Duchamp. O poeta utilizou ilustrações de tratados científicos e catálogos de produtos para laboratórios, criando os mais diversos inutensílios, como a seringa para injetar talento poético ou as luvas de borracha para manusear poemas sujos. O que diferencia Sebastião Nunes de seus pares é justamente o humor e o timbre erótico, que só encontram paralelos em Glauco Mattoso, que também incursionou na poesia visual, nos anos 70, quando editava o Jornal Dobrábil. Outro nome que poderia ser lembrado aqui, agora no campo da prosa experimental, é Valêncio Xavier, autor do romance O Mez da Grippe, construído a partir de recortes de jornal da época da I Guerra Mundial e da epidemia de gripe espanhola. Longe de fazer um documentário ou ficção de cunho histórico, o autor elaborou uma antinarrativa paródica, sem personagens ou enredo, onde a ênfase está no português arcaico dos artigos e na linguagem visual dos anúncios, que compõem uma selva de signos.

A influência dos ícones da cultura de massa é visível sobretudo na poesia de Arnaldo Antunes, que mescla o repertório culto à linguagem do out-door, da música pop, do videoclip e do slogan publicitário. Em seus livros impressos, como Tudos e 2 ou + Corpos no Mesmo Espaço, ele utiliza técnicas de diagramação, diferentes fontes, cores e corpos de letras, fotomontagens e desenhos infantis, combinados de acordo com o sentido temático e construtivo de cada composição. Um de seus trabalhos mais consistentes é a trilogia Nome, que integra livro, fita de vídeo e compact disc, obra pioneira na exploração dos suportes digitais. Dentro dessa linha, é preciso destacar o CD Rom que acompanha o livro Não, de Augusto de Campos, que une o som, a imagem e o movimento como elementos estruturais; o sentido é desenvolvido pelo fluxo de signos na tela, numa dançante poética de metamorfoses. Augusto e Arnaldo iniciaram um novo gênero que já não podemos chamar de poesia visual, mas digital ou eletrônica, que promete boas surpresas para o futuro. Curiosamente, ao contrário do que ocorria no século passado, hoje há mais recursos disponíveis para a criação poética do que capacidade imaginativa por parte dos autores. As ferramentas oferecidas pela mídia eletrônica ainda não foram bem assimiladas, possivelmente por motivos geracionais: os poetas conhecem a tradição livresca, mas ignoram quase tudo sobre multimídia, e os técnicos em informática desconhecem por completo a poesia. É possível supor que, dentro de uma ou duas décadas, as novas gerações possam unir o conhecimento dos livros com o manejo tecnológico, tendo condições ideais para desenvolverem poemas interativos, aprofundando as propostas das vanguardas históricas. Será essa, porém, a única via para a experimentação poética? Ou é possível prosseguir com o ideal de invenção no poema-texto?

 

ATO III 

A poesia brasileira, na passagem para o novo século, buscou outros repertórios e manifestações simbólicas e culturais, além dos territórios conquistados pelas gerações anteriores. Os novos poetas leram  João Cabral e a Poesia Concreta, mas também autores como o cubano Lezama Lima, o português Herberto Helder e o romeno Paul Celan, em busca de novas possibilidades criativas. Além das referências literárias, eles foram seduzidos por aspectos da cultura pop, pelos recursos da Internet, pelo compact disc, buscando novas fronteiras para a palavra. Em contraponto a essa busca de paradigmas e meios tecnológicos, houve um ressurgimento do interesse pelas culturas tradicionais, como as sociedades indígenas e africanas, e também pelas formas de pensamento filosófico e religioso do Oriente.  Há uma pulsão de conhecer, integrar, digerir o que se fez de mais inventivo em matéria de linguagem, em outros climas e latitudes, superando as noções estreitas de certo deslocado nativismo. Todos esses elementos, ainda que parciais e precários, são pistas iniciais para caracterizarmos a poesia brasileira dos anos 80 e 90 como uma arte mestiça, impura; não há lugar, aqui, para uma única linha de força, mas para uma pluralidade de poéticas possíveis. Vamos analisar agora, de maneira sucinta, algumas dessas linhas criativas.

Recusando a poesia coloquial centrada no cotidiano, praticada nos anos 70, mas desejando outros caminhos além da visualidade da Poesia Concreta, alguns poetas buscaram a saturação de imagens em linhas de elaborada construção sintática, não raro dissolvendo as fronteiras entre prosa e poesia. Estes autores são densos e não temem a aproximação com o hermético e o barroco pela riqueza de léxico e mescla de referências culturais. Podemos incluir, nesta saudável nau de insensatos, poetas como Horácio Costa, autor de livros como Satori e O Menino e o Travesseiro; Claudia Roquette-Pinto, autora de Saxífraga e Zona de Sombra; Wilson Bueno, com sua notável novela poética Mar Paraguayo; e, com algum discernimento, Josely Vianna Baptista, que publicou Ar e Corpografia,  e Frederico Barbosa, nos livros Rarefato e Nada Feito Nada (sendo que, nesses últimos, a visualidade da Poesia Concreta comparece, no uso da espacialização e na estética do fragmento). Um outro poeta que a princípio poderia ser incluído nesse grupo é o Carlito Azevedo de Collapsus Linguae e As Banhistas (embora posteriormente seguisse outra concepção de poesia, mais domesticada). Todos estes autores têm dicções pessoais bem delimitadas; o que possuem em comum é o ideal de invenção da linguagem no campo da poesia verbal, investindo no arranjo inusitado das palavras, dialogando inclusive com experiências similares no âmbito europeu e latino-americano. Esta linhagem  barroquizante ou hermética, enraizada na construção da linguagem (e antecedida pelo Haroldo de Campos de Galáxias e dos estudos sobre o barroco e a obra de arte aberta) representa talvez o caminho mais consistente de pesquisa e experimentação em nossa poesia hoje, e tem manifestado ressonâncias, inclusive, em autores jovens, como o cearense Eduardo Jorge e a paulista Adriana Zapparoli. 

ATO IV 

Uma poética de fraturas, concisa e elíptica, operando nos limites entre o som e o silêncio: este é o ponto de partida dos poetas que começaram a escrever impulsionados pelo minimalismo, presente em maior ou menor grau em boa parte da poesia moderna (e que atingiu seu ponto máximo na arte concentrada de e. e. cummings, nas primeiras décadas do século XX). A fala reduzida, inenfática, foi uma reação à retórica, ao lirismo, ao excesso discursivo; e também uma forma de explodir a sintaxe linear, pela associação mais analógica do que gramatical das palavras, tratadas como elementos sonoros ou visuais, não raro operando um deslocamento entre o som e o sentido. Essa poética de contornos mínimos é visível, em especial, na obra de autores como Carlos Ávila, Ronald Polito, Régis Bonvicino, Júlio Castañon Guimarães (que depois passou a empregar estruturas mais complexas, sobretudo em Práticas de Extravio) e Jorge Lúcio de Campos, este último operando uma curiosa síntese entre a fragmentação e a imagética visionária, quase surreal. 

Dentre os poetas mais jovens, é preciso citar Virna Teixeira (que publicou os livros Visita e Distância), André Dick (autor de Grafias e Papéis de Parede) e Fabiano Calixto (autor de Fábrica e Música Possível). Todos os três começaram a publicar em meados dos anos 90 na revista Monturo (editada pelo também poeta Tarso de Melo), que divulgou entre nós a poesia norte-americana recente. É preciso ressaltar a qualidade da produção desses autores, que inseminaram na forma reduzida suas vivências, obsessões e leituras, produzindo obras consistentes e pessoais. Porém, devemos apontar também o fato de que esta tendência logo apresentou sinais de esgotamento, pela repetição excessiva dos mesmos procedimentos por um número crescente de autores: linhas concisas e elípticas, em espaço duplo, com uso exclusivo de minúsculas, abundância de substantivos e poucos verbos (sempre no infinitivo), como um soneto pós-moderno. A informação nova exauriu-se, impondo a necessidade da busca de outras estruturas e procedimentos (que já podemos verificar, por exemplo, nos notáveis poemas em prosa escritos por Virna Teixeira, inspirados na fotografia de Nan Goldin). Talvez um desafio para a criação poética hoje seja a descoberta de formas mais densas e extensivas, mas mantendo os princípios da economia, da concentração e do cálculo preciso dos efeitos. 

Há muitos caminhos para a invenção poética, que não segue um fio evolutivo em linha reta, mas movimenta-se em espiral, numa dialética de formas. A experiência da vanguarda recente precisa ser estudada e levada em consideração, como um dos pontos de partida para novas experiências com a palavra. Não se trata de dar continuidade a modelos históricos, mas de buscar outras modalidades de ruptura e metamorfose. Durante os anos 80 e 90, várias tentativas foram realizadas no sentido de dar uma resposta à crise da poesia brasileira. Alguns poetas realizaram procedimentos com a poesia visual; outros desenvolveram uma dicção de cunho barroquizante ou minimalista, e uma outra tendência optou por uma estética que podemos chamar de formalismo informal. Os poetas desse grupo partiram da experiência da vanguarda e da beat generation, sem desprezar a influência da publicidade, do rock and roll e das histórias em quadrinhos. Eles criaram revistas de poesia, como a K'an, Medusa, Coyote e Oroboro, gravaram CDs com poemas cantados ou recitados e investigaram tradições indígenas e africanas, em busca de outras visões de mundo.  

Dentro dessa linhagem, podemos citar autores como Ricardo Aleixo, que buscou inspiração no oriki, o poema ritual de origem iorubá, num livro notável chamado A Roda do Mundo. Aleixo também é músico e artista plástico, apresentando shows e performances com a Sociedade Lira Eletrônica Black Maria. Já Ademir Assunção pesquisou as relações entre o sonho, o cinema e o imaginário dos índios brasileiros, em livros como Cinemitologias e Zona Branca. Em 2005, organizou o ciclo de música e poesia Outros Bárbaros, no Itaú Cultural, e lançou o CD Rebelião na Zona Fantasma, onde faz um interessante cruzamento de linguagens (convém citar aqui dois outros CDs, igualmente bem realizados: Ladrão de Fogo, de Ricardo Corona, e Polivox, de Rodrigo Garcia Lopes, ambos poetas com vários livros publicados e intensa atividade de intervenção cultural). Já Marcos Losnak, que edita Coyote com Rodrigo e Ademir, é um poeta menos conhecido, mas seu livro Um urso correndo no sótão merece ser lido com atenção. Fascinado pelo grafite expressionista, é especialista em criar imagens de alto impacto, que implodem a normalidade do texto discursivo. Em suma, temos aqui autores que vivem o tempo presente e buscam sintetizar uma soma considerável de referências em obras vivas que conversem com os vivos.

 

ATO V

Existe uma família de poetas excêntricos, no sentido etimológico de "fora do centro". A poesia desses autores não se alinha facilmente a qualquer estética ou tendência, pelas particularidades de sua escrita. Nem todos eles procuram a invenção, de maneira consciente, mas praticam uma arte rigorosa, de refinado acabamento formal, e que por esse motivo merecem ser citados em qualquer análise séria da poesia brasileira. Contador Borges, autor de O Reino da Pele, é um deles. Numa primeira leitura de seus livros, podemos considerar que há vestígios do simbolismo e da experiência surreal, na busca da estranheza em paisagens e metáforas insólitas. Porém, a visualidade também está presente, na espacialização das linhas e estrofes. A herança de João Cabral (aquele da Pedra do Sono), por sua vez, se manifesta na contenção verbal e no corte cirúrgico das sentenças. É um poeta raro, voltado ao estudo das sensações, vivências e memórias, transformadas em enigmas verbais. Seu possível antecessor é o Roberto Piva de Paranóia e Piazzas, autor, aliás, que começa a ser redescoberto para a nossa história literária, após décadas de silêncio por parte da crítica, que nunca sabe o que fazer com autores que transgridem as normas habituais do bem dizer. É o preço que se paga pelo cultivo da estranheza, em vez da prática de reciclar o lugar-comum. Estranheza, aliás, é o que não falta em Douglas Diegues, autor de Da Gusto Andar Desnudo por Estas Selvas (sonetos selvajes), que faz uma curiosa síntese do espanhol, do português e do guarani, numa língua híbrida e neológica, com ênfase na temática erótica. Diferente de Glauco Mattoso, que após a experiência visual seguiu o modelo camoniano de composição, respeitando a métrica e as rimas (ainda que transgredindo a solenidade clássica pelo uso da gíria, do palavrão e da escatologia), Douglas recria o soneto de maneira livre e paródica, mas com plena consciência do ritmo dos versos. Sua escrita recorda, en passant, as blagues de Juó Bananere, que realizou uma mescla macarrônica similar, imitando a fala dos imigrantes italianos que viviam em São Paulo em primórdios do século passado. Vale a pena ressaltar as pesquisas que Douglas vem realizando sobre a cultura indígena, aquela "da fronteira", nos ermos entre o Mato Grosso do Sul e o Paraguai. Sua excentricidade chega a ser geográfica, adotando como locus poético uma "terra de ninguém", metáfora da própria poesia.

Uma outra poeta situada na fronteira é Micheliny Verunschk, que viveu a maior parte do tempo em Arcoverde, nos limites do sertão pernambucano (antes de mudar-se para a capital paulista), e cujo primeiro livro se chama, sintomaticamente, Geografia Íntima do Deserto. A poeta enfoca de maneira simbólica os dois desertos, o de fora e o de dentro, o agreste e a solitude, nesse outro deserto do branco da página. Sua escrita tem ecos de Cabral, na secura e precisão semântica, mas com incursões no elemento fabulatório e narrativo (mais evidente em seu segundo título, O Inseto me Observa). A imagética da autora, por sua vez, tem algo da força plástica, visionária e violenta dos expressionistas de língua alemã. É uma poeta que resiste a tentativas de classificação, e nisso reside o vigor de sua poética de pedra e areia. Reflexão filosófica e densidade semântica estão presentes na obra de Antônio Moura, autor inquieto, sempre em demanda das metamorfoses da linguagem.  Seu livro de estréia, Dez, mostra um autor interessado em criar imagens fortes, brutalistas, dialogando com a xilogravura, a variação tipográfica, o uso de palavras, sílabas e letras como se fossem signos plásticos ou mímica verbal. Sua pintura poética atingiu plena realização no livro seguinte, Hong Kong & Outros Poemas, um dos trabalhos mais sólidos da chamada Geração 90. Desconfiando de suas próprias conquistas, e com o olhar voltado à permanente experimentação, Moura trabalhou com outros recursos em Rio Silêncio, seu título mais recente.  Nesta obra, a pintura cede vez à filosofia, e o fragmento ao discurso; são poemas reflexivos, logopaicos, mas sem retórica, falso lirismo ou vocação acadêmica. A comparação possível é com a "música do pensamento" da melhor poesia portuguesa, aquela de Herberto Helder, que faz do registro existencial, das íntimas obsessões e do olhar sobre o mundo motivos para epifania e canto.

 

Pós-escrito:

Uma análise da poesia brasileira, ainda que breve e sem pretensões, não poderia deixar de citar a produção de alguns autores novíssimos que estão publicando trabalhos de ótima qualidade, como Franklin Alves, Leonardo Gandolfi, Diego Vinhas, Delmo Montenegro, Bárbara Lia e Simone Homem de Mello.

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Claudio Daniel, poeta, tradutor e ensaísta, publicou, entre outros títulos, os livros A Sombra do Leopardo (poesia, 2001), Romanceiro de Dona Virgo (contos, 2004), Jardim de Camaleões, A Poesia Neobarroca na América Latina (2004) e  Figuras Metálicas (poesia, 2005).

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[REVISTA ZUNÁI- ANO III - Edição XII - MAIO 2007 ]