ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

COMO REVERTER A LEI DA GRAVIDADE: UMA LEITURA DE ADIVINHAÇÃO
DA LEVEZA, DE DUDA MACHADO

 

Simone Homem de Mello

 

Em um dos poemas do mais recente livro de Duda Machado, Adivinhação da leveza (Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011), o poeta esboça um possível acordo com o leitor: Poesia só em último caso, / parecem dizer os leitores. // Coincidência, se é o que também / algum poeta procura, ao fazer. // Nos dois casos aquele último / raro se dá por achado. ("Acordo", p. 35)

 

Entre outras muitas, a raridade de Duda Machado também é esta: poesia só em último caso, poesia só o que não se engendra em outro código. Quatorze anos após o livro Margem de uma onda (São Paulo: Editora 34, 1997), que sucedeu em sete anos Crescente (São Paulo: Duas Cidades, 1990), uma coletânea de sua poesia completa até então, o poeta baiano hoje residente em Minas publicou quase despercebidamente um novo livro, com 69 poemas de densidade ímpar. Ao contrário dos lacônicos esporádicos, Duda é um lacônico intenso, de modo que os quatorze anos aparentemente transcorridos em silêncio estão presentificados, tangíveis, condensados em menos de 80 páginas.

 

O primeiro poema, "História invisível" (dotado de um ritmo singular, potencializado pela intensidade de decassílabos deslocados), delineia um movimento que parece nortear a escrita do poeta ao longo deste livro, terminando – de certa forma – por se configurar como um procedimento construtivo central.

 

Era o vento entrando

pela casa, abrindo seus recessos,

em varandas, instando pelo

espaço sem limites, até

se defrontar com o espelho

e logo se deter, cristalizado. (p.9)

 

Assim como o vento, protagonista de um enredo esquivo ao olhar, a escrita abre trilhas em meio à gravidade indecifrável das coisas. Mesmo intransponíveis as coisas, a escrita incisa itinerários por entre, através, de permeio. (Seja aonde for – aquele / para quem tudo que importa / é haver qualquer caminho. De: "Cartografia", p. 76).

 

O movimento do flanêur, mais olhar do que corpo, a se mover por entre as coisas, sem tocá-las, a nomeá-las numa sequência de aparição que mais diz respeito ao percurso do passante do que às próprias coisas, é reconhecível – guardadas as devidas especificidades – em inúmeros poemas de Margem de uma onda, como "Urubu-abaixo", "O reino", "Em sua cidade", "Devoração da paisagem", "Carapicuíba", "Fim-de-semana", "Traço e movimento", "Roteiro de uma noite", "À noite na estrada". À segunda vista, porém, mesmo esses poemas de olhar flanador, ao longo de um livro tão enumerador do mundo como o é Margem de Uma Onda, revelam que a paisagem perpassada não deixa de ser um espaço interior dotado de coordenadas mnemônicas, no qual a escrita busca reconstituir algo que escapa à aderência temporal. Recapitule-se aqui o poema "No trem": À janela do trem, / entrego-me à possibilidade / de um estado que consistisse / apenas na ideia de recordar. // Uma margem de tempo / sempre ao alcance / mas sem qualquer dado preciso, // uma dobra da memória / feita só da presença / de ser possível. (Margem de uma onda, p. 81).

 

Enquanto os poemas de Margem de uma onda ainda indicam um ímpeto inquiridor no sentido de acumular indícios e reconstituir trajetos, Adivinhação da Leveza rompe qualquer expectativa de resgate do ponto de partida ou da origem, e o discurso ágil-eólico – em meio ao peso das palavras-pedras – se defronta com o espelho e, cristalino, passa a delinear seus próprios meandros.

 

"Entre paisagens: variação"

 

é outra montanha,

outra estrada, outras pedras,

ficou longe a planície,

e de fora, outro escuro

vai se anexando às grotas;

 

destas visões o fascínio

virá em parte de sabê-las

sempre ali, fixadas,

disponíveis, se em nós houver

precisão ou vontade de regresso.

 

Também a mente tem seus lugares

fixos, mas só se mostra por inteiro

naquilo que torna sem retorno,

presença ou sequer indício,

como agora na estrada, já

sem se distinguir mais as montanhas,

a lua predomina. (p.11)

 

Vã a reconstituição topográfica dos espaços "fixos" da "mente", das coordenadas mnemônicas que – segundo já se acreditou algum dia – possibilitariam localizar as lembranças: já não se distingue mais nenhum relevo a ser percorrido de volta, em caso de "vontade de regresso", ponto de referência nenhum a se distinguir. O que "predomina" é apenas "a lua". E por meio dessa lucidez, que transpassa o quase delírio desconexo por entre a rotina (De: "O bastante", p. 43), é que se fazem os poemas de Adivinhação da Leveza.

 

Não raro, esse discurso-itinerário rastreia-se a si próprio e passa a enveredar por paradoxos temporais, fazendo a descontinuidade do tempo coincidir com sua própria. Agora o que foi / te atrai para ser de novo / onde podes estar. Não / pelo que foi / o que foi, mas / por o que foi não / ser mais. ("Agora", p. 16). O paradoxo entre a premissa de uma linearidade discursivo-temporal (afinal, esta poesia raramente lesa a ordem sintática) e um discurso poético que delata incansavelmente a descontinuidade do tempo e na constituição do sentido também se revela neste poema em torno da imagem da correnteza: Acontece: possuídos pela imagem / do que perdemos, somos conduzidos / ao que teria então sido possível. / Aí chegados, esta expansão no tempo / de um tempo irrealizado acaba / por nos devolver ao presente / e à indistinção, no que é possível, / daquilo que será perdido. ("Imagem da correnteza", p. 23)

 

A criação de engrenagens conceituais de alto grau de elaboração e engenho sempre foi uma das marcas da poesia de Duda Machado. Em seu primeiro livro, Zil (1977), inspirado em diferentes vertentes da poesia de vanguarda, isso já se anuncia em cristais sonoro-semânticos cuidadosamente lapidados (o que há / o ar de medo / o arremedo / o arremedo por vezo / o avesso do peso: versos de "Instante", em Crescente, p. 68), entre os quais o poema "Claro-escuro" parece já ter nascido antológico, como um dos mais irredutíveis e irretocáveis em língua portuguesa: estava tão lúcido / que era um suicídio. A exploração da tautologia inebriante em poemas como "O filho pródigo" e "Viver" já anuncia, nessa primeira obra, procedimentos a serem explorados posteriormente de forma mais complexa. Um Outro, livro que reúne poemas de 1977 a 1990 e foi publicado ao lado de Zil no volume Crescente, inclui diversos poemas-pointe, por assim dizer, breves pílulas de espirituosidade jocosa, além de traçar "percursos" análogos aos que viriam a ser ainda mais sutilmente cifrados em Adivinhação da leveza: Em cada ser, repara / a dança / que, na sombra, prepara a / mudança. // Em tudo quanto muda, / alcança / aquilo que não muda na / mudança. ("Percurso", Crescente, p. 38) Em todos esses procedimentos poéticos já se antevê o que o poeta viria a destilar com crescente concisão no decorrer de sua obra posterior.

 

Algo, porém, aproxima os engenhos poéticos de Adivinhação da leveza mais nitidamente dos concetti barrocos, e sobretudo dos paralogismos e dos topoi fallaci. Diante da impossibilidade de revisitar pontos fixos numa topografia que se prova – a cada regresso – movediça, o topos – ele próprio – assimila uma dimensão ilusória e dinamiza no movimento do discurso um impasse conceitual aparentemente insolúvel.

 

"Tentativa"

 

Onde o que se tornou tarde se

contempla no que uma vez

deixou de ser

e agora se deixa

enredar, como se pertencesse

ao fluxo do que se aniquilava

no instante mesmo daquele antes;

 

estar de novo aonde

cedo e tarde

possam ser apenas

distinções do agora. (p. 45)

 

O impasse que o poema gera está longe da acepção etimológica do termo (acesso vedado, interdição, beco). Muito pelo contrário, se existir alguma incompatibilidade ou incongruência entre os conceitos entremeados no poema, a progressão discursiva os dinamiza de tal forma que a contradição não chega a se estabelecer como tal. A lucidez dessa escrita meândrica é que ela não promete a decifração, mas somente delineia o percurso do indecifrado.

 

Esse procedimento remete à associação entre os topoi fallaci e as imagens anamorfóticas, apontada por Gustav René Hocke em Manierismus in der Literatur (1959), com o argumento de que ambos transferem as imagens para uma outra dimensão, gerando não só uma ilusão de ótica, mas uma ilusão total. Há um ponto de vista do qual a figura pode ser contemplada em sua integridade e plenitude; fora desse ponto, apenas se revela esboço entre discontinuidades, discrepâncias e distorções.

 

Interessante nesse contexto não deixa de ser a associação (também apontada por Hocke) entre os radicais concetti seiscentistas e a melancolia, sem a qual o livro aqui abordado dificilmente poderia conter qualquer intuição divinatória da leveza. Nesse contexto é curioso comparar dois poemas que remetem a Hamlet (obra shakesperiana que disseca a melancolia na caracterização prototípica de seu protagonista), mais especificamente à cena inicial da peça, em que Horatio, numa vã tentativa de travar diálogo com o espectro ("Illusion") do rei morto, tenta detê-lo e impedi-lo de partir. Em "Hamlet, ato I, cena I", de Margem de uma onda, o dilema é delineado em contornos irônicos: Como Horatio / queremos que a ilusão permaneça / ainda que termine por nos esmagar. Revisitada em Adivinhação da leveza, a mesma cena inspira outros cenários, enumerando-os sem qualquer anestesia irônica: O sol que faz da realidade sua sombra / A furta-cor constante / A de todas as caras, mas sempre / igual à nossa cara / A que nos respira / A enfermeira de plantão a nos dopar / até o fim / A que me espera depois desses epítetos ("Stay, Illusion, stay", p. 32).

 

Em Adivinhação da leveza, a ilusão é de ordem meramente discursiva, produto do engenho poético, e jamais compromete a lucidez com que são delineados seus múltiplos percursos, muitos dos quais para além de limiares órficos. [...] Como se, na hora, / a morte, vindo, não fosse / interromper mais nada ("Memória – um dia –", p. 44): a transgressão de limites é presente em todo o livro, em alguns poemas mais nitidamente, como – por exemplo – na indagação de "O que vem depois" (p. 24), nas quatro "Visões do recluso", na imaginação alucinatória de quantas páginas e livros se deveriam percorrer para medir a distância dos termos da expressão "Morto-vivo" (p. 29) ou na constatação da armadilha de estar dentro / que só se desarma quando / se entende que o dentro / sempre sobra, nunca / está em casa. ("Dentro de casa", p. 31). Mas o movimento divinatório do livro, permanentemente inquiridor, sempre volta a mirar algo que possa vir a reverter a gravidade: um vivo longínquo a se agitar / em discordância com o corpo / no presente (De: "Como se tivesse sido assim", p. 42). De vez em quando, tocas / alguma coisa que te ultrapassa / e leva ao poema. ("Enfim", p. 37)

 

Uma das muitas coisas que permanecem indesvendáveis na leitura de Duda Machado, sobretudo neste mais recente livro, é a combinação absolutamente harmônica de engenho conceptista e radical despojamento moderno. Talvez o poema que mais sintetize esse enigma seja "No embarque":

 

Se tens o mapa

e os convites te fascinam,

vei e vê como é

no Ermo das Palavras.

 

Mas não queiras

– depois –

dizer como foi.

 

Talvez também seja esse um dos limites órficos transpassados pelo poeta, o do silêncio de dentro do qual emerge a palavra precisa. Muitos dos poemas de Adivinhação da leveza delineiam, por exemplo, involuções do dito desdizendo-se, sílabas que vibram, se alternam / e / somem sem completar seu nome (De: "Recapitulação", p. 15) "Sobre um velho tema" esboça uma espécie de retroversão do discurso: A interrogação que, ao descobrir / sua ânsia pela resposta, / atravessa o silêncio / e, refeita, retorna ao início / para indagar a si mesma [...](p. 18).

 

Tais involuções do discurso – o dito pelo desdito, mas – paradoxalmente – em dizeres de alta definição – delineiam o movimento de abrir recessos, até se defrontar com o espelho. E ao se deter ali, cristalizado, diante de seu próprio reflexo, algo fatalmente lhe escapará, como descreve a "Ideia de Autorretrato":

 

O olhar se encolhe ante

o reflexo corrosivo.

Entre a mente e o espelho,

um claro-escuro divisa

o náufrago dentro do espectador.

 

A cifra do mais íntimo

se estampa e, a seus sinais,

o espelho se eclipsa. Então

é como  se fosse cara a cara,

e a alma pudesse ser alcançada.

 

Mais do que expor-se (menos,

por mais que consiga),

o autorretrato indaga

o que, de dentro do expor-se,

a ele mesmo se esquiva.

 

Talvez não seja mero acaso os três últimos livros de Duda Machado conterem variações de formas circulares como imagens de capa: a concha espiralada como vinheta de Crescente (desenho de Moema Cavalvanti), as ondas se diluindo em curvas na areia de uma praia (foto de Pedro Franciosi) na capa de Margem de uma onda, e o corpo celeste amarelo em pinceladas concêntricas em meio ao azul de um céu noturno (detalhe de alguma Noite Estrelada de Van Gogh?). Afinal, a poesia de Duda Machado pode ser lida como ato contínuo de circunscrever o indizível, como uma escritura divinatória que delineia em contornos nítidos justamente aquilo que ela oblitera.

 

*

 

Simone Homem de Mello, poeta, tradutora e libretista. È graduada em Letras pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Literatura Alemã pela Universidade de Colônia. É autora de Orpheus Kristall (libreto para ópera de Manfred Stahnke, Munique 2002), Belgrade Footnotes (ensaio para fotos de Filipa César, Frankfurt 2004), Périplos (poesia, São Paulo, 2005), Extravio marinho (poesia, 2011) e Nem Silêncio senão o do Vento (libreto com textos de Fernando Pessoa para ópera de Sidney Corbett, Bremen, 2007). Participou da Antologia de poesia brasileira do início do terceiro milénio (2008). Traduz Peter Handke, Paul Celan e poetas contemporâneos alemães.

*

 

retornar <<<

[ ZUNÁI- 2003 - 2012 ]