ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

“A LÍNGUA É UM ANIMAL EM METAMORFOSE”
UMA CONVERSA COM JORGE MELÍCIAS



foto de Natália T.

 

Por Wilmar Silva

“A qualquer tentativa de desconstrução e reinterpretação do real prefere-se o chão firme do imediatamente reconhecível, como se fosse esperado que a escrita do poeta A ou B fosse ao encontro de uma suposta memória colectiva. O ónus é todo posto nessa bem encenada coreografia das emoções, sempre alicerçada na sobrevalorizada muleta poética que é a memória. E quando à memória se junta, e junta quase sempre, essa coisa chamada melancolia, entramos definitivamente no terreno pantanoso do subjectivismo. Ao contrário do que nos querem fazer crer a poesia não é o domínio do imediato reconhecimento e da mera afinidade emocional. A verdadeira forma de chegar ao outro é pela excepção”, diz o poeta, tradutor e editor português Jorge Melícias em entrevista para a Zunái, realizada por Wilmar Silva. O poeta considera o idioma “um animal em metamorfose” e por esse motivo discorda da “tentativa de adestração política e económica” representada pelo recente acordo ortográfico entre a os países da comunidade de língua portuguesa. Conforme diz o poeta, “À igualdade quando a diferença nos descrimina prefiro sempre a diferença quando a igualdade nos anula.”

 

Zunái: Por pensar em poesia, o que significa ser poeta no globo de hoje?

Jorge Melícias: Adorno escreve, na sua Teoria Estética que “a verdade é a antítese da sociedade existente”. Nesta perspectiva a função de toda a arte terá de ser sempre a de “empenhada negação do status quo.” A poesia torna-nos conscientes de certas questões como as da autoridade e da convenção, não para as fazer desaparecer (o que seria de todo impossível), mas para as reconfigurar: sendo que a desfiguração é um pré-requisito necessário à reconfiguração, à regeneração da capacidade de figurar ou de pensar figurativamente. Ela deverá ser sempre essa aversão à conformidade (num permanente processo de fuga à regra), uma constante procura de uma dinâmica a um tempo centrípeta e centrífuga. Não existem padrões de estética e cultura universais. Assim sendo também o multiculturalismo (neste irreversível processo de globalização, onde a cultura anglo-americana é hegemónica e determina os modelos culturais vigentes) enferma do mesmo não-sentido. Redobra, pois, de acuidade a questão do poder da linguagem, cabendo à poesia ir ao encontro do que a ideologia dominante coloca fora da linguagem. Pede-se à poesia uma espécie de “guerrilha”, que abra fendas no bem urdido tecido do senso-comum e da mera e rasa repetição. Só nesta dialéctica e/ou confronto da poesia com a ideologia (até porque não há poesia fora da ideologia. A poesia terá sempre ideologia, o que não significa que seja, necessariamente, ideológica) se poderão mudar os mapas da linguagem e, fundamentadamente, questionar as formas de representação da sociedade e do mundo.

 

Zunái: Se poesia é linguagem, como você, Jorge Melícias, entende a função da letra no espaço de palavras?

 

Jorge Melícias: Ler um poema é não apenas entender como o sentido se organiza na página mas, também, como a própria página constrói o sentido. Ler-ver (não esquecer que o olho vê antes mesmo de ler) o poema é uma das condições de acesso ao ritmo da língua no poema, à sua significância. Esta não se encontra apenas no sentido das palavras, mas também na forma como os elementos constitutivos do texto estão dispostos na página. As formas gráficas não são um “corpo estranho” ao poema mas um corpo significante integrado. Segundo Meschonnic: “Os brancos são necessários ao poema. Não apenas como margens, mas como entrada do branco da página no interior do corpo do texto. As entradas dos brancos marcam uma alternância entre o conhecido e o desconhecido, o não-dito e o dito, avanços, recuos, as intermitências do viver-escrever. (…) O branco não é um espaço inserido no tempo de um texto. Ele é parte da sua progressão, a parte visual do dizer”. Mas ao lado desta espacialidade ou topografia do texto (os “brancos”, a disposição do poema na página, a distribuição dos versos nas linhas, a divisão ou não do poema em estrofes) existem os elementos tipográficos (os caracteres usados, a presença ou ausência de maiúsculas no início dos versos ou no corpo do texto, a presença ou ausência de pontuação, a cor ou cores da impressão, etc.). Estes elementos tipográficos dispostos no espaço da página constituem as suas marcas scripto-visuais.

 

No caso dos poemas figurativos e outros poemas espaciais/visuais os vectores de leitura e descodificação exigem uma atenção especial. É para isso que nos alerta Jacques Anis ao defender que os caligramas possibilitam, em geral, vários percursos de leitura, cabendo ao leitor fazer os seus, assim como recuperar aqueles que o texto sugere. De facto, desde o Lance de Dados de Mallarmé (e de toda a poesia moderna) que se preconiza a elaboração do sentido a partir de níveis fragmentários da linguagem. Também Apollinaire (um poeta muito marcado pela oralidade e pela sonoridade) privilegia os elementos rítmicos e respiratórios, para além da autonomia da imagem, no corte do verso. Com o Simbolismo começa a verificar-se uma descentralização da frase no poema, articulando-se as formas. Mas é só com o Modernismo que se passa a colocar a questão de uma lógica espacial. Será a partir deste movimento que o verso passará a ser a unidade de sentido maior na poesia. Assim, em qualquer discurso, e de forma mais significativa, nos discursos poéticos, a tipografia é constitutiva dos discursos e, na maior parte das vezes, uma das suas dimensões mais significativas. O estilo relaciona-se com a forma na exacta medida em que a forma altera o conteúdo e o espaço é assim o lugar de várias leituras (um texto de prosa poética não marca graficamente o espaço). Como Robert Duncan nos diz: “a margem fala”.

 

Zunái: Para ficar em três nomes – Luís de Camões, Fernando Pessoa, Herberto Helder – ainda é possível produzir uma poética seminal frente ao lirismo de agora? 

Jorge Melícias: Como já defendi em diversas ocasiões, o poema tem vindo a aproximar-se perigosamente do lugar da não-tensão, da razia mais ostensiva. Essa intensidade, resultante do choque dialogante entre conteúdo e forma foi, abruptamente, substituída por uma ligeireza conceptual que está aí para fazer escola. A uma poesia de força que intente, por uma árdua oficina, qualquer tipo de ruptura, sobrepôs-se uma estética do comezinho. E esse quotidiano, mais que um ponto de partida, parece ter-se fechado, irremediavelmente, sobre si mesmo, ganhando com isso contornos de alvará e arrogâncias de lei. E isto é válido tanto para uma poesia mais assumidamente ligada à memória e ao confessional como para esse revivalismo realista, com laivos de segurança social, que por estes dias grassa no panorama literário.

 

Mas para responder directamente à pergunta acredito que sim, que essa poética de excelência é, não só possível, como absolutamente necessária. Como defende Charles Bernstein “qualquer coisa será preferível à epifania bem-escrita da métrica previsível”.

 

Zunái: Sendo da Cosmorama Edições, que poéticas brasileiras são de interesse da coleção de poesia da editora?

 

Jorge Melícias: Tendo o Brasil geografia a mais isso reflecte-se, necessariamente, na pluralidade de vozes que constituem o espectro da poesia brasileira contemporânea. Por essa mesma razão não pretendemos confinar as apostas da editora ao eixo Rio-S. Paulo. Se aí podemos encontrar autores de grande interesse como Claudio Daniel (que abriu com o seu Escrito em Osso a edição de poesia brasileira da Cosmorama), Horácio Costa (que editaremos, estou crente, em breve) ou uma jovem poeta chamada Camila Vardarac, a verdade é que noutras latitudes esse interesse não esmorece: Wilmar Silva (de quem publicámos Yguarani) ou Ricardo Corona (que verá, já em Outubro, sair o seu livro amphibia), Ronald Augusto ou Franz Cecim, são nomes que, paulatinamente, queremos ver mais conhecidos em Portugal.

 

Zunái: Se a língua é um animal em metamorfose, o que pensa sobre o acordo ortográfico da língua portuguesa?

 

Jorge Melícias: Precisamente porque acredito que a língua é um animal em metamorfose é que não concordo com a tentativa de adestração política e económica que constitui o acordo ortográfico. Já Teixeira de Pascoaes, a propósito da reforma ortográfica de 1911, mostrava o seu pesar em relação ao desaparecimento do “y” em “abysmo” e em “lyrio (o “y” daria, segundo Pascoaes, a ideia de profundidade a “abysmo” e a ideia de elegância a “lyrio”). Não vou tão longe como Pascoaes ao defender a obliteração de sentido que a supressão do “y” então acarretou mas que, gráfica e imageticamente, algo se perdeu parece-me indiscutível. A verdade é que a grafia nunca se constituiu como verdadeiro entrave à plena fluência do português escrito, tanto por parte de leitores portugueses de obras em português do Brasil como em relação à situação inversa. Também com os restantes países de língua oficial portuguesa estou em crer que o ênfase não deva ser posto aí. Separam-nos muito mais depressa questões lexicais ou de semântica que questões gráficas, mas nunca ninguém teve a brilhante ideia de suprimir fauna ou flora que não fossem comuns a todos os falantes de português. Heureusement!!! A excelência só existe na excepção e como defende o autor de A-Poética “À igualdade quando a diferença nos descrimina prefiro sempre a diferença quando a igualdade nos anula.”

 

Você também tradutor, o que pensa sobre a língua portuguesa que se fala no Brasil se comparada ao português de Portugal?

 

Jorge Melícias: É onde actualmente a vertente plástica da língua portuguesa se revela em toda a sua riqueza. Para isso concorre a vastidão geográfica do próprio Brasil, o grau e a variedade de influências a que um território dessas dimensões está sujeito, quer interna quer externamente, e, obviamente, a longa tradição de notáveis estetas linguísticos em que o Brasil é e sempre foi pródiga e de que Guimarães Rosa e Manoel de Barros são apenas dois exemplos.

 

Zunái: A memória é uma ficção em sua poesia, ou a poiesis é um trabalho confeccionado de palavras?

 

Jorge Melícias: A rilkeana ideia de memória como infindável manancial de diálogo, tão cara a alguns novos autores, está na base do real empobrecimento imagético de muita da mais recente poesia. De facto, a memória, essa imaginação preguiçosa, tomou de assalto os nossos sensíveis corações e recolocou no centro do móbil poético as nossas mais que partilháveis experiências de vida e as nossas mais que felizes infâncias, também elas tão partilháveis. A qualquer tentativa de desconstrução e reinterpretação do real prefere-se o chão firme do imediatamente reconhecível, como se fosse esperado que a escrita do poeta A ou B fosse ao encontro de uma suposta memória colectiva. O ónus é todo posto nessa bem encenada coreografia das emoções, sempre alicerçada na sobrevalorizada muleta poética que é a memória. E quando à memória se junta, e junta quase sempre, essa coisa chamada melancolia, entramos definitivamente no terreno pantanoso do subjectivismo. Ao contrário do que nos querem fazer crer a poesia não é o domínio do imediato reconhecimento e da mera afinidade emocional. A verdadeira forma de chegar ao outro é pela excepção.

 

Zunái: Prefere a poesia que é literatura, ou acredita em Ezra Pound ao defender uma poesia em liberdade?

 

Jorge Melícias: Pound falava da “dança do intelecto por entre as palavras”, com o intuito de fugir à lógica causal que a gramática nos impõe, cabendo à poesia (e à arte, em geral) procurar essas “linhas de fuga” à regra com o intuito de alterar os mapas do senso-comum. É aqui que reside, ou deve residir, essa escolha de liberdade, nessa constante transgressão e posterior construção da sua própria “irracionalidade”. Como nos lembra Roland Barthes “a escrita não é um instrumento de comunicação, não é um caminho aberto por onde passe uma só intenção de linguagem.” Nesse sentido, a escolha do escritor por um determinado tom ou forma (e, ao optar, o escritor individualiza-se na exacta medida em que se compromete) será, por força, uma escolha de consciência e não de eficácia. Perante tudo o que admite ou exclui, essa escolha inscrever-se-á, sempre, no domínio da liberdade. Ainda que, numa perspectiva continuada, esse mesmo tónos possa tornar-se, a um tempo, a grandeza e a prisão de uma escrita.

 

Zunái: Se a infância é o nirvana da liberdade, por que os poetas escrevem marcados pelos acordos de linguagens estabelecidas?

 

Jorge Melícias: Excelente pergunta, e a resposta não é, parece-me, a mais abonatória. As razões pelas quais os poetas se cingem, a maior parte das vezes, a códigos pré-estabelecidos de linguagem é tão defensável quanto mais humana: por um lado, o doce engodo da comunicabilidade (ainda que a todos os níveis impere o modelo agónico), e por outro, a mais pura cobardia (o medo do solipsismo é avassalador e a atestar isso mesmo temos, por exemplo, as experiências dadaistas ou desconstrutivistas russas, de Khlébnikov a Alexéi Jruchenvj, passando pelo próprio Maiakovski). À desautomatização total da linguagem, que em última análise a liberdade levada ao extremo acarreta, o poeta prefere essa “morte a crédito” que não o afaste por completo e em definitivo do convívio com a polis.

 

Zunái: Fosse a uma temporada no inferno, que poetas você levaria para as noites de cerveja?

 

Jorge Melícias: Celan, Rimbaud, Saint-John Perse, Heinner Müller, Nerval, Gottfried Benn, Georg Trakl, Char, Leopoldo Maria Panero, Luis Miguel Nava, Dickinson, Pierre Reverdy, Luiza Neto Jorge, Robert Duncan, Isabel de Sá, Herberto Helder, Gamoneda, Maiakovski, Cabral de Melo Neto…

 

 

 

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Jorge Melícias, poeta português, nasceu em 1970. Publicou, entre outros títulos, os livros de poesia Ahagahe (1994), A um deus de olhos de graça (1995), Iniciação ao remorso (1998) e Incubus (2004). Traduziu Elogios, de Saint-John Perse, Cartas de Isidore Ducasse, de Lautréamont, Conselhos aos jovens literatos, de Charles Baudelaire, entre outros.

 

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