ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

SAMUEL BECKETT, MORTON FELDMAN
E A MIGRAÇÃO IMÓVEL DO PAR

 

 

                                                     Sérgio Medeiros

 

 

 Nas suas Teses sobre o teatro, Alain Badiou afirma que "A tragédia é a representação do Grande Poder e dos impasses do desejo", enquanto "A comédia é a representação dos pequenos poderes, dos papéis de poder, e da circulação fálica do desejo". Acrescenta que a tragédia pensa a experiência estatal do desejo, e a comédia, a sua experiência familiar. Os gêneros intermediários tratam o Estado como uma família, ou um casal ou a família como um Estado. "O teatro pensa," conclui Badiou, "no espaço aberto entre a vida e a morte, o entrelaçamento do desejo e da política."

 

Em outra parte do mesmo texto, Badiou discute as condições da comédia moderna e afirma a respeito de Beckett (1906-1989): "Não acho que a principal questão de nossa época seja o horror, o sofrimento, o destino ou o desamparo. Estamos saturados disso e, ademais, a fragmentação de tudo isso em idéias-teatro é incessante.  (...). Nossa questão é a da coragem afirmativa, da energia local. Apoderar-se de um ponto e segurá-lo. Nossa questão é, portanto, menos a das condições de uma tragédia moderna do que a das condições de uma comédia moderna. Beckett, cujo teatro, corretamente levado a cabo, é hilariante, sabia disso."

 

A questão é saber, porém, se Morton Feldman (1926-1987), compositor norte-americano que começou sua obra lançando livremente sons no tempo, como ele mesmo o declarou, e que depois também musicou textos de Beckett, pretendia fazer uma música hilariante, uma ópera que, como disse Badiou a propósito do teatro contemporâneo, "entrelaça em cena a violência do desejo e os papéis do pequeno poder local". A maneira mais simples de definir a arte de Feldman é afirmar, parece-me, que sua música é uma música inerte, um longo tapete interminável, talvez desértico, sem passos que o percorram em todas as direções e indiquem um percurso com começo, meio e fim. Haverá nisso afinidade com a "imobilidade interna", intrínseca ao movimento beckettiano, como afirmou Badiou?

 

A noção de música inerte, ou quase inerte, provém de um diálogo de Feldman com as artes plásticas, particularmente com a obra de Rothko. Feldman é sem dúvida um dos compositores modernos que mais foram influenciados pelas artes plásticas. Como escreveu Steven Johnson, a música de Feldman, escrita após o suicídio do grande pintor, se parece com as telas nas quais ele teria demonstrado "que a superfície 'não necessita ser ativada por uma vitalidade rítmica de um Pollock para permanecer viva, [mas] poderia existir como um relógio de sol estranho, vasto, monolítico'". Parece-me que se poderia falar de maneira metafórica de entorpecimento, paralisia dos passos sobre os padrões simétricos e abstratos do tapete que se estende infinitamente, nas longas composições de Feldman. Creio que é assim que se dá, ou possivelmente se dá, a migração imóvel do par Beckett-Feldman. Ambos imersos numa poética sem origem. Mas será que existe drama na música abstrata de Feldman? Não estou supondo que, por contraste, existe drama em Beckett, ou um tipo de drama incompatível de alguma maneira com a música não-humanista de Feldman. Uma arte (quase) sem mudança, (quase) sem acontecimento - talvez este seja um ponto comum, uma característica que podemos encontrar em ambos.

 

Uma máxima adotada por Feldman diz: "For art to succeed, its creator must fail", "Para a arte ter êxito, seu criador deve falhar, malograr". Essa máxima ecoa uma frase que é enfatizada num dos textos da última fase de Beckett, "Worstward ho"/"Rumo ao pior", frase que certamente Feldman adotaria: "Try again. Fail again. Fail batter", "Tente de novo. Falhe de novo. Falhe melhor". No caso de Feldman, a sua máxima é um elogio ao criador que deixou espontaneamente de controlar sua obra. Estamos no contexto da música indeterminada, e a música indeterminada culmina necessariamente na catástrofe, ou leva unicamente à catástrofe. Mas com a ressalva de que essa catástrofe é buscada pelos compositores, ou seja, ela tem permissão para acontecer na obra deles, em nome da presença do som, não como símbolo, mas como uma realidade em si. A idéia de catástrofe é, como sabemos, um tema fundamental para o autor de Fim de partida.

 

Ao discutir a modernidade e a impossibilidade de saber na arte quanto tudo "começa" e quando tudo se "conclui" (há quem prefira simplesmente "abandonar" a obra), ao discutir enfim a modernidade como malogro num ensaio intitulado "After Modernism", Feldman tomará como referência a pintura dos dois últimos séculos (Cézanne "solidificou" o impressionismo, enquanto Mondrian deu "fluidez" ao cubismo), a fim de destacar, sintomaticamente, um artista que, segundo ele, fracassou. Ao comentar a relação entre vida e processo na obra de Pissarro, dirá Feldman: "Como Cézanne, tinha a ilusão de que a verdade podia ser encontrada no processo. Diferentemente de Cézanne, ele não criou seu próprio processo. E assim ele falhou. É importante entendermos seu fracasso ("to understand his failure") - mais do que o sucesso de outros. Nós precisamos do seu fracasso, ele contém o elemento humano que dificilmente existe na modernidade." No século XIX, Pissarro é aquele que fracassou, e seu caso merece por isso toda a nossa consideração. Mas, passando agora para o século XX, tampouco se pode saber em que momento um artista como Mondriam, por exemplo, tem êxito e em que momento fracassa, ou malogra - o êxito e o malogro são partes da uma mesma experiência. Mondrian falhou como messias (sua mensagem messiânica versava sobre coisas que não podiam ser transmitidas), mas esse malogro justamente nos revelou Mondrian como pintor. Destaco esse trecho, sem discuti-lo, apenas para mostrar como a categoria de "fracasso" foi importante para Feldman, não somente, conforme percebemos aqui, para defender sua leitura crítica da situação da música após Schoenberg e a composição dodecafônica, mas também toda a sua visão da arte, considerada a partir das realizações, ou não-realizações, de seus nomes exponenciais.     

Na história da música, Feldman pertence ao grupo de novos compositores que, entre 1950-1951, passou a reunir-se assiduamente em Nova York, e que contava entre seus membros John Cage, Earle Brown e Christin Wolff. Acreditando que o método de composição com doze notas não era uma alternativa, mas ainda um processo de organização, e, pecado maior ainda, adaptado às velhas formas, Feldman, ao lado de seus três parceiros, buscou compor uma música "não fixa", cujos vários elementos, como ritmo, dinâmica etc., fossem liberados.

 

Embora Cage fosse o mestre, nem sempre sua visão de mundo ou sua obra eram aceitas pelo grupo como um paradigma inquestionável. Feldman, por exemplo, expressava muito de sua discordância com o mestre através de um humor beckettiano. Num lindo dia de primavera em Nova York, passeavam ambos, Cage e Feldman, quando de repente Cage exclamou: "Veja aquelas gaivotas. Nossa, como elas são livres!" Depois de olhar as aves, Feldman sentenciou: "São livres coisa nenhuma - elas estão procurando comida o tempo todo." Cage vê o efeito, mas ignora  a causa, segundo explicou Feldman. E acrescentou que é a obra polêmica, com sua visão polêmica, justamente aquela que se torna porta-voz de uma época. E assim Cage se tornou porta-voz da época de Feldman.

 

Morton Feldman encontrou-se com Beckett em Paris em 1962, durante um ensaio da peça Happy Days. O compositor norte-americano sabia que Beckett estaria na platéia e, durante um intervalo, aproximou-se do escritor, apresentou-se e perguntou se haveria alguma chance de Beckett escrever um libreto para uma ópera breve. Beckett o interrompeu e disse: "Eu odeio ópera." Feldman replicou: "Eu também". "O resultado foi neither", lemos na biografia de Beckett assinada por Cronin, "um libreto com menos de vinte linhas de texto, que estreou mundialmente, como uma ópera com música de Feldman, em Amsterdam, em 1990".  (Cito o início do libreto: "To and fro in shadow from inner to outershadow/ from impenetrable self to impenetrable unself by way of neither/ as between two lit refuges whose doors once neared gently close, once turned away from gently part again/ beckoned back and forth and turned away" etc.) Outras fontes afirmam, porém, que a ópera estreou em Roma, em junho de 1977. Nas obras completas de Beckett, esse texto, neither, ou, numa tradução possível, "nenhum nem outro"/"nenhum dos dois", consta como tendo sido redigido em 1976. Ouvi essa ópera numa gravação feita em Munique ao vivo em 1998, com o soprano Petra Hoffmann e a Symphonieorchester des Bayerischen Rundfunks, sob a regência de Kwamé Ryan. Com a música original, a ópera dura 55' 41". Temos em suma um canto impronunciável, silábico, apresentado na ópera num registro bastante alto, que exige muito da cantora.

 

Mas por que Feldman quis fazer uma ópera, nesse momento de uma carreira já consolidada? Podemos ler no livro Opera's sencond death, de Slavoj Zizek e Mladen Dolar, que a ópera é um tema pós-moderno por excelência. Por ser justamente uma enorme relíquia, um grande anacronismo, um recuperação persistente do passado perdido, um reflexo do fim da aura. O fato é que, morta ou pós-moderna, ou póstuma, a ópera é um gênero musical que fascinou inegavelmente os pais fundadores da música do século XX, que através da ópera criaram possivelmente a ponte instável entre o moderno e o pós-moderno, o malogro possível. "Pensa-se num Stockhausen, Berio, Ligeti, Penderecki e até mesmo Cage e Messiaen, para não mencionar as tentativas mais antigas de Henze, Zimermann, Kagel e muitos outros", elencam Zizek e Dolar.  

 

Também Feldman não resistiu à tentação de escrever uma ópera, no que foi auxiliado, como vimos, por Beckett, embora ambos detestassem ópera. O tema da ópera é, aparentemente, o mesmo da experiência cinematográfica de Beckett, Film, ou seja, a consciência de si mesmo como impossibilidade.  O malogro da auto-percepção.

 

Ópera cômica, hilariante, ou dramática, trágica? Ópera lírica? O seguinte comentário, retirado de The Grove Companion to Samuel Beckett, é bastante esclarecedor a respeito do teor do libreto e da música em questão:

 

O texto retorna à velha noção de vida, "evoking nothing more substantial than oscillatory movement"/ "evocando nada mais substancial do que o movimento oscilatório" (Laws, 59), um sentido de "estar-entre"/ "betweenness" deslocado, um movimento fantasmático entre gradações de sombra e de self/eu (/unself/não-eu). A música rarefeita diz respeito à incessante busca por um "Eu"/"I" essencial, mas essa presença absoluta parece estar além daquilo que as sombras podem alcançar: dizer "Eu"/"I" requer uma localização dentro de si mesmo/self, mas a existência objetiva desta subjetividade não pode ser verificada senão de fora, exteriormente /"from without". Samuel Beckett sabidamente disse que este era seu texto de "algo"/"one": impronunciável, não localizável num  eu/self ou num  não-eu/nonself, mas em nenhum dos dois. Os cinqüenta minutos de música - sem história, personagem, mise-en-scène, decididamente não teatral; dificilmente se define como ópera - tenta capturar, através de pequenos diferenças incrementais, esta única idéia sem substância ou definição, pura e abstratamente evocativa, a música é a única compensação para a negação de referência (p. 404).

      

Gostaria de lembrar que em 1963 Feldman incorporou na composição Vertical Thoughts 3 e Vertical Thought 5 um texto bíblico, salmo 144, versículo 4, que diz algo que, parece-me, prenuncia o conteúdo do texto de Beckett, usado na ópera que comentamos; "O homem é como o vento; seus dias são como a sombra que passa." Sombras e movimentos oscilatórios parecem metaforizar, aqui, um fracasso, o malogro, como a experiência implícita em "nem um nem outro", nem iniciado nem concluído, nem comédia nem tragédia. Queria mencionar que, num conto famoso sobre um filósofo islâmico que não sabe definir os gêneros teatrais, "A procura de Averróis", o escritor argentino Jorge Luis Borges, que certa vez dividiu um prêmio internacional com Beckett, afirma no final do seu relato: "Na história anterior quis contar o processo de uma derrota." É o que todos querem contar, entre sombras oscilatórias que não podem alcançar o ser e o não-ser. O protagonista borgiano que, "encerrado no âmbito do1 Islã, nunca pôde saber o significado das palavras tragédia e comédia", conclui-se assim: "Sei que desapareceu bruscamente, como se o fulminasse um fogo sem luz".    

 

Podemos agora retomar Badiou, citado no início, no ponto em que ela afirma que o teatro de Beckett, quando bem encenado, é hilariante. Tentamos seguir aqui o movimento compassado do par Beckett-Feldaman, relevando o muito que haveria de "imobilidade interna a esse movimento", num sentido talvez não exatamente idêntico àquele circunscrito por Badiou: eles se vão, adentram a ópera (não o teatro puro) sem apreciá-la, fazem uma obra que não é cômica nem dramática, mas ambas as coisas, indefinidamente, assim jamais se afastam para um extremo ou outro do gênero musical em questão. Ambos, escritor e compositor, leitores de Kierkegaard e influenciados pelo pensamento existencialista, ou tendo os dois afinidades com ele, destacam, nessa ópera, como a sombra não pode ascender a eu nem aniquilar-se espontaneamente, fazendo-se um não-eu, "nem um nem outro" extremo dessa polaridade, nenhum dos dois, mas o próprio movimento oscilatório tenso, móvel/ imóvel.

 

Ao lidar com a sombra do ser e a sombra da música ou da voz, ambos, Beckett e Feldamn, encontram-se aparentemente no mesmo lugar e podem afirmar que, para a sombra, não existe dualidade, comédia e drama como fatos separados ou extremos. Os pares migram imóveis.

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Sérgio Medeiros é autor de dois livros de poesia Alongamento (2004) e Mais ou menos do que dois (2001). Ensina literatura na UFSC.

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

ACKERLEY, C. J. e S. E. Gontarski. The Grove Companion to Samuel Beckett: a reader's guide to his works, life, and thought, Grove Press, Nova York, 2004

BADIOU, Alain. Pequeno manual de inestética, Estação Liberdade, São Paulo, 2002

BECKETT, Samuel. Nohow on: Company, Ill seen ill said, Worstward ho, Grove Press, New York, 1996

------------------------. The complete short prose: 1929-1989, Grove Press, Nova York, 1995

BORGES, Jorge Luis. El aleph, Emecé, Buenos Aires, 1996

CRONIN, Anthony. Samuel Beckett: the last modernist, Da Capo Press, Nova York, 1999

FELDMAN, Morton. Give my regards to Eighth Street: collected writings of Morton Feldman (edição de B.H. Friedman), Exact Change, Cambridge, 2000

KNOWLSON, James. Damned to fame: the life of Samuel Beckett, Touchstone, Nova York, 1966

ZIZEK, Slavoj e Mladen Dolar. Opera's second death, Routledge, Nova York/Londres, 2002 

 

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