ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

A POESIA COMO EXERCÍCIO DA PERPLEXIDADE:
UMA CONVERSA COM MARIA ESTHER MACIEL




Por Wilmar Silva

 

 

“Por mais que eu tente, não consigo me desvencilhar da poesia. Mesmo em meus exercícios de prosa ela permanece e me desafia. O Livro de Zenóbia é um exemplo disso. Ainda que, nele, eu tenha me proposto a contar histórias, descrever cenas prosaicas da vida de uma personagem, a poesia me levou a explorar essas coisas por vias transversas: ao invés de me valer do fluxo contínuo da prosa narrativa, da sucessividade temporal, procurei me ater aos ritmos e texturas da memória, com seus fragmentos de imagens, sensações, reminiscências, cortes e dizeres breves, sempre atenta à sonoridade, aos ecos e ressonâncias das palavras”, diz Maria Esther Maciel, em entrevista a Wilmar Silva. Conforme a poeta e ensaísta mineira, “a poesia é, antes de tudo, um exercício de perplexidade. É o resultado de nossos assombros, incertezas, erros e errâncias. E que, para existir enquanto tal, demanda uma linguagem (ou uma forma) capaz de provocar atos internos no leitor”. Esta capacidade da poesia de despertar reações imprevisíveis,  para Maria Esther Maciel, é ao mesmo tempo infernal e libertária: “Sempre fui fascinada pelos infernos que definem, por dentro, a vida de uma pessoa. E um de meus infernos é este: o da linguagem em sua mais íntima liberdade”. Confiram abaixo a entrevista  com a poeta, prosadora e ensaísta mineira, estudiosa de Octavio Paz, Augusto dos Anjos, Sóror Juana Inés de la Cruz, Bispo do Rosário, dos bestiários e das relações entre poesia e cinema, que há pouco publicou o seu segundo título de ficção, O Livro dos Nomes, pela editora Companhia das Letras.

 

 

Zunái: Seus poemas de estréia, em Dos haveres do corpo, revelam a palavra na textura do corpo – que física verbal é essa?

 

 

Maria Esther Maciel: Como o próprio título indica, o tema predominante em Dos haveres do corpo, de 1984, é o corpo e seus possíveis. De feição lírico-erótica, tendendo, em vários momentos, ao elegíaco, esse livro foi organizado à luz de alguns excertos do livro Fragmentos de um discurso amoroso, de Roland Barthes. Nele subjaz a idéia do corpo como um livro e vice-versa: a palavra como realização inconclusa do desejo que sempre permanece desejo. Percebo que, nesse primeiro trabalho, algumas marcas de minha poética posterior já se delineiam: a concisão, um certo despojamento da linguagem, o ritmo melódico e uma subjetividade algo oblíqua. O que o diferencia do Triz, publicado em 1998, é a espontaneidade, um certo frescor intuitivo, o exercício de uma escrita mais permissiva em termos de linguagem.

 

 

Zunái: A presença do pai, “constelação” como “ponto de fuga”: o que há em nossa cultura que a existência parece ser apenas o tempo carpe diem na terra?

 

 

Maria Esther: A morte, enquanto tema, sempre me interessou, pelo que traz de intrigante e instigante. Em quase todos os meus livros reporto-me – não sem uma certa perplexidade – a ela e  ao absurdo que a atravessa. No caso do livro Triz, isso ganhou uma intensidade bem maior, pois, ao escrevê-lo, eu estava sob o impacto da morte de meu pai – pessoa a quem devo quase tudo do que sou. Eu quis fazer a ele uma homenagem. Mas uma homenagem que, sem prescindir do pathos, pudesse se esquivar do sentimentalismo fácil, do puro exercício do sofrimento. Se, naquele momento, não havia fingimento possível para a dor que eu sentia, coube-me, então, desviá-la de sua obviedade, de seus excessos. A idéia de me valer dos eletrocardiogramas surgiu quase por acaso. Quando os encontrei em meio aos guardados recentes de meu pai (que morreu de enfarte), percebi que naquelas tiras de papel havia uma escrita, um ritmo. Em cada linha, um verso. Aí resolvi explorar as possibilidades dessa linguagem do coração, conjugando-a com as minhas próprias palavras e com a imagem figurativa (biológica) do órgão, acompanhada de sua taxonomia. Eu queria exaurir o signo coração, em suas várias figurações e transfigurações. Dessa forma surgiu toda aquela parte visual do livro, em que enlaço o experimentalismo à experiência, os jogos semânticos à expressão do visceral.

 

 

Zunái: Fala-se muito na perda da matilha de sentidos quando a pessoa divide sua vida com o universo acadêmico. Você poderia falar um pouco sobre a experiência de escrever do habitat da criação e a de escrever a partir de teorias e comparações?

 

 

Maria Esther: O meu trabalho de criação é bem anterior ao meu ingresso na vida acadêmica. Aos 13 anos, eu já publicava meus poemas e contos nos jornais de Patos de Minas. Mas, curiosamente, o meu interesse pela teoria também começou a se manifestar nessa mesma época. Basta mencionar que, dos 15 aos 18 anos, eu escrevia regularmente resenhas de livros para esses mesmos jornais e sempre procurava ler estudos sobre literatura. A opção pelo curso de Letras foi bem consciente, muito motivada por esse duplo interesse. Nunca tomei a criação e a teoria como campos dissonantes, excludentes. Mesmo depois de iniciar minha trajetória acadêmica, a relação entre essas duas coisas nunca chegou a ser, para mim, qualquer tormento. É claro que a atuação no universo acadêmico incidiu no meu trabalho criativo, tornou-me mais exigente em termos de linguagem, deu-me uma consciência maior do processo da escrita. E creio que isso foi muito bom para a minha aprendizagem, para o meu aprimoramento enquanto escritora. Mais do que nunca estou convicta disso. E digo que essa formação acadêmica também não me impede de estar, cada vez mais, aberta ao que você chama de “matilha de sentidos”. Mesmo quando escrevo ensaios crítico-teóricos, não me furto ao chamado da sensorialidadeeda experiência.

 

 

Zunái: É possível dizer que a poesia de seu livro de estréia vislumbra “conceito” e “gênese” de “um simples pedaço de angústia” (Roland Barthes), menos explorado em livros futuros?

 

 

Maria Esther: Como disse anteriormente, a poesia de meu livro de estréia não tem nenhum pudor de ser visceral. Ele deixa à flor do verso os pedaços de angústia, os apelos da alma e da pele. E sem medo de dizer “eu”.

 

 

Zunái: Sendo ensaísta e professora, aquela que é “libertina”, dizendo “sou a mulher das encruzilhadas” apresenta a “liberdade da minha linguagem” (Leminski) da poeta e mulher Maria Esther Maciel – que “hell” é esse?

 

 

Maria Esther: Sempre fui fascinada pelos infernos que definem, por dentro, a vida de uma pessoa. E um de meus infernos é este: o da linguagem em sua mais íntima liberdade.

 

 

Zunái: O Livro de Zenóbia é uma “proesia”, a exemplo da fala de Caetano Veloso sobre Galáxias de Haroldo de Campos?

 

 

Maria Esther: Por mais que eu tente, não consigo me desvencilhar da poesia. Mesmo em meus exercícios de prosa ela permanece e me desafia. O Livro de Zenóbia é um exemplo disso. Ainda que, nele, eu tenha me proposto a contar histórias, descrever cenas prosaicas da vida de uma personagem, a poesia me levou a explorar essas coisas por vias transversas: ao invés de me valer do fluxo contínuo da prosa narrativa, da sucessividade temporal, procurei me ater aos ritmos e texturas da memória, com seus fragmentos de imagens, sensações, reminiscências, cortes e dizeres breves, sempre atenta à sonoridade, aos ecos e ressonâncias das palavras. Creio que a palavra “proesia” caberia aqui, sim.

 

 

Zunái: A experiência de vida antes da cidade e da universidade: o que ainda guarda como inventário da origem?

 

 

Maria Esther: A experiência da vida provinciana, tal como ela se insinua no poema “Estorinha matreira”, de Dos haveres do corpo, reinventa-se em O Livro de Zenóbia.  Vale lembrar que Zenóbia é uma personagem do interior, que vive as miudezas de seu cotidiano mais prosaico e busca extrair disso pequenas epifanias e assombros. Mas o fato de viver em uma cidade do interior de Minas não a impede de freqüentar, através da leitura, autores de muitas outras paragens, alguns universais. Basta dar uma olhada na lista de seus livros de cabeceira. Ela é uma mulher com um certo requinte intelectual, mas que não abre mão do legado provinciano que recebeu e que faz parte de sua formação. E talvez nesse legado esteja a sua maior solidez.

 

 

Zunái: Também na sua poesia há um réptil liquido: o rio Paranaíba, “o Tejo não é mais belo que o rio de sua aldeia”?

 

 

Maria Esther: O rio Paranaíba é o meu “Tejo”, em cujas margens eu costumava me sentar – quando criança – para observar os peixes esquivos. Com eles aprendi que as coisas, por mais estáveis que sejam, contêm, todas elas, um rio – subterrâneo ou de superfície. E é aí  que se revela o desassossego. 

 

 

Zunái: Como aconteceu o nascimento da poesia em sua vida?

 

 

Maria Esther: Aconteceu quando eu era ainda uma menina de dez, onze anos. Descobri a poesia através de Cecília Meireles. Pouco tempo depois a redescobri em Drummond.  Com ele aprendi que ser poeta é, sobretudo, chegar àquilo que Antonin Artaud chamou de “núcleo irrequieto” das coisas, que as formas muitas vezes não tocam. Desde então, quis ser também poeta.

 

 

Zunái: Se Octavio Paz disse que poesia é “linguagem em estado de pureza selvagem”, para Maria Esther Maciel o que é poesia?

 

 

Maria Esther: A poesia é, antes de tudo, um exercício de perplexidade. É o resultado de nossos assombros, incertezas, erros e errâncias. E que, para existir enquanto tal, demanda uma linguagem (ou uma forma) capaz de provocar atos internos no leitor.

 

 

Zunái: Como foi trabalhar com Augusto dos Anjos na dissertação de mestrado e depois Octavio Paz no doutorado? Pensar é “enfrentar paradoxos”?

 

 

Maria Esther: Augusto dos Anjos é um poeta das sombras, que atravessa a esfera do terrível. Paz é um poeta solar, ainda que afeito a certos encantos da penumbra. Minha incursão na obra do primeiro foi uma espécie de descida aos infernos da própria linguagem. Em Paz encontrei uma lucidez que, de tão lúcida, revela sua própria vertigem. Nos dois, distintas maneiras de enfrentar paradoxos. Aliás, sempre tive fascínio pelo paradoxo e pelo “encontro inesperado do diverso”. Todos os autores de minha predileção – de Augusto dos Anjos a Fernando Pessoa, de Clarice Lispector a Emily Dickinson, de Kirkegaard a Octavio Paz – são visceralmente paradoxais.

 

 

Zunái: Se pudesse escrever uma obra que fosse exatamente aquela que mais admira, que autor gostaria de ser, ou que obra apagaria o nome do criador para colocar o seu nome?

 

 

Maria Esther: Eu me faria autora de As mil e uma noites.

 

 

Zunái: Se a poesia fosse impossível para você, consegue imaginar Maria Esther Maciel trabalhando em que atividade?  

 

 

Maria Esther: Eu a imagino trabalhando como cineasta ou diretora de uma associação protetora dos animais.

 

 

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Leia também fragmentos de O Livro de Zenóbia, de Maria Esther Maciel, os ensaios Poesia à flor da  tela e David Lynch e a estética do pesadelo e traduções de textos de Peter Greenaway.

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