ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

O TEOR POLÍTICO INERENTE À ARTE:
A IRONIA, O REVOLUCIONÁRIO E O UNIVERSAL – UMA INTERAÇÃO ENTRE
BERTOLD BRECHT E LIMA BARRETO

 

Viviane de Santana Paulo

 

Segundo Aristóteles, o homem é um animal político (zoon politikon), “ele é o conjunto de várias ações combinadas. Ações intelectuais, morais, religiosas e políticas. Em todas elas sobrepõe-se a ideologia existente em cada ser. A partir do momento que vive-se em sociedade, o homem torna-se um ser político. O homem pleno é um animal político”1. Partindo desse princípio é incontestável o relacionamento entre política e arte existente desde o início da evolução dessas formas de expressão humana. Segundo o filósofo francês Jean-Luc Nancy: “sem dúvida a arte e a política sempre estiveram unidas através dos símbolos. Aquilo que o faraó representava era aquilo que ficava esculpido em sua estátua, aquilo que o povo vivia era encenado nas acrópoles, no teatro e nas festas e o mesmo acontecia com a soberania nacional da arte na época da renascença. As formas diferentes de política possuíam o seu símbolo correspondente. Possivelmente, hoje em dia deixamos tudo isso para trás”2. Até que ponto deixamos tudo isso para trás é um tema que Nancy continua pesquisando, para ele a questão não é mais a política na arte, porque ambas não possuem mais nenhum ponto de referência comum: "não existe nem um motivo mitológico comum, de onde se poderia extrair a inspiração, nem uma esquematização comum para as fórmulas de representação"3. “A estetização da política” ou a “politização da arte” são fórmulas que nada acrescentaram, segundo o francês, pois tanto uma como a outra baseia-se na ausência de símbolos. Com o surgimento da globalização estamos diante de uma nova ordem mundial, e a questão é: como poderemos futuramente definir a política. Por enquanto ela passa por um processo de reformulação que também repercute na arte, e talvez venha daí a ausência de símbolos denominada por Nancy, que pode ser convertida em busca de uma nova fonte comum de inspiração, uma nova mitologia, isto é, uma nova esquematização comum para as fórmulas de representação artística. 

 

Na literatura encontramos muitas obras sujeitas a pressupostos políticos. Algumas antigas epopéias do século XV ao XIX são um retrato estético das relações histórico-políticas de uma nação ou dos conflitos entre os povos. A viagem de Vasco da Gama à Índia retratando a época dos Descobrimentos e vangloriando o patriotismo português emblematizou-se em Os Lusíadas, de Camões. Na "poesia participante"4 de Castro Alves, a temática de seus versos está voltada também às causas sociais de seu tempo, sobretudo do Abolicionismo. A obra magma, Os Sertões, de Euclides da Cunha, contém em si toda a gama do aparato político humano: as relações do homem com a natureza, com a religião, com o seu próximo e com o poder.

 

O autor alemão, Peter Weiss (1916-1992), na trilogia A Estética da Rebelião (Die Ästhetik des Widerstands 1975-1981), leva-nos a refletir sobre toda obra artística ter uma relação direta ou ambígua com a política.Não se trata aqui apenas de uma obra contra o fascismo e sobre o movimento trabalhista no período das Guerras Mundiais, mas também de uma rebelião estética contra toda forma de opressão e injustiça social, buscando na arte a sua forma de representação mais sublime. Em sua obra encontramos uma  trajetória da arte onde a política se apresenta ora expressamente relacionada à arte ora implicitamente vinculada à representação das aflições e dos dilemas humanos.

 

Mesmo no classicismo alemão (1786-1805), tendência estética voltada à contemplação da alma, aos conflitos anímicos, à apreensão filosófica do mundo, o autor não renunciou a abordagem de fundo político, como no exemplo do poeta alemão Hölderlin, na obra Hiperión ou o Eremita da Grécia, em que retrata alguns acontecimentos histórico-políticos como a Revolução Francesa e a luta dos gregos pela liberdade na guerra grego-turca. Ou a aversão de Friedrich Schiller contra a arbitrariedade, corrupção, injustiça e as intrigas da dinastia absolutista no drama Guilherme Tell.

 

Partindo dessa reflexão poder-se-ia vincular toda obra artística à política, subentende-se os aspectos históricos e sociais de um povo ou de uma época. Alguns autores, contudo, são enfáticos em defender o princípio de que a arte não deva se embrenhar na política, pois esta aniquilaria o deslumbramento transcendente que leva ao universal. A realidade cotidiana dos fatos estaria muito inferior à observação complacente dos dilemas humanos. Todo artista deveria ser utópico, idealista. A política seria algo prático, voltado para os mortais, para o efêmero da época, indigna da aura estética imaculada da arte e sua epifania. A política pertenceria ao terrestre, enquanto a arte ao divino, ao transcendente, consequentemente, ao universal. Nesses termos há muitas obras, à princípio, puramente estéticas ou de fundo psicológico, intimista, como em Clarice Lispector (excluindo o romance de cunho social A Hora da Estrela), ou na lírica de  Augusto dos Anjos, para citar alguns nomes.

 

Inúmeros autores, entretanto, alcançaram uma forma estética de unir a política à arte, transcendendo o terrestre e atingindo o universal. É o caso, entre outros, de Eugen Bertold Brecht (1898-1956) e Afonso Henrique de Lima Barreto (1881-1922).

 

Brecht, considerado um dos dramaturgos mais geniais dos últimos tempos, aperfeiçoou a literatura de protesto no seu mais alto nível, sob a linguagem coloquial e expressionista. Em sua primeira fase, o jovem autor estava, entretanto, voltado ao indivíduo em si, desagregado da sociedade, isto é,  voltado à desindividualização, como revela o niilismo nos poemas da famosa coletânea Hauspostille (O livro de devoção caseira, 1927)5. Só mais tarde esse niilismo fundado em questões divinas será  assentado em causas sociais.

 

A incorporação do engajamento político em sua dialética, traço distintivo fundamental em sua obra, levou o autor à aversão contra a lírica de alguns poetas consagrados como Franz Wefel, Stefan George e Rainer Maria Rilke. Brecht julgava a poesia desses autores nem bela nem útil, chegou a comentar que "o relacionamento de Rilke com Deus era a de um homossexual"6. Esses poetas, absortos nas questões anímicas da existência humana, contrastavam com o universo brechtiano, onde o poema deveria ser escrito como uma descrição de "modo de uso", a poesia deveria ser prática, útil e para todos. Através da utilidade e praticidade, a literatura contribuiria para a transformação da sociedade.  

 

Além de sugerir uma nova ordem social, o dramaturgo criou uma nova concepção de teatro que revolucionou a arte cênica e, assim como proclamava a participação do indivíduo na sociedade, introduziu a participação do público no teatro. Considerava a arte um instrumento com o qual poder-se-ia modificar os acontecimentos ou pelo menos a forma de raciocínio de alguns indivíduos. O teatro passou a ter a função de levar o cidadão à reflexão através do divertimento. Porém, não um divertimento fugaz e sem substância, nada simplificado. Algo que fosse descontraído, mas profundamente atado aos valores humanos indestrutíveis, imortais.

 

Sendo um intelectual eloquente, que necessitava do constante diálogo com outros intelectuais, conheceu vários autores famosos quando foi obrigado a exilar-se devido às perseguições políticas. Entre outras ilustres personalidades, conheceu o conterrâneo Thomas Mann e o célebre Charles Chaplin,  nos Estados Unidos, e foi um grande admirador do legendário pantomimo Marceu Marceau. As mímicas de Marceau e a singeleza nos filmes de Chaplin influenciaram-no decididamente em seu trabalho de direção.7. Nas peças mais famosas como A Ópera dos Três Vinténs, que o deixou mundialmente conhecido, depois de sua estréia, em 1928; Mãe Coragem e seus Filhos (1939); e O Círculo de Giz Caucasiano (1953); a ironia e o sarcasmo são revestidos de leveza e alegria, sem prejudicar a profundidade do tema. Pois é na sátira que reside a dimensão e a qualidade das obras brechtianas.

 

A ironia seria a figura de linguagem mais apropriada para abordar a política, porque a própria política é muitas vezes irônica. Nos reduziremos a observar o uso da ironia em algumas personagens de Mãe Coragem e seus Filhos, e nos protagonistas de Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1909)e Triste Fim de Policarpo Quaresma (1915).

 

Mãe Coragem e seus Filhos, em suma, é a história da mãe seguindo com sua carreta pelos campos do país, vendendo mercadorias, que perde a moral e os filhos na Guerra dos Trinta Anos, vítima de um inabalável conformismo e da crença cega na "sabedoria" da elite. Nas peças brechtianas, a personagem principal não é a elite histórica, mas o indivíduo humilde, o homem do povo, que narra os acontecimentos através de sua perspectiva, criando o ponto de vista da plebe no registro da História. Desta forma a descrição da História é "corrigida", agora é a massa que contribui com as importantes informações históricas, em contraposição ao indivíduo dotado de poder e riqueza.8. Essa mesma visão excepcional dos acontecimentos seguiu João Ubaldo Ribeiro, no romance Viva o Povo Brasileiro, ressaltando as vozes dos oprimidos, dos negros, índios e seus descendentes, sobrepondo-as ao discurso das elites. Na peça de Brecht os líderes não são aqueles que conduzem o povo à bonança, são sim aqueles que simulam, ludibriam e exploram o povo, fazendo-o acreditar que a guerra é uma guerra divina e não puramente civil. A questão está na falsa ordem social criada pelos líderes políticos que leva o indivíduo ao caminho do ilícito e maligno. A  mãe lucra com a guerra, desta forma, colabora para a continuação da guerra, ao mesmo tempo teme a perda dos filhos na guerra. A mãe necessita da guerra, isto é, ganha e perde ao mesmo tempo que a deseja e teme. Com os filhos a ambivalência é a mesma: Eilif é audacioso, mas a sua audácia o leva a uma cilada, por conseguinte, ele toma uma atitude heróica no momento errado. Kattrin é misericordiosa, mas é exatamente essa amabilidade que atrapalha os planos dos conquistadores. Schweizerkas é eloquente e sua  espontaneidade e sinceridade o levam à morte.9. As personagens brechtianas são repletas de dualismo e contrariedade, o que pode levar a uma falsa interpretação de sua obra. Mãe Coragem e seus filhos teve seu significado, por muito tempo,  determinado pela figura da mãe — como o mamífero que age por instinto ―, a mãe diante de sua própria impotência causada pela guerra tentando salvar os filhos.  Ou então: o indivíduo sozinho não é culpado pela tragédia, ele é arrastado por ela, como uma enchente arranca e leva um tronco aleatório. A peça só passou a ser analisada de forma diferente nos anos setenta. A partir dessa época reconhece-se a culpa da Mãe Coragem pelo conformismo e pela crença cega nos detentores do poder. Sua coragem não é usada em defesa dos filhos, mas empregada em uma causa imoral: na ganância de lucros nos negócios que são prioritários em sua vida, em vez dos filhos.10.

 

A ambivalência e o dualismo são um contínuo em Brecht, um mestre da ironia. Em O Círculo de Giz Caucasiano, A Boa Alma de Setsuan, A Ópera dos Três Vinténs, entre outras peças teatrais, a discrepância nas características das personagens torna sua identidade de difícil apreensão, seus componentes funcionam entre si em numerosas relações de interdependência ou de subordinação. Tal complexidade confere às personagens forte tônica realística. A ironia provém das circunstâncias criadas pela História que desorientam o indivíduo, suas próprias ações criam as situações irônicas, as qualidades e defeitos das personagens, entretanto, permanecem inalteráveis; são as circunstâncias que obrigam o indivíduo a empregá-las na hora errada. É o homem do povo que, com todos os seus defeitos, ridiculariza os poderosos. No final, esses defeitos revelam-se pequenos e superficiais diante das supostas "qualidades" dos poderosos.

 

A inversão de valores difere em Lima Barreto. Em Recordações do Escrivão Isaías Caminha e Triste Fim de Policarpo Quaresma os protagonistas são caracterizados pela ingenuidade e transparência. A ironia manifesta-se nas ações dos poderosos, na onisciência dos líderes políticos e da força militar; as qualidades, sobretudo a candura, dos protagonistas Isaías Caminha e Major Policarpo Quaresma são transformadas em negativas. O combate ufanista limabarretista leva à ridicularização das figuras que, por conseguinte, conduz à ridicularização de todo o sistema político do país. Na obra-prima Triste Fim de Policarpo Quaresma a ilusão do protagonista de levar o povo brasileiro à conscientização de sua verdadeira identidade é dirimida pelo sarcasmo dos poderosos. Ao alistar-se como voluntário para defender os princípios do Marechal, na Revolução da Armada, durante o governo Floriano Peixoto, essa figura quixotesca de Quaresma, constante e inflexível em seus preceitos moralistas, munido de profunda sabedoria autodidata e um patriotismo puro, será derrotado em todos os sentidos, no moral e ético, no político e cultural. Somente na prisão, quando a revolução é extinguida e ele é detido, é que o Major desperta finalmente de seu devaneio ao ser condenado à morte e só agora toma consciência do significado dessa realidade: a inutilidade de seu patriotismo, pois a recompensa pelo seu amor à pátria será ser morto por ela.

 

Os dois protagonistas de Lima Barreto são marcados pela ingenuidade inexorável que só é repelida pela conscientização da realidade, porém essa conscientização não possui a força necessária para criar a desforra, a revolta contra as normas dissimuladas, mas invoca a melancolia, a resignação, ou a capitulação diante dos acontecimentos. Isaías Caminha, em Recordações do Escrivão Isaías Caminha, repleto de otimismo, aconselhado pelo tio e com uma carta de recomendação de um coronel local, segue para a grande cidade do Rio de Janeiro, ser doutor. A ilusão de encontrar a incólume moralidade social é gradativamente demolida ao deparar-se com os arquétipos negativos do sistema. No jornal O Globo, onde consegue emprego como contínuo, Caminha passará a conviver de perto com a hipocrisia, descobrindo nela o verdadeiro dispositivo acionador do mecanismo social. As caricaturas, satirizando a imprensa e questionando a ética e o poder que ela exerce na sociedade, são figuras ironicamente trágicas, como as personagens do gramático Lobo, homem das letras que zelava pela língua pura, sagrada, e tem o seu fim num hospício, enlouquecido, com medo de abrir a boca e falar errado, tampando os ouvidos receando ouvir uma língua cheia de impurezas; e do inepto Floc, para quem a arte e a literatura não passavam de frivolidades apresentadas em salões — uma demonstração de vaidade e fama. Floc, incapaz de apreender a essência da arte possui grande dificuldade para criar um texto e suicida-se.

 

Isaías Caminha revolta-se contra a hipocrisia, contra as mazelas pútridas dentro do mecanismo político e da imprensa, sua revolta, contudo, não possui a força de transformar a realidade e acaba por instalar-se na capitulação. Isaías Caminha conforma-se com a realidade e procura adaptar-se a ela, bajulando o diretor do jornal - um ditador e mau-caráter - para obter dinheiro, entrando em permanente conflito com sua natureza própria. Surge aqui o "não-eu", advindo "do perigo das falsas ideias e das contradições latentes nesse enganoso mundo das aparências"11. O romance é um testemunho da deturpação de um "espírito singular", de um indivíduo justo e moralista que, reconhecendo sua impotência diante das falhas da sociedade, entrega-se à ordem deletéria vigente, traindo seus próprios princípios e se deixando corromper pela sociedade. Desta forma ele é, ironicamente, o "homem feito", alcançando assim o reconhecimento e a valorização do seu meio. Os valores são dessa forma invertidos: o indivíduo possui consciência de seus verdadeiros valores, mas não conseguindo irromper socialmente nem se fazer respeitar por esses valores; os troca, adotando os princípios corrompidos impostos pela sociedade, são esses princípios que o transformarão em "cidadão digno de respeito" e lhe abrirão todas as portas.

 

Nas obras de Lima Barreto predominam os elementos biográficos, não há o estranhamento, o distanciamento, utilizados pelo dramaturgo e poeta alemão. Brecht foi buscar sopro criador na literatura chinesa para a concepção de A Boa Alma de Setsuan; a Ópera dos Trens Vinténs é situada em Londres e não na capital alemã; em Mãe Coragem e seus Filhos a guerra não é a Primeira nem a Segunda Guerras Mundiais coetâneas do século XX, época vivenciada pelo autor, mas a Guerra dos Trintas Anos, sucedida no século XVII. Esse estranhamento e distanciamento tornam pouco sólidos os elementos biográficos nas obras brechtianas. Em Lima Barreto há um alento de tragicidade aproximando-o à prostração diante da vida, uma das características do pessimismo alemão; curiosamente a alegria, a descontração e a ambivalência nas peças de Brecht corresponderiam perfeitamente à tradição cultural brasileira.

 

Em Mãe Coragem e seus Filhos, a mãe, entregue ao conformismo, continua acreditando na capacidade de governar dos poderosos, em sua sabedoria; Policarpo Quaresma deixa de acreditar na elite e se entrega ao conformismo, à melancolia; Isaías Caminha também descrê nos poderosos, na burguesia, revolta-se interiormente, mas diante de sua impotência, resigna-se e seus princípios morais são corrompidos pela hipocrisia, ele se entrega à imoralidade, falta de ética e hipocrisia para se tornar "um grande homem".

 

Igualmente no âmbito da linguajem Lima Barreto foi um revolucionário. Naquela época, a literatura elitista cultivava o linguajar rebuscado e erudito, para esse autor não era apenas o valor estético da obra que deveria ser aferido, mas a utilidade da literatura, essa deveria ser um meio de comunicação útil e para todos, por essa razão dispensou o "escrever bonito", "gramaticalmente correto" e adotou a linguajem coloquial, denominada de "relaxada" pelos críticos da época, tornando-se o precursor do modernismo brasileiro. Foi esse o primeiro escritor brasileiro a dar voz aos excluídos, a investigar uma identidade nacional desprovida das mistificações elitistas, a inserir causas sociais polêmicas na abordagem estética da realidade, considerando a literatura um ato militante, em que o enfoque deveria ser direcionado ao homem em função da sociedade e não ao homem limitado dentro de si mesmo. Nesse sentido Lima Barreto integra a vertente da literatura universal, como os inúmeros outros autores que, dotados de consciência crítica da realidade, procuraram definir o homem diante da complexidade de seu meio, da trama política tecida pelos seus semelhantes, impulsados pelos próprios ditames morais intrínsecos a denunciar as desigualdades e injustiças sociais, e incansáveis na defesa de preceitos moralistas universais. A partir daí a brasilidade limabarretista ultrapassa as fronteiras nacionais para atingir o lugar comum a todas as coisas essenciais à Humanidade.

 

Esses gênios da literatura, mordazes em suas críticas, buscaram a doutrinação em suas obras, quero dizer, desestabilizar as estruturas político-sociais injustas e discriminatórias, empregando a estética no perene combate à hipocrisia institucional. Para o autor brasileiro, entretanto, essa foi uma causa conhecida na pele. Sendo mulato, filho de escravos, foi vítima de preconceitos e humilhações; nunca recebeu o reconhecimento pela sua obra quando vivo. Diferente da biografia de Bertold Brecht que nasceu no seio de uma família burguesa, foi reconhecido, admirado e incentivado pelo seu trabalho, apesar das críticas e das perseguições políticas. Quando Brecht usa as preocupações do homem do povo em sua obra, ele está se referindo a uma realidade analisada, mas não vivida por ele. Brecht nunca trabalhou como proletário, não foi “um homem do povo”, esteve integralmente ocupado com a literatura e o teatro, porém foi um marxista inveterado, solidarizava-se intimamente com a classe e depositou toda a sua esperança e ideal de vida na classe trabalhadora. Em Lima Barreto "a ironia vem da dor"12, deparamo-nos assim com o aniquilamento dos ideais, com a resignação do cidadão brasileiro diante da realidade de seu país, com o permanente conflito em adaptar-se à realidade imutável e à corrupção da moral; já em Brecht, encontramos a possibilidade de transformar o destino do indivíduo, levando-o à conscientização política, através da pilhéria, do deboche hilariante; a ironia brechtiana vem do sátiro. Para os dois imortais, entretanto, a vida só possuía sentido engajando-se por ela, pela transformação do homem através da arte.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

1  Otfried Höffe, Aristoteles: Politik. Berlim, Akademie Verlag, 2001.  

 

2 Jean-Luc Nancy, filósofo francês, professor de filosofia na universidade de Straßburgo. Em suas inúmeras obras, o filósofo indaga o significado das questões políticas e estéticas, na época da globalização. Entrevista concedida a Andreas Wagner, Andreas Niederberger e Dietmar Köveker. Informationen Philosophie im Internet. Dr. Michael Funken. Versão eletrônica.

 

3  idem

 

4  Antonio Cândido, Formação da Literatura Brasileira. Vol. I, Belo Horizonte, Editora Itatiaia Ltda, 1975. "Esse decênio de 60 - cuja importância em nossa vida política foi acentuada por Silvio Romero, Nabuco e, depois, mais de uma vez, Euclides da Cunha - estimula os sentimentos cívicos (...). Marcam-no a virada nas eleições de 1860, a cisão radical dos liberais em 1868, a fundação do Partido Republicano em 1870. De ponta a ponta, percorreu-o uma onda de poesia participante, que vai eclodir no assomo admirável de Castro Alves. São os poemas sonoros de Pedro Luís e José Bonifácio, o moço, são os poemas "mexicanos" e abolicionistas de Varela; é todo o ciclo "paraguaio" com Tobias Barreto, Bernardo Guimarães, e até um mastodonte em cinco contos e oitava rima, "Riachuelo", de Luís José Pereira da Silva". P. 249.

 

5  Jan Knopf, Brecht, Lyrik. Handbuch. Weimer, J.B. Metzler,1980. "In diesen Zusammenhang gehört auch die "Untergangs"-Thematik, die in vielen Gedichten anzutreffen ist, meist wohl aber nicht primär auf Gesellschaftliches, sondern auf das Individuum bezogen ist. Die "Entindividualisierung", wie sie erstmals von Carl Pietzcker genau beschrieben worden ist, ist ein durchgehendes Thema in der frühen Lyrik. In den ersten Gedichten findet sie zweifellos noch häufig leidvollen Ausdruck, in der "Hauspostille" jedoch ist sie ebenso bereits verarbeitet wie die Nihilismus-Erfahrung". P. 37.

 

6 Klaus Völker. Bertold Brecht, eine Biographie. Munique, Hanser Verlag, 1976.

 

7  Marianne Kesting, Brecht. Hamburg, Rowohlt Taschenbuch Verlag, 1999.

 

8  Jan Knopf, Brecht, Theater. Handbuch. Weimer, J.B. Metzler, 1980. "Die klasische Historie der Tradition, die unter Herrführern, Fürsten, Königen (und ihren Damen) spielt, wendet Brecht zur Darstellung der Schicksale von "kleinen Leuten" um: die Geschichte und ihre Ziel wird nicht mehr nach den welthistorischen Individuen gemessen, es sind die Massen, die die historischen Daten setzen". Pág.185

 

9  idem.

 

10 idem. "Neuere Interpretationen sagen: Grundsätzlich gesehen besteht Mutter Courages Schuld im Mangel an Urteilskraft, und ihr Geschäftssinn behält stets die Oberhand in den kritischen Augenblicken ihres Lebens". Pág. 190

 

11 Antonio Arnoni Prado, Lima Barreto, O Crítico e a Crise. São Paulo. Martins Fontes 1989.

 

12  Carmem Lúcia Negreiros de Figueiredo, Trincheiras de Sonho, Ficção e Cultura em Lima Barreto. Rio de Janeiro. 1998. "A ironia vem da dor" afirma-nos Lima Barreto tanto em seus textos de crítica, como em fragmentos de anotações para diários e páginas de seus romances, explicando a constituição do riso como a  única unanimidade de expressão em nossa realidade social e, marcado pela melancolia, traduz a impotência de reagir à dominação". P. 176.

 

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