ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

GALERIA

 

A DISTRIBUIÇÃO TRIÁDICA DO SILÊNCIO PELAS FORMAS

 

 

Abreu Paxe

 

 

O texto da exposição de Masongi surpreende-nos pelo fato de seguir por uma linha distinta e de se basear numa linguagem artística consolidada numa representação simbólica expressiva. O autor busca outras formas de textura resumidas: nas cores, na queimadura, nas figuras geométricas; com funções semânticas precisas e múltiplas, construindo um discurso dinâmico e interactivo das artes plásticas. Atento à estrutura e à semântica, ou seja, à materialidade comunicativa não-verbal, leva-nos a abordar sinais de novos espaços, novos tempos e novas formas de propostas estéticas com forte ressonância histórica nas complexas relações com os nossos espaços de referências imediatas. O artista, neste texto que nos dá a ver, usa técnicas de composição com um vasto reportório de formas e de imaginação. O mesmo é dizer que os motivos decorativos tornam única cada escultura: pela pintura, pela queimada e pela geometrização. Estes três elementos concorrem não só para as formas que estas peças tomam, como ainda para as suas potencialidades comunicativas e também para a compreensão da tríade como o elemento que nos liga à totalidade de um todo coeso e coerente. Vamos mostrar como, analisando separadamente cada elemento da tríade.

 

Com as cores o artista edifica um texto pictórico que alicerça na escultura a intertextualidade, bem presente no texto das formas. Este diálogo está definido entre as linhas e as cores. As variedades de cores, formas, movimentos e significados levam-nos a olhar para estas peças, como é óbvio, para além da aparência. Nelas observamos que os traçados pictóricos nas duas faces da escultura não nos remete a um fato exterior, mas cria um fato pictórico que transforma a pintura, com todo o seu simbolismo, num reflexo lírico. As linhas pela delicadeza das cores configura um traço, vemos que é leve – decidido -, porém suave. Estas mesmas linhas reforçadas pelas cores desprogramam a possível construção geométrica, por um lado, na simbiose entre as cores e as linhas, por outro, nas intersecções complexas criadas. As cisões visualizadas como linhas pela textualidade das cores nas quais o preto e o branco são recorrentes, têm expressões diferentes, comparadas com as outras. Estas expressões estão integradas no corpo da peça, nas duas faces, na parte lateral e no tripé no qual repousa a peça. Na mesma os traços socorrem-se duma linguagem figurada primária. Pelo que vemos, pensamos que o artista ou se coloca fora ou acima e supera a história da pintura. Aqui o artista faz funcionar as cores nas formas de expressão, dá conta de toda uma situação de vida e conta toda a história: do entorpecimento, da fragilidade, do deslize, do escuro, do branco, do espelho do mundo, da fragmentação da realidade.                  

 

Com a queimada que se situa bem no centro da peça, visualizamos um texto em escultura com uma linguagem que se inscreve sólida e que se mostra produtiva como arte. Assente numa base de contaminações, com reminiscências bantu e não só, confirma “a relação consequente e frutífera entre a diversidade, o hibridismo e a criatividade” de que fala Lotman. Aqui renova-se o conflito ou contato entre culturas e tradições, rosto da arte contemporânea angolana. O artista coloca nesta obra a sua concepção individual de mundo, conferindo a face dupla, para nos recordamos da bifacialidade da máscara, mukixi, do espaço Lunda Cokwe, ou seja, o artista, ao queimar a madeira, leva-a à destruição, aos escombros e ao apagamento e como consequência salta para outro nível e provoca a ruptura, a abertura, sendo esta última o topus no qual se consentem os fluxos onde se reveza o hibridismo economizado, por um lado, pelo contato de culturas e tradições e, por outro, pelo protocolo de formas e os discursos que estas peças encerram. A obra supostamente destrói a interpretação da arte moderna como uma evolução linear em relação à pureza de cada forma, dispensando paulatinamente elementos estranhos a ela, tomando com exemplo as funções narrativas e representações, não obstante a textura das esculturas apropriarem-se dos meandros da nossa imaginação colectiva. Estas peças proporcionam linguagens que consolidam os sonhos e pesadelos simbolizados pela abertura e pelos sinais da queimadura, confundindo-se em miríades de fragmentos de uma realidade deformada na qual temos a nítida impressão de que a iremos ultrapassar. A obra tem um sentido agudo de transformação e mudanças duma África em que vivemos, povoada de guerras, de miséria, de destruição, de opressão e de morte.             

 

Com as figuras geométricas apresentadas, dentre elas os losangos, os triângulos e os retângulos, nos rebordos de cada peça, seus motivos decorativos atualizam discursos cuja textura nos faz recordar mais uma vez a arte Lunda Cokwe, que se baseia na geometrização das formas nas peças artísticas. As cores que reforçam a geometrização nestas peças dão a elas expressão como a que o triângulo veicula, ao ser salientado por estas cores, representando o desabrochar da flor que constrói um discurso linear, em suma, no mesmo se pode buscar significação e compreensão de harmonia, de paz e de bem-estar. Nestas peças pode-se notar a contínua transformação criativa que o Masongi vem apresentando na sua proposta artística. Podemos testemunhar a marca de um artista que sabe esculpir suas peças imprimindo-lhes cisões, aprofundando planos, combinando tonalidades, reconstituindo fragmentos, situando seus personagens numa dada semiosfera, única e singular com temática da transgressão que se faz presente na forma pela recusa de acabamento, quando decompõem a madeira queimando-a, também quando deixa a tinta escorrer no tripé sem lhe dar aquele acabamento preciso, sugerindo, pela textura, um posicionamento de visualização geométrica diferente, ainda quando apresenta a transgressão do comportamento dos valores e ideologia pela sugestão da arte como prática perversa. O fenómeno de analogação sistemática destas peças pelo processo de geometrização mesmo contrário, consente apenas a gradação pela forma como as imagens se multiplicam e se intensificam em busca da totalidade pela tríade.

 

Em suma, o mundo artístico de Masongi revela-se como uma aventura única e singular. A linguagem investida em cada peça revela-se como autêntica maravilha, configurada na sua grande capacidade de diálogo com outras formas de expressão artística e outros textos de entre eles o da tradição oral. O artista leva-nos a ter certeza, pela nossa experiência nas pesquisas que estamos a desenvolver, de que o impacto das artes visuais atinge todas as esferas da vida. Mas acima disto é interessante observar como é que a produção artística contemporânea vai silenciando o discurso da autoridade cultural, vai ilustrando as grandes características dum texto renovado. Podemos verificar isto no movimento implícito ou explícito do texto de que estamos a falar, pela sua textura, pelas cores, pela força das formas, pela tépida vibração que sentimos ao olhar o objecto e as suas disseminações. O mesmo como se pode ver, pela singularidade, move-se no mesmo sentido, no qual a verdade e o conhecimento passaram a ser relativos e dependentes de um sistema de relações de poder e de jogos de linguagem com uma sintaxe de cores locais e refuncionalizadas. O equilíbrio que Masongi empresta no seu texto escultórico mostra a qualidade evolutiva da arte moderna angolana, daí pensarmos, para concordar com António Ole, que, para nós, o belo não deve ser somente motivo de admiração, mas também de educação.

 

Vale do Loge, ao 18 de Julho de 2008.

 

 

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