ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

A POÉTICA SINCRÔNICA DE SOUSÂNDRADE

 

Claudio Daniel

 

Joaquim de Souza Andrade  - o Sousândrade  (1833-1902) - pertence à 2ª geração romântica,  a  de  Gonçalves Dias;  sua harpa selvagem, no entanto, insurgiu-se contra a "lágrima escrita" de diário sentimental e a retórica de oradores de província, prenunciando o Modernismo de 1922. O poeta maranhense fraturou a linguagem discursiva linear com versos elípticos, sintéticos, plenos de invenção léxica e sintática. Ele colocou  em primeiro plano a função poética da linguagem (Jakobson), deslocando a função emotiva como vórtex da criação estética. A ousadia valeu ao poeta da Ilha de São Luís a acusação de obscuro, e mesmo de insano. O caso recorda o de Hoelderlin, em especial na sua última fase, a dos "poemas da loucura". Essa incompreensão se deve (em parte) ao fato de que os críticos não dispunham, na época, da informação necessária para avaliar os procedimentos usados pelo poeta - ou seja, sua prática textual era mais avançada do que a teoria literária vigente. 

A falta de sintonia entre uma arte que prenunciava o século XX e uma abordagem crítica que já apresentava os primeiros sinais de mofo levou a equívocos como o de Sílvio Romero, por exemplo. O polêmico crítico condenou ao limbo o corpus poemático sousandradino (e também as Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, e as inventivas traduções de Homero por Odorico Mendes), revelando uma incapacidade para "ver com olhos livres" só comparável à de Saint-Beuve, que colocou de quarentena as Flores do Mal, de Baudelaire e Madame Bovary, de Flaubert, por considerá-las "imorais"...

O exílio artístico a que foi condenado o poeta maranhense perdurou até a segunda metade do século XX, quando teve início sua reabilitação, graças aos esforços de Augusto e Haroldo de Campos, que publicaram uma antologia de seus textos, acompanhada de agudos ensaios críticos: a Re-Visão de Sousândrade.  É preciso citar, também, Edgard Cavalheiro, autor de "O antropófago do romantismo" (em que fez uma aproximação entre Sousândrade e Oswald de Andrade) e Luís Costa Lima, o arqueólogo dos textos sousandradinos, que descobriu para nós a Harpa de Ouro.


Hoje em dia, poucos sabem quem foi Sílvio Romero - não é marca de automóvel -, mas o lugar do poeta em nossa história literária começa a ser devidamente considerado. Para Fausto Cunha, por exemplo, ele é o único romântico brasileiro de importância internacional. Ele não foi poeta menor (como pensava Antonio Candido), nem autor de uma obra excêntrica ou falhada, mas um inventor comparável a Hopkins, Novalis e Arno Holz. Não pretendemos, no presente ensaio, enfocar a imensa obra sousandradina. Apesar de suas primeiras produções, como Harpas Selvagens, Eólias e Novo Éden prefigurarem a ousada arquitetura desenvolvida em sua maturidade artística, o que nos interessa, sobretudo, é o poema longo O Guesa Errante, ponto máximo de sua sensata sandice.

     Sincronia: destempo

O Guesa Errante é um poema longo em treze cantos, redigido ao longo de trinta anos - entre 1854 e 1884. Seu tema básico é a jornada do Guesa, jovem que deve ser sacrificado a Bochica, o deus do sol, conforme a antiga tradição dos índios muíscas da Colômbia. O espaço cênico dessa peregrinação é dinâmico: vai dos Andes à Floresta Amazônica, da Venezuela à Europa, da África ao Maranhão, culminando na chegada à Wall Street nova-iorquina, meca da especulação financeira e do nascente Império Americano. Ao longo de sua perambulação rumo à metrópole yankee, o Guesa revela a nós, em flashes metonímicos, os esplendores e misérias do Novo Continente.

A dimensão temporal no poema é sincrônica, mesclando o passado mítico, a era colonial e o século das maquinarias numa espécie de NÃO-TEMPO. Essa síntese de eventos simultâneos e analógicos é uma ruptura com a idéia linear de tempo histórico na seqüência narrativa, e sinaliza a dimensão do tempo poético, ou destempo, que não reconhece limitações espaço-temporais. Os personagens e referências simbólicas desse épico incomum são mitológicos (Tellus, Coelus), lendários (Manco Capac, Mama Occlo), históricos (Pizarro, Rotschild) e literários (Enéas, Odisseus), apontando talvez para o fato de que toda "realidade" é uma convenção, ou construção mental, e que o texto é um mundo em si, com sua própria ontologia. Desse modo, cada texto exige uma estratégia de leitura particular, de acordo com as coordenadas de sua lógica estrutural e lingüística.

O Canto X do Guesa, batizado de "O Inferno de Wall Street", é o paradigma par excellence dessa desconstrução do tempo. Nessa farsa carnavalesca, ou mascarada, que recorda a "Noite de Walpurgis" do Fausto de Goethe (como notou Haroldo de Campos), desfilam de modo alegórico, entre os pregões da Bolsa de Valores, D. Pedro II, Jesus, Dante, Orfeu, além de sacerdotes incas, corretores de estradas de ferro, políticos corruptos, entre outros, num verdadeiro pandemônio. Um bom exemplo dessa estética circense é o fragmento seguinte:

 

106. (Procissão internacional, povo de Israel, Orangianos, Fenianos, Budas,

Mormons, Comunistas, Niilistas, Farricocos, Railroad-Strikers,

All-brokers, All-jobbers, All-saints, All-devils, lanternas,

música, sensação; Reporters, passa em LONDRES o

assassino da RAINHA e em PARIS 'Lot'

o fugitivo de SODOMA:)

 

No Espírito-Santo d'escravos

Há somente um Imperador

No dos livres, verso

Reverso

É tudo coroado Senhor!

 


O Guesa Errante
é um poema dialogado, polifônico, em que as várias vozes funcionam como máscaras dramáticas, ou personae; recorda, também, o teatro poético sonhado por Mallarmé, voltado à "imaginação do leitor, que monta ele mesmo as coisas" (Igitur). Nesse "monólogo a muitas vozes" (Allen Tate, sobre os Cantos de Pound), o autor mescla a linguagem coloquial-irônica e referências a fatos cotidianos extraídos dos jornais a uma série de citações enciclopédicas, próprias de um erudito; e, numa pajelança idiomática, mistura termos de várias línguas - o tupi, o quíchua, o grego, o latim, o italiano e outras filhas de Babel - numa macarronada que é talvez uma metáfora da incomunicável solidão do homem moderno.

Sousândrade viveu numa era mutante, que presenciou a invenção do telefone, por Graham Bell; da lâmpada elétrica, por Edison; e do automóvel, por Ford. Logo seria a vez do avião, graças ao brasileiro Santos Dumont. A poesia desse bardo futurista avant la lettre é o retrato irreverente do século da máquina, da técnica, da velocidade, de um mundo feito à imagem e semelhança do modo de produção industrial, que tem na Bolsa de Valores sua bússola e seu órgão pulmonar:

 

1. (O GUESA, tendo atravessado as Antilhas, crê-se livre dos
XEQUES e penetra em NEW-YORK-STOCK-EXCHANGE; a Voz

dos desertos: )

 

- Orfeu, Dante, Enéas, ao inferno

Desceram; o Inca há de subir...

= Ogni sp'ranza lasciate,

Che entrate...

Swendenborg, há mundo porvir?

 

2. (Xeques surgindo risonhos e disfarçados em Railroad-managers,

Stockjobbers, Pimpbrokers etc. etc., apregoando: )

- Harlem! Erie! Central! Pennsylvania!

= Milhão! Cem milhões!! Mil milhões!!!

- Young é Grant! Jackson,

Atkinson!

Vanderbilts, Jay Gould, anões!

 

 

Uma poética do imprevisto

Esse poema estranho (que permaneceu inacabado) é uma Odisséia da função poética; o poeta usa recursos formais próprios da escritura barroca, como o cultismo léxico e sintático, hipérbatos e metáforas requintadas, e antecipa procedimentos da poesia de vanguarda deste século. Sousândrade cria imagens (ou idéias-coisas) compostas por aglutinação de termos, aplicando o princípio do contraponto à microestética do poema (fênix-corvo, seios-céu, azuis-luzentes velas). As montagens verbais do poeta maranhense recordam o princípio do ideograma (justaposição de signos) estudado por Fenollosa, e também as experiências de colagem na pintura cubista e as "palavras-valise" de Lewis Carrol e James Joyce. (Disse o poeta: "Ouvi dizer já por duas vezes que o Guesa Errante será lido 50 anos depois; entristeci - decepção de quem escreve 50 anos antes". Na verdade, o poema principiou a ser lido e estudado 100 anos depois...)

Ao longo do Guesa, encontramos metáforas sintéticas como espuma-vida, lágrimas-pantera, dor-humanidade; conjugações verbais neológicas, como florchameja, terra-inundam, fossilpetrifique; substantivos transformados em verbos, como, por exemplo, ondam montanhas; e anagramas como Mima-Esojairam ("Maria José a mim"), antecipando experiências feitas posteriormente pelo poeta em sua obra póstuma Harpa de Ouro. Nada mais distante da vertente ingênuo-sentimental do nosso romantismo, influenciado por Musset e Lamartine, e cultuado por mocinhas entediadas e bacharéis tuberculosos...

Dentre as figuras de linguagem usadas no conjunto de sua obra, encontramos, entre outras, a onomatopéia, a sibilação, a sinalefa, a parequese, a apócope etc. Com esse arsenal lingüístico, só comparável ao de um Góngora (ou de um Mallarmé), Sousândrade cunhou versos de insólita beleza: "Spectros espectadores que surgiam/ Vindo ao espectac'lo horríveis de palor"; "O sol ao pôr-do-sol (triste soslaio)"; "Ond'tókay, champanh', flor, copos cristal-diamantes"; "Torna-te ao leito Ut-allah: Heleura! Heleura!". É no Guesa, porém, que o poeta foi mais radical, chegando até à atomização da palavra: "Hu! berra/ Sapo-boi na cor... rrr... ente!". Vale a pena destacar, ainda, o imagismo por vezes próximo à estética do haikai: "Vede a tremente/ Ondulação das malhas luminosas/ Num relâmpago, o tigre atrás da corça".

Quanto à configuração sonora, o Guesa é formado por versos decassílabos, divididos em quartetos que seguem duas seqüências de rimas: ABAB e ABBA. É impossível não notar, nessa épica da palavra, os acordes helenizantes que revelam a presença de Homero: "Eia, imaginação divina! Os Andes/ Vulcânicos elevam cumes calvos,/ Circundados de gelos, mudos, alvos,/ Nuvens flutuando...".. À diferença do rapsodo grego, porém, Sousãndrade situa seu herói não numa esfera onírica sujeita às veleidades dos deuses, mas numa nova Babilônia em que o capital operou a desencantação do mundo, elevando o mercado à condição de deidade única e inquestionável.

No Canto X do Guesa (e também no Canto II, batizado de "Tatuturema") o poeta inseriu seqüências de curtas peças satíricas, similares a epigramas e limericks. São estrofes em geral de cinco versos, com metros desiguais e  as rimas distribuídas na ordem A-B-C-C-B. Esse tipo de composição foi bastante comum entre os poetas elisabeteanos do século XVI, como Shakespeare e Ben Johnson, e encontra-se também no livro de poemas infantis Mother Goose ("Mamãe Ganso").  O poeta incorporou a essas estrofes escarninhas  os recursos tipográficos da imprensa - itálicos, versaletes, caixa alta, duplos travessões etc. - em versos elípticos e sintéticos como chamadas de capa de um jornal diário:

 

 

"(Em SING-SING)

- Risadas de raposas bêbadas;

Cantos de loucos na prisão;

Desoras da noite

O açoite;

Dia alto, safado o carão..."

 

É justamente aqui que se revela a  notável semelhança entre o Guesa e os Cantos de Pound, não apenas pela visada crítica, mas também pela adoção de uma estética ideogrâmica e fragmentária. A estrutura musical desta seção do poema, por sua vez, fundada na técnica de aglutinação e montagem de diferentes elementos, de modo contrapontístico, inspirou a ópera O Inferno de Wall Street, do compositor paulista Lívio Tragtemberg. E começou a circular nas vias respiratórias da cultura popular a partir dos anos 70, desde que Caetano Veloso musicou versos do poeta maranhense na canção Gilberto Misterioso ("gil engendra em gil-rouxinol"), incluída no disco Araçá Azul. Nos anos 80, o compositor baiano voltou a homenagear o poeta de São Luís, na canção Ele me deu um beijo na boca ("... toca de raposa bêbada"), em Cores e Nomes.

Apesar da extrema musicalidade dos versos do Guesa, que propicia o diálogo criativo com a canção popular, Sousândrade foi até as fronteiras da sonoridade e do sentido,  aproximando-se do bruitismo, ou "orgias de barulho", do futurista italiano Luigi Russolo. O final do "Inferno" recorda a fala onceira de Guimarães Rosa em Meu Tio, o Iauaretê, e a dissolução da linguagem anunciada no Canto VIII do Altazor, de Huidobro:

 

176. (Magnético handle-organ; ring d'ursos sentenciando à pena-última

o arquiteto da FARSÁLIA; odisseu fantasma nas chamas
dos incêndios d'Álbion: )

- Bear... Bear é ber'beri, Bear... Bear...
= Mammumma, mammumma, Mammão!
- Bear... Bear... ber'... Pegàsus...
Parnasus...
= Mammumma, mammumma, Mamão.

 

 

Da sátira à utopia


Sousândrade aponta um mundo em mutação regido pelo Sagrado Coração de Nosso Senhor, o Dinheiro. Assim como Pound, que criou o monstro Usuria (uma besta de cem pernas), inspirado no Gerion do Inferno dantesco, o autor do Guesa criou uma fera luciferina, o Stock Minotauro, de insaciável fome de lucros. A virulência do poeta contra o domínio do capital recorda as teses anarquistas e socialistas. Proudhon, em sua obra Manual do Especulador da Bolsa, define a era da especulação financeira do seguinte modo: "uma época que tomou por Decálogo a Bolsa, por moral a Bolsa, por pátria e por igreja a Bolsa".

E Ezra Pound, comentando o Inferno da Comédia de Dante, nos diz: "Vejo... claramente a gradação de valores de Dante, e especialmente como todo o Inferno tresanda a dinheiro. Os usurários estão lá, contra a natureza, contra o desenvolvimento natural da agricultura ou de toda obra produtiva. O Inferno profundo é alcançado por Gerion (Fraude)... e por dez cantos a seguir os penitentes são todos condenados por causa do dinheiro". O autor do Guesa descreve deste modo o ambiente doméstico americano, sob o domínio desse Mefisto sedutor e corruptor:

 

A Bíblia da família à noite é lida
Aos sons do piano os hinos entoados,
E a paz e o chefe da nação querida
São na prosperidade abençoados.
- Mas no outro dia cedo a praça, o stock,
Sempre acesas crateras do negócio.
O assassínio, o audaz roubo, o divórcio,
Ao smart Yankee astuto, abre New York.
   

A contraparte da crítica sousandradina é a proposição de uma nova sociedade. Esse  imbricamento entre a sátira e a utopia é definida desse modo pelos irmãos Campos, em agudo ensaio: "Ao invés do isolamento e da marginalidade, 'ele na tempestade s'envolvia / social...', fazendo assim 'o corpo de delito / do seu tempo'.  De um lado, (o poeta) condenava as formas de opressão e de corrupção, profligando o colonialismo e satirizando as classes dominantes (a nobreza e o clero); de outro, preconizava o modelo republicano, grego-incaico, colhido na República social utópica de Platão e no sistema comunitário dos incas, ou ainda numa livre interpretação das raízes do cristianismo". Esse ideário social desembocava num projeto pan-americano anticolonialista, distinto do nacionalismo de opereta vigente na época, típico de poetas-senadores ou poetas-magistrados, cooptados pelo sistema.

 

As pedras da vitória

Sousândrade, que lecionava grego no Liceu do Maranhão,  chegou ao final  da vida sozinho e sem dinheiro. Para sobreviver, foi obrigado a vender as pedras dos muros de sua propriedade, a Quinta da Vitória. Sem perder o senso de humor, disse a respeito: "Estou comendo as pedras da vitória". Motivo de chacotas na cidade, era o alvo predileto das pedradas dos  moleques, o que só terminou, em 1899, com as medidas decretadas pelo governador para a segurança do poeta.

Em 1902, gravemente enfermo e sem recursos, foi levado por alguns de seus alunos ao Hospital Português, onde falece em 21 de abril. Os originais de suas últimas produções foram usadas como papel de embrulho.  Sousândrade ousou desafinar o "coro dos contentes", e pagou por isso o preço da exclusão; foi colocado à margem, como Oswald de Andrade, Sebastião Nunes, Glauco Mattoso. São os poetas "malditos", porém, que alimentam as células sangüíneas de nossa poesia, que sobrevive com o plasma da insubordinação.

Hoje, quando as editoras voltam a publicar grossos volumes de autores que nada acrescentaram à tradição, como Olavo Bilac (poeta muito inferior a Théophile Gautier), é um absurdo que não exista uma edição crítica das obras completas de Sousândrade, o "terremoto clandestino" que abalou por dentro a poesia brasileira. Está na hora de se por fim a esse "blecaute da história" em torno do Santos Dumont de nossa poesia de invenção.

 

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Claudio Daniel, poeta, tradutor e ensaísta, publicou, entre outros títulos, A Sombra do Leopardo (poesia, 2001), Romanceiro de Dona Virgo (contos, 2004) e Jardim de Camaleões: A Poesia Neobarroca na América Latina (2004).

 

 

Leia também os ensaios de Claudio Daniel sobre Leminski, Wilson Bueno, Sebastião Uchoa Leite, Jorge Lúcio de Campos, e ainda poemas do autor.

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