ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

GALERIA

JACQUES CALLOT

 

E. T. A. Hoffmann

 

Por que nunca me canso de olhar para suas ilustrações fantásticas, Ousado Mestre! Por que é que suas figuras, quase sempre apenas sugeridas por alguns traços arrojados, não me saem da cabeça? Fixo o olhar em suas composições, criadas pelos elementos mais heterogêneos, e milhares e milhares de figuras adquirem vida, todas se movimentam, vindas às vezes do mais remoto pano de fundo, a princípio quase irreconhecíveis, depois elas se aproximam e saltam brilhando nítidas e naturais para o primeiro plano.

Nenhum mestre soube, como Callot, reunir num pequeno espaço, sem confundir nosso olhar, uma abundância de elementos distintos, um ao lado do outro, às vezes até sobrepostos, mas cada um mantendo sua singularidade e perfilando-se com o todo.

Talvez um crítico exigente lhe tenha censurado a ignorância sobre a apropriada distribuição dos elementos, bem como da luz; no entanto, sua arte extrapola também as regras intrínsecas da pintura, ou, mais que isso, seus desenhos são apenas reflexos de todas as fantásticas e mágicas visões que a magia de sua fantasia superexcitada suscita. Pois mesmo em suas representações da realidade, do teatro, das batalhas e assim por diante, há uma fisionomia cheia de vida bastante peculiar que proporciona a suas figuras, aos seus agrupamentos – eu gostaria de dizer que dá algo de insólito familiar. Mesmo a cena mais comum do cotidiano – uma dança de roceiros, para a qual músicos tocam sentados em árvores como passarinhos, - aparece no brilho de uma originalidade, de forma que a índole dedicada ao fantástico é atraída de forma estranha. A ironia, que colocando o humano em conflito com o animal, escarnece do homem com sua pobre azáfama, habita somente o espírito profundo.

E assim, as ridículas figuras humanas e animais de Callot revelam ao espectador sério e mais insistente todas as insinuações secretas, guardadas sob o véu do grotesco.

É bom saber que Callot foi ousado e destemido na vida, assim como nos seus desenhos sólidos e fortes. Conta-se que, quando Richelieu lhe pediu para registrar a tomada de Nancy – cidade natal do ilustrador -, ele declarou corajoso que lhe era preferível cortar o próprio dedo a eternizar através de seu talento a humilhação dos nobres e da pátria.

Um poeta ou escritor, a quem se apresentassem em seu espírito romântico figurações da vida comum, e que as representasse agora, esplêndidas como na fonte, num estilo estranho e raro, não poderia tal poeta ou escritor se desculpar com o mestre, dizendo que quis trabalhar à maneira de Callot?

Tradução: Maria Aparecida Barbosa

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Nota da tradutora: o pequeno texto Jaques Callot, do escritor alemão E. T. A. Hoffmann (1776-1822), foi publicado pela primeira vez em 1814, no contexto da coletânea intitulada Fantasiestücke in Callots Manier – Blätter aus dem Tagebuch eines reisenden Enthusiasten (Quadros Fantásticos à maneira de Callot – do diário de um viajante entusiasta). O autor refere-se, portanto, aos contos e ensaios literários reunidos na coletânea como Stücke (cuja forma singular é das Stuck), acepção equivalente ao termo Gemälde = quadro. As imagens do francês inspiraram a literatura hoffmanniana.

Jaques Callot foi um desenhista e gravador em cobre, que viveu em Nancy entre 1592 e 1635. Ao elogiá-lo, Hoffmann está confessando um objetivo literário, apostando na riqueza de detalhes e na profundidade de campo (zona de nitidez atrás e à frente de uma cena), características das ilustrações do mestre francês, o que demonstra afinidade com tendências intertextuais bastante contemporâneas. Além da apologia e do esclarecimento de um programa estético, ele apresenta uma característica própria: “poeta ou escritor, a quem se apresentassem em seu espírito romântico figurações da vida comum”.

No texto, Hoffmann menciona ainda um lendário episódio envolvendo o cardeal Richelieu (1585-1642), que era chefe das questões do Estado à época de Luís XIII e estabeleceu com violência o poder centralizado na França.

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