ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

A DANÇARINA E O FUNCIONÁRIO

 

Roberta Moura Cavalcanti

 

“O nosso amor é tão bom
O horário é que nunca combina

Eu sou funcionário

Ela é dançarina

Quando pego o ponto

Ela termina”.

                                                                                                               (Ela é dançarina-1981) [1]

 

No ano de 1981, o Brasil, já nos últimos momentos da Ditadura Militar e governado pelo presidente Figueiredo, vivia um clima de mudança com a Lei da Anistia, que concedia aos artistas, políticos e outros exilados o direito de voltar ao país. As manifestações de massa estavam voltando às ruas, e o povo, assim como o país, caminhava para uma democracia; esta ganharia força mais à frente com a campanha das Diretas Já, que teve em São Paulo seu primeiro ato. Dois anos antes, em 30 de abril de 1979, acontecia o primeiro show do Primeiro de Maio, que teve mais outras edições, sendo o último em 1981, e contou com a participação de vários artistas da Música Popular Brasileira, entre eles Chico Buarque que, além de participar, foi também um dos principais idealizadores do evento. [2]

 

Foi em meio a essa atmosfera de mudança que Chico Buarque lançou o álbum “Almanaque”, no qual estão contidas, além da música que iremos analisar “Ela é dançarina”, as músicas “As vitrines”, “Tanto amar”, “Amor barato”, “O meu guri”, entre outras [3].

 

A canção “Ela é dançarina” fala do amor entre um funcionário, que trabalha, como a maioria das pessoas deste país, no horário matutino, e uma bailarina, que, como representante da classe artística, exerce sua função em horário não muito convencional e diferente do dos outros trabalhadores. E é o horário o grande empecilho ao relacionamento de ambos, uma vez que, quando o funcionário está largando das suas tarefas e descansando, é neste momento que a bailarina está indo começar o seu dia de trabalho, o que acarreta os desencontros na relação.

 

“Ela é dançarina” pertence a uma série de canções do cantor e compositor carioca, Chico Buarque, que podemos enquadrar num estilo barroco, e esse enquadramento pode ser tanto pela tensão dilemática presente no homem barroco, quanto por sua estética, o uso do jogo lúdico. Apesar de essa música ter sido escrita em 1981, quatro séculos depois do surgimento da estética Barroca, a presença do estilo é bastante marcante na mesma.

 

O estilo barroco nasceu em meio a uma crise de valores renascentistas provocada pela luta religiosa e pela crise econômica. A Europa passava por sérias mudanças durante o século XVI e o XVII, como a pressão exercida pela burguesia contra a nobreza, a expansão do mercantilismo e a revolução comercial, a Reforma Protestante e a resposta da Igreja Católica, a Contra-Reforma e a fundação da Companhia de Jesus, o que trouxe uma nova onda de religiosidade, e a luta entre razão e fé, homem e Deus (Antropocentrismo e Teocentrismo).

 

A arte barroca, especificamente a literária, necessitava expressar a tensão vivida pelo homem da época e fez isso explorando, metaforicamente, uma realidade que não se podia captar, o que resultou numa linguagem carregada de um jogo lúdico, na qual o artista usava e manipulava as formas estéticas como instrumento de expressão, apresentando como características o culto exagerado da forma, o uso sobrecarregado de metáforas e antíteses, o conflito espiritual, o dualismo, o cultismo etc. Todo esse rebuscamento formal faz a arte barroca assumir uma tendência sensualista com o intuito de expressar toda a tensão que o homem da época vivia diante da situação em que o mundo encontrava-se [4].

 

Esse jogo lúdico tão presente na estética barroca pode ser muito bem visto em “Ela é dançarina”. Toda a canção é construída em cima de uma oposição básica: o fato de ele ser funcionário e de ela ser dançarina, o que causa uma alegoria na qual a mulher (dançarina) representa a noite; e o homem (funcionário), o dia, ressaltando a oposição entre ambos. E o fato de ela ser da noite e ele do dia acarreta desencontros e choque de horários, que é, na verdade, a maior dificuldade do casal, o que ele deixa bem claro já nos dois primeiros versos da canção “o nosso amor é tão bom / o horário é que nunca combina” e logo em seguida a explicação de por que os horários não combinam: “eu sou funcionário / ela é dançarina.

 

No decorrer de toda a canção essas antíteses vão ganhando força, dando ênfase ao fato de que na hora em que ele começa a trabalhar é a hora em que ela larga, como, por exemplo, nos seguintes versos: “quando pego o ponto / ela termina” e “quando abro o guichê / é quando ela abaixa a cortina, ou seja, no momento em que ele pega o ponto (livro em que os funcionários assinam na hora de chegada e na hora de saída do trabalho e que tem como objetivo controlar a assiduidade dos mesmos) para assinar e, posteriormente, abrir o guichê e começar as suas tarefas diárias, é o mesmo momento em que ela fecha as cortinas e encerra sua “noite de trabalho”.

Para exemplificar mais essa oposição temos a metáfora contida nos seguintes versos: “quando caio morto / ela empina / ou: quando eu tchum no colchão / é quando ela tchan no cenário”. Nestes versos podemos ver bem o uso do jogo lúdico (que se trata, na verdade, de um imaginário que modifica as formas, uma vez que a literatura barroca queria dizer visualmente algo mais que podia), quando o poeta usa as expressões cair morto, no sentido de deitar, descansar depois do trabalho, em oposição a empinar, que assume aí o sentido de levantar; e também no uso de onomatopéias (que consistem na semelhança, através da imitação ou reprodução, existente entre o som de uma palavra e a realidade que representa) [5] quando ele diz tchum no colchão na tentativa de reproduzir o som de quando deitamos na cama, assumindo o mesmo sentido de cair morto, em oposição à onomatopéia tchan no cenário, usada, geralmente, quando queremos nos referir a uma aparição, que neste caso é o momento em que as cortinas se abrem, ela aparece para o público e inicia a sua noite de trabalho.

Outras metáforas são usadas para representar a oposição dia x noite, como no verso “o seu planetário / minha lamparina, em que a dançarina é relacionada a um planetário (algo pertencente ou relativo a planetas), fazendo uma ligação com a noite, a vida dela no palco e as luzes dos holofotes, e ele a uma lamparina (pequena lâmpada), numa ligação com o dia, no qual as luzes são, na grade maioria, desnecessárias, sendo a luz do sol suficiente; em “quando eu não salário / ela, sim, propina representa mais uma antítese entre eles, uma vez que quando ele fica sem salário, ela aceita propina [6], algo bem comum de quem trabalha na noite; e nos versos “abro o meu armário / salta serpentina temos mais uma antítese presente na relação dos dois, quando ele abre o armário, possivelmente para pegar roupas para trabalhar, cai serpentina, material de trabalho de artistas, e não das pessoas ditas “comuns”.

Todos os contrastes presentes na relação e na canção são justificados com a repetição, ao final de cada estrofe, dos versos “eu sou funcionário / ela é dançarina” ou “ela é dançarina / eu sou funcionário”. Mas mesmo com todas essas oposições no relacionamento da dançarina e do funcionário, eles mantêm a relação e aceitam os desencontros causados pelo horário de trabalho dos dois, o que fica bem explicitado nos seguintes versos: “nas questões de casal / não se fala mal da rotina”, retomando a afirmação contida no primeiro verso da canção “o nosso amor é tão bom”.

 E, ao final da canção, o funcionário relata que pretende juntar uma quantia em dinheiro e pedir uma licença, provavelmente do seu trabalho, para poder, assim, assistir a um show que a dançarina jurou que faria para ele, como podemos ver nos versos abaixo:

“No ano dois mil e um
Se juntar algum
Eu peço uma licença
E a dançarina, enfim
Já me jurou
Que faz o show
Pra mim”
 

Essa presença barroca na música apresenta-se não apenas no uso do jogo lúdico e das figuras de estilos (metáforas, antíteses, alegorias), mas também na tensão sofrida pelo eu-lírico. Toda a canção soa como um protesto do funcionário pelo fato de o horário dos dois não combinar, e pelo desejo dele de querer a combinação deste horário, para assim ver a sua amada; isso fica bem claro nos versos finais da canção, como vimos acima. Mas toda essa “reclamação” feita pelo funcionário se torna contraditória quando o mesmo diz que, nas questões de casal, eles não falam mal da rotina, ou seja, quando ambos conversam sobre a relação, a rotina conturbada, devido ao horário, não é posta como algo ruim, da qual se fale mal, o que exemplifica a tensão que povoa este homem o qual, mesmo achando esses desencontros ruins, não fala mal deles e aceita-os.

“Ela é dançarina”, apesar de ter sido escrita há 28 anos, é muito atual. Se ligarmos a televisão e pararmos para assistir aos programas que falam da vida das celebridades ou abrirmos os jornais nas colunas de fofocas, veremos que os fins dos relacionamentos entre famosos têm, na grande maioria, como justificativa, ou desculpa, a incompatibilidade de agendas, ou seja, os horários que se chocam e não deixam que os casais se vejam com uma mínima freqüência, o que nos permite perceber a atualidade da música buarqueana. E mesmo sendo escrita em 1981, a canção é carregada do jogo lúdico, tão característico do Barroco, segundo Affonso Ávila. Dessa forma, podemos compreender que a estética barroca não se restringiu aos séculos XVI e XVII, muito pelo contrário, ela permanece bem viva ao longo de toda história da literatura e tem em Chico Buarque um de seus principais “usuários”.

 

ELA É DANÇARINA
("Eu quero dormir e ela precisa dançar")
Chico Buarque/1981

 

O nosso amor é tão bom
O horário é que nunca combina
Eu sou funcionário
Ela é dançarina
Quando pego o ponto
Ela termina

Ou: quando abro o guichê
É quando ela abaixa a cortina
Eu sou funcionário
Ela é dançarina
Abro o meu armário
Salta serpentina

Nas questões de casal
Não se fala mal da rotina
Eu sou funcionário
Ela é dançarina
Quando caio morto
Ela empina

Ou: quando eu tchum no colchão
É quando ela tchan no cenário
Ela é dançarina
Eu sou funcionário
O seu planetário
Minha lamparina

No ano dois mil e um
Se juntar algum
Eu peço uma licença
E a dançarina, enfim
Já me jurou
Que faz o show
Pra mim

Ela é dançarina
Eu sou funcionário
Quando eu não salário
Ela, sim, propina

No ano dois mil e um
Se juntar algum
Eu peço a Deus do céu uma licença
E a dançarina, enfim
Já me jurou
Que faz o show
Pra mim

 

NOTAS

[1] Escolhemos a versão presente no álbum Almanaque (1981), que contém letra diferente da do álbum Uma palavra.

[2] ZAPPA, Regina. Chico Buarque para todos. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999.

[4] ÁVILA, Affonso. O lúdico e as projeções no mundo barroco I. 3ª Ed. São Paulo: Perspectiva, 1994.

[5] http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/index.htm (acessado em 25/10/09 às 16:03).

[6] Aqui entendemos propina com o sentido de gorjeta, gratificação.

 

 

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Roberta Moura Cavalcanti é formada em Letras pela Funeso (2008) e Pós-graduada em Literatura Brasileira pela Fafire (2010).

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