ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

A INSUBORDINAÇÃO DA PALAVRA

 

 

Nilson Oliveira

 

Não direi que o desastre é absoluto,

pelo contrário, ele desorienta o absoluto,

 vai e vem, perturbação nómada.

 Maurice Blanchot1 

I - A Escrita Como Potência

 

‘A LITERATURA É O ESSENCIAL OU NÃO É NADA2’. Instigante afirmação de George Bataille, mas por certo – pela potência do que enuncia – inteiramente incandescente, referência de força aos que tangenciam o horizonte da escrita, aqueles cuja questão consiste em elevar a literatura a um ponto limite: a literatura é o essencial ou não é nada; e a partir disso, ao contrário de estabelecer uma verdade ou uma moral, engendram uma fratura, um deslocamento. Pois a literatura foi desde sempre um caso de abertura, de possível [por isso se mantém], de Devir. Com efeito, a literatura só É [ativa] quando subverte as certezas do Sempre, incorrendo no movimento que lhe é próprio: a criação. Escrever é um caso dessa ordem. Este é o mote que corta a obra de Luis Serguilha, projeto enviesado em uma dupla captura: a da escrita e a da obra de arte, linhas que se atravessam na enseada de Roberto Piva e Francisco dos Santos, passeio inclinado em apostas inusitadas que apontam para um algo mais, como em todo trabalho de criação, para linhas de fuga, no encontro com uma comunidade diversa que se move na enseada do presente.

 

O Roteiro de Serguilha, contudo, não é fácil; escapa às curvas do linear, aos roteiros do mesmo e se lança ao coração dos infernos para perceber o horizonte das tensões, mas sobremaneira perceber onde os poderes se efetuam e como estão inseridos na escrita, na cultura e na vida. Sua análise deixa evidente que, para o escritor, a primeira investida para se pensar a literatura é perceber as nuances do presente, pois a literatura é também a vida, no sentido das pulsações, passível de controle, mas a um só tempo de Fuga: de Desterritorialização, e é também Potência. Com efeito, numa aposta sem parcialidades, engendrada por uma Potência Crítica, Serguilha lança-se aos abismos da escrita literária. Sua jornadaé ao mesmo tempo destruidora e criadora, sua negatividade é a negatividade do positivo, a agressividade que decorre de uma instância mais profunda, ATIVA, afirmativa, nas trilhas de um possível. “Sucintamente: uma força é considerada ativa na medida em que é plástica, dominadora e apropriadora, no sentido em que o artista “domina” e se “apropria” de sua matéria-prima – dando-lhe forma, criando sentidos, valores”3. Nessa direção, sua escrita acontece na mão oposta à crítica institucional, que se tornou cada vez mais parcial, operando na ciranda dos valores estabelecidos, como o juízo que autoriza as tendências do mercado. A crítica de Serguilha propõe uma outra direção, atravessada de pontos de ruptura, como linha aberta por entre tempos diferenciados, no curso do acontecimento, combatendo, criando, produzindo um caminho por vir. Com a fronte virada para a paisagem do presente, na atmosfera calcinada do mercado capitalista, pensando o seu efeito na literatura, Serguilha nos diz:

 

“A LINGUAGEM ESTÁ MERCANTILIZADA, DOMINADA PELO BARBARISMO DA COMPRA-E-VENDA E PELOS PROXENETAS CULTURAIS PARTIDÁRIOS DOS SISTEMAS FINANCEIROS QUE CENTRALIZAM A CULTURA, A LÍNGUA E A ECONOMIA NAS ARENAS DITATORIAIS-CONTROLADORAS-ASFIXIANTES. É O  RESLOUCAMENTO DOS DISCURSOS DA UNIFORMIZAÇÃO, DA HOMOGENEIZAÇÃO E DO CULTO DA PERSONALIDADE QUE DOMINAM A CONSCIÊNCIA HUMANA. SIM O PENSAMENTO É CADA VEZ MAIS SUBSTITUÍDO PELA PUBLICIDADE DO CONSUMISMO, PELA VULGARIZAÇÃO COMUNICACIONAL, PELA MASSIFICAÇÃO DA MEDIOCRIDADE, DA FUTILIDADE, DA AUTOPROMOÇÃO E DA BANALIDADE MIDIÁTICA”.

 

Percebendo, com isso, que ação das cafetinas do mercado acontece abolindo potências numa lógica marcada pela violência – que por vezes é simbólica, por vezes atroz –, enfileirando em seu bojo corpos engessados e escritas subordinadas.

 

Serguilha é pontual. Move-se, não faz reticências, e essa é uma das linhas visíveis em sua escrita, a mobilidade, que pela singularidade nos faz pensar... Atravessa a Planície seca do atual, faz as palavras trepidarem, diz sem concessão, mas não se retém ao negativo, migra para mais adiante martelando pequenas aberturas, e para essas bandas nos arrasta, fazendo a escrita dilatar num espiral de interpretações. Pois sabe, é na metamorfose, na recusa à muralha do mesmo, que o pensamento engendra suas dobras.

 

II - Do Estilo

 

É interessante notar, como o seu objeto foi inteiramente corrompido pelo estilo, o que por si é uma virtude, um caso de força, diga-se, de vontade. Serguilha escreve como quem desliza na intensidade do estilo, ou seja, como quem gagueja em sua própria língua: neste caso já não se trata mais de fazer no texto, ou dizer sem fazer, “mas de uma outra dicção, quando dizer é fazer aquilo que acontece, quando o balbucio (gagueira) não se dirige mais às palavras preexistentes, mas introduz, ele próprio, as palavras que ele afeta (...). Não é mais o personagem que é gago de palavras, é o escritor que se torna gago de línguas: ele faz a linguagem gaguejar quanto tal (...). Fazer gaguejar a língua e, ao mesmo tempo, levar a linguagem a seu limite, a seu exterior, a seu silêncio”4.

 

III - Poema-Pintura

 

É precisamente a partir das pinturas de Francisco dos Santos e da poesia de Roberto Piva que Serguilha abre suas fissuras, indicando que podemos pensar a partir de um movimento duplo, no encontro de forças que incidem por superfícies distintas, em fazeres singularizados pela minúcia do seu traçado, mas atravessado pela potência dos fazeres. Por certo não se trata de um encontro fácil, tal como todo o bom encontro; ata-se nem tanto pela semelhança, mas pela diferença, na velocidade do que só a diferença torna crível, na sua expressão mais radical: outra – dessemelhante – não familiar – estrangeira.

 

O projeto de Serguilha é na verdade “uma visita guiada ao interior da Diferença, a um pensamento-outro, que fala em línguas”5. O pensamento-outro é a experiência que arrasta toda experiência, que arranca o sujeito de si e do mundo, do ser e da presença, da consciência e da verdade, da união e da totalidade; aqui o pensamento desliza pela superfície das coisas vivas, na pura região da arte.

  

E assim nos diz Serguilha:

 

FRANCISCO E PIVA ALTERAM A ESTABILIDADE DA INTERPRETAÇÃO DOS ESTÍMULOS PRIMITIVOS AO NUTRIREM O AUTÊNTICO ÉTIMO DA GÉNESE

DO INEXPRIMÍVEL. ESTE PRECIPÍCIO PINTOR-POETA É UMA CONSCIÊNCIA INENARRÁVEL DA DENSIDADE INTRÍNSECA, DO ANFITEATRO DA INTERSUBJECTIVIDADE, DA COMBINAÇÃO DOS ANTINÓMICOS, DA ESTRANHEZA DAS SOBREPOSIÇÕES/DEVASTAÇÕES E DA TRANSGRESSÃO HIEROGLÍFICA: _____________ AQUI A ELEMENTARIEDADE DOS QUADROSPALAVRAS DINAMIZAM A RELAÇÃO FUNDADORA E HETEROGÉNEA DO CLIMA DA ERRÂNCIA E DAS ANTROPOFORMIZAÇÕES/EROTIZAÇÕES DAS PAISAGENS ONDE A GESTAÇÃO PROFÉTICA E VISIONÁRIA RECOLHE E INTERIORIZA HIPNOTICAMENTE A ACTIVIDADE GERMINADORA DO LIVRO-NATUREZA SOBRE O DESTINATÁRIO DA OBSCURIDADE, DO ALFABETO-UNO DA DRAMATIZAÇÃO E DA CONDIÇÃO HUMANA.

 

Com Serguilha entendemos que há em Francisco dos Santos e Piva uma importância que se estende para além do espaço do pensamento literário, pois vai além da literatura, atravessa o artista, se enreda aos desdomínios da criação. Com Francisco dos Santos e Piva, o pensamento se descola das coisas fixas, diga-se: da história da arte e da história da literatura, pois eles nos obrigam a pensar em movimento, ao passo que todo o pensamento tradicional leva-nos a pensar num fundamento único, numa unidade de pensamento. Pela lente de Serguilha, a pintura e a poesia indicam um pensamento em profusão que, sobremaneira, implica em criatividade, engendrada numa forma de viver, a vida como obra de arte vivida a partir da lógica:

 

‘INTERIORIDADE/EXTERIORIDADE’; e vice versa, na ‘PROFUNDIDADE DO IDIOMA’, na ‘METAMORFOSE’, no ‘DESCOBRIMENTO DA (IN)-TEMPORALIDADE SATURNINA E DO DEVASTADOR DELÍRIO DO COSMOS’, no ‘APOGEU DA INSTABILIDADE DA CRIAÇÃO POÉTICA E ARTÍSTICA COMO UMA CONTÍNUA TRANSFORMAÇÃO DO CONHECIMENTO AFECTIVO-ESPONTÂNEO E DA REFLEXÃO DO UNIVERSO’

 

Nessa direção, o pensamento alcança uma outra velocidade, dilaceradora de placenta, gerando um pensamento órfão [pensamento sem pai, nem mãe – sem começo nem fim – solto no mundo], no qual se encontram um corpo: POEMA; e outro: PINTURA, numa mesma grafia: a de Serguilha; erigindo não uma unidade, mas uma matéria viva [tal como o redemoinho e tudo que arrasta no seu bojo], que no caos da sua velocidade forma um POEMA-PINTURA, que por si traz a imagem do Corpo Sem Órgão – CsO; que segundo José Gil: “é, antes do mais, uma questão de matéria. Mas matéria trabalhada, transformada – o CsO do escritor não é feito de palavras, mas de «escrita», resultado do seu trabalho sobre as palavras. Construir o CsO consiste em determinar a boa matéria, a que convém ao corpo que se quer construir: um corpo de sensações Picturais, um corpo de dor no masoquismo, uma corpo de afectos amorosos que toma posse do ser apaixonado, um corpo de pensamento no filósofo. Compor um tal corpo torna-se tarefa uma delicada, quando se pensa que cada fluxo de desejo é singular e que não é qualquer palavra ou qualquer pensamento que pode entrar no fluxo de maneira a integrar-se nele e a intensificá-lo”6. É nessa direção que Serguilha pensa um corpo ainda mais intenso: Piva/ Artaud/ Francisco dos Santos:

 

 “AQUI A SENSORIALIDADE, A EMOTIVIDADE, A INSTANTANEIDADE CÉNICA DO FOGO DRAMÁTICO E DO ANARQUISMO EFABULADOR DA MATÉRIA ALIMENTAM CADA VEZ MAIS A INCÓGNITA ANTIQUÍSSIMA E A FUNDAÇÃO DO CORPO COSMOGÓNICO (_______ ROBERTO PIVA E FRANCISCO DOS SANTOS LIBERTAM A SUA EXISTÊNCIA NA IMINÊNCIA-DINÂMICA-IMPERSCRUTÁVEL DO POEMA-PINTURA______): __________UMA INUNDAÇÃO DE ALABASTRINOS INDETERMINADOS NO ABISMO DO CORPO-DO-CORPO E NO SAZONAMENTO DA VIDA INSTINTIVA FORMA UMA CONSCIÊNCIA PRIMORDIAL E AUTÓNOMA NA CRIAÇÃO DA ELEMENTARIDADE POÉTICA. ESTA PERTURBAÇÃO PROJECTA/RELEMBRA ANTONIN ARTAUD E OS SEUS PANORAMAS LIDADORES DO BARBARISMO, DAS INSTABILIDADES PROFUNDAS DA HUMANIDADE E DAS COMPOSIÇÕES DA VERTIGEM HETEROGÉNEA QUE ABALANÇA A TENSÃO DESABRIDA DO GRITO EMANCIPADO”.

 

 Piva/ Artaud/ Francisco dos Santos: caminhos que se dobram como lâminas que cortam alhures. Nessa esfera, só nos cabe sentir, ler, ver, como quem observa uma paisagem, aliviado dos anseios de desvendar saberes tão belamente engendrados, perceptíveis em cada ponta: nas voltas de cada pensamento; seja na figura Piva/ Artaud/ Francisco dos Santos, planos de pensamento e transição, zonas de perfuração, vôos pela superfície, pelas janelas do impensado. Lugares do incomum, corpos espalhados pelo diverso, livres como blocos de sensação. Na experiência da escrita de Luis Serguilha, cada bloco de sensação funciona como um aberto, um aroma que necessita de uma atenção desejosa para manusear. Com efeito, com um estilo voraz,Serguilha segue adiante, atravessando os aromas com maestria, manuseando com a agilidade necessária de quem se hidrata de cada saber na potência máxima da intensidade, trilhando para uma finalidade que assegure, pela sutileza dos sabores, a vitalidade da diferença, compondo um inusitado banquete literário.

 

IV - Da Transgressão

 

Serguilha, a partir dos poemas de Piva, das Pinturas de Francisco dos Santos, e do corpo sem órgão de Antonin Aratud, risca uma imagem que transgride, subvertendo a cena, buscando incessantemente transbordar o concreto para tornar viável outras experiências: de linguagem, de vida, do que for. Algo bem próximo do que nos diz Foucault referindo-se a Sade: “Desde que Sade pronunciou suas primeiras palavras, fez percorrer num único discurso todo o espaço do qual ele tornaria de repente o soberano, nos ergueu até a uma noite em que Deus está ausente e na qual todos os nossos gestos recorrem a esta ausência numa profanação”7.

 

Serguilha, transgredindo, pensa o incomum, logo revitaliza a cena, sacode o tédio, subvertendo a gramática, surfando no labirinto do alfabeto, escrevendo em palavras, dizendo MAIÚSCULO, gritando um “TEATRO-POEMA-PALAVRA-PINTURA”, gerando pela abertura do seu GRITO bons encontros: Piva/ Artaud/ Francisco dos Santos/ Hölderlin/ Michaux. A escrita, nessa órbita, não mais está disponível para designar algo ou dar voz a alguém, pois vem de uma matéria nervosa quetudo quebra e tudo esfacela; sua força fratura o muro do significante e alcança o outro lado da fronteira, tal como, referindo-se a Artaud, nos diz Daniel Lins: é uma espécie de “Escrita sopro, gazes, murmúrio, estalado de árvores, estupradas pela tempestade; reverberação, intoxicação de ovelhas prenhes, úberes sufocadas pela falta de ar, vida querendo morrer antes de nascer, Artaud realiza, à sua maneira, a escrita do arejamento, das correntes de ar, concretizando o papel essencial da escrita”8. Esse, de uma outra maneira, é o efeito transgressivo que o TEATRO-POEMA-PALAVRA, de Artaud, Piva e Francisco dos Santos, faz transparecer na escrita de Serguilha que, de forma incisiva nos diz:

 

O ESPÍRITO DESTES POETAS-PINTORES-DRAMATURGOS DA LINGUAGEM CAOLÓGICA ESTÁ SEMPRE NUMA CONVULSÃO DE SUBSTANCIALIDADES PRÓPRIAS ONDE A LOUCURA DE DESMASCARAREM O DINAMISMO-DO-OLHAR-DO-MUNDO E AS SUAS MÚLTIPLAS ESFINGES RENASCE ENTRE AS AGITAÇÕES RÍTMICAS DAS ESCRITURAS. DA NATUREZA: __________________ A TOPOLOGIA DO SER INCOMPLETO DEVORA A VIAGEM DA FERIDA INDISPENSÁVEL PARA TRANSFORMAR AS SILHUETAS DOS OBSTÁCULOS CONVENCIONAIS E NORMATIVOS NA PROBABILIDADE TRANSGRESSORA DO ALVOROÇO ABSOLUTO.

 

Na literatura, segundo vemos na obra de Serguilha, a palavra torna-se um instrumento, um meio, que fratura e transgride o sentido do mundo e das coisas para incorrer em um horizonte outro, fora do mundo e das substâncias. Essas experiências nos arrancam do mundo e nos colocam novamente nele, como o eterno retorno que na sua velocidade injeta um pouco de possível às coisas, assegurando no seu percurso o inevitável rompimento das verdades e das certezas, que encobre e mantém a engrenagem do mesmo. No lugar do usual, um outro sentido, uma outra função: cavar e inventar realidades nômades, não-lineares, marteladas, arrastadas pela força do Devir; abertas ao vento dos acontecimentos. Com Roberto Piva, Francisco dos Santos e Antonin Artaud, a escrita de Serguilha torna-se uma MÁQUINA DE GUERRA, uma abertura para outras aberturas.

 

V - Um Caso de Possível

 

Há no projeto de Serguilha uma grande passagem de ar que, depois da fratura, faz ventilar os seus possíveis, arejando o clima, fazendo circular um cardume de nomes, estilos, rostos, que através da sua escrita – numa investida desejosa – vão abrindo novas clareiras, tecendo pacientemente o inusitado de uma nova questão: Como a literatura é possível hoje?

 

Serguilha tece na literatura de seu tempo uma cartografia, um mapa da diferença, no qual o que está em jogo é o fluxo da escrita, a sua capacidade de reinvenção. Seu trabalho e árduo e silencioso, por vezes, lança mão de nomes içados das entranhas do fora total, em rostos pouco familiares ao grande público, mas com uma potência criativa extraordinária. A partir desse momento, sua linguagem realmente acena para nós, e a um só tempo sua obra acena para a literatura; o que quer dizer isso? Quer dizer que a obra interpela a literatura, lhe dá garantias, impõe – a si mesma – determinadas saídas que provam – a si e aos outros – que essa escolha é uma opção pela Literatura.    

 

Nesta trilha, Serguilha nos possibilita um passeio por entre algumas expressões do contemporâneo, num percurso desterritorializante através do qual percebemos ritmos diferentes e sentimos pulsar a força do estilo; e nos apresenta uma experiência generosa que vai, de um nome a outro, desvelando uma miríade de forças, deixando evidente que o que mais deseja é compartilhar desse bloco de possível.

 

E nessa direção segue: pelas aberturas, sombras e desvios de cada escrita, mergulhando nesse imenso de vozes sussurrantes, se enredando pelo aberto do seu ressoar, se espraiando no intenso dessa comunidade, desaparecendo na sua sombra. E então a questão se fecha: a literatura só é possível na superação, no contínuo exercício do refazer-se.

 

VI - Uma Questão de Outro Tipo

 

E para nós leitores, testemunhas mudas, no instante dessa experiência – à leitura da obra de Luiz Serguilha – uma outra questão se abre: em que consiste a leitura desta obra?  A obra, no instante em que é lida, torna-se soberana, edifica o seu próprio tempo. O leitor não tem saídas.  Mas, paradoxalmente, à medida que lê, o leitor se afasta dela forjando seus próprios pensamentos, como diz Barthes:“ler com a cabeça erguida”9. Contudo, esse afastamento, ao contrário de enfraquecê-la, a potencializa, pois esses pensamentos não são puros, estão contaminados pelos rastros da obra, que se espalha pelo corpo do leitor em uma velocidade que não começa e nem acaba nunca; movimento que o arrasta à solidão e o entrega ao interminável.

 

NOTAS

1              BLANCHOT, Maurice. L’Écriture du Désastre. Paris, 1980: Galimmard, p. 12

2              BATAILLE, Georges. A Literatura e o Mal. Porto Alegre: LPM, 1989, p. 9

3              PELBART, Peter Pál. O tempo Não Reconciliado. São Paulo: Perspectiva, 2007, p.105

4              DELEUZE, Gilles. Crítica e Clinica. São Paulo: Editora 34, 1997, p. 122-129.

5              LINS, Daniel. Como Dizer o Indizível - Cultura e Subjetividade. São Paulo: Papirus, 1997, p. 70.

6              GIL, José. O Imperceptível Devir da Imanência - Sobre a Filosofia de Gilles Deleuze. Lisboa: Relógio D’Água, 2008, p. 184.

7              FOUCAULT, Michel. Préface à la transgression. Critique, n. 195-196, p. 751-769,août-sept. 1963a.

8              LINS, Daniel. Antonin Artaud - O Artesão do Corpo Sem Órgão. São Paulo: Relume Dumará, 1999, p.42

9              Em O Rumor da Língua, no capítulo ESCREVER A LÍNGUA, Barthes [fortalecendo esse entendimento] nos diz: Nunca lhe ocorreu, ao ler um livro, interromper com freqüência a leitura, não por desinteresse, mas ao contrário, por fluxo de idéias, excitações, associações? Numa palavra, nunca lhe ocorreu ler levantando a cabeça? É essa leitura, ao mesmo tempo inrrespeitosa, pois que corta o texto, e apaixonada, pois que a ele volta e dele se nutre, que tentei escrever. p. 26

 

 

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Nilson Oliveira [Belém / PA] é editor da revista Polichinello; autor de Apenas Blanchot (org), [Pazulin, 2008]; A Outra Morte de Haroldo Maranhão [IAP, 2006]

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