ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

OUVINDO POEMAS, ARMANDO MUNDOS

 

Mauro Gama

 

 

Audito vem do latim audire, ouvir, e se traduz por algo como “ouço com freqüência”, ainda que o verbo ‘auditar’, em português, já se restrinja ao contexto da contabilidade, que mais vê, ou não, do que ouve. No título em questão, a palavra se condensa essencialmente, em nosso tempo, a partir dos meios de perquirição dos significantes poéticos por parte de seu agente, o artista da palavra. É ele, assim, o alquimista da audição, capaz de transfundir os sons e suas relações em significado poético. Para o poeta Flávio Castro, o título adquire caráter a um tempo mágico e prático. Flávio não escreve versos. E dificilmente se dirá que escreve poemas: reúne, funde, cola, “ouve” e registra os fragmentos de poesia que destila (este é o verbo) de seu intenso convívio com os seres e as coisas, a cidade, o mundo, a natureza. Quem sabe ele temesse que, sem juntar os textos de “Verve”, “Iluminuras” e “Cine-urbano” (as três divisões do livro) sob esse título geral de Audito, que reafirma os seres e as coisas em sua escala sonora, todos os traços de seu sistema poético, e células, poros, cores, sabores, ecos, aromas se dispersassem, regressassem ao caos, aos elementos originais.

Em tempo de confissões penosas, de invasão do espaço poético por todo tipo de enredo íntimo, de escribas tão só atentos a seus próprios umbigos, bagos, canais, esfíncteres, prepúcios, Castro produz uma poética rigorosamente impessoal, de captação da existência material em partículas vivas, “flagrantes indiretos” dos quais opera como filtro, catalizador, transpositor verbal, mentor estético, e criador, a partir daí, de novas estruturas e substâncias semânticas. Nesse sentido, lembra o genial austríaco Georg Trakl, poeta de um lúgubre paisagismo expressionista e como que “involuntário” (como o que diz Claudel de Rimbaud: “sa pensée s’échappe malgré lui”). Entre seus ascendentes, está mais perto de Trakl, a meu ver, do que desse mesmo Rimbaud, de quem herdou, de algum modo, a “alchimie du verbe” (“J’écrivais des silences, des nuits, je notais l’inexprimable. Je fixais des vertiges.”), e a índole às vezes surreal de suas imagens, que freqüentemente têm a ver com o universo das Illuminations.

            Mas também há, em Flávio Castro, um profundo investimento mallarmaico. Assim como não se apreende, em sua escrita, nenhuma presença ou ressonância de  mestre brasileiro ou de língua portuguesa (salvo, talvez, um remoto parentesco com o primeiro João Cabral, de Pedra do sono), observa-se em sua conduta uma obsessão característica de Mallarmé, a da essencialidade do texto poético, que concentraria, em significados polivalentes e de complexa elaboração, o triunfo sobre o contingente, e sobre o episódico, o temático, o “desperdício” do prosaico. E Castro, nesse campo, é antes de tudo um poeta-inventor, daquela modalidade de que Pound diz “who found a new process, or whose extant work gives us the first known example of a process.” Pois ele gera novas palavras (como os substantivos “gasfixia”, “euterônimo”, “demonianjo”, “desrosto”, “quasáspero”, ou como os adjetivos “trépidos”, “alviglauco”), muda as categorias gramaticais (“centelhos sóis”, “concúbinos cubículos”, “aglútino silêncio”, “ôndulo horizonte”, “fúrio céu”, “víscero verde”, “ânsio flanco”), altera o gênero, o número dos nomes, quase sempre sinestésico, polissêmico, aglutinando, seccionando, superpondo linhas e sensações fragmentárias, como se trouxesse para o papel, e para a comunidade das palavras, um tanto da arte de Marcel Duchamp, aquela “désarticulation des objets et [...] le mouvement appartenant à leurs fragments isolés” (Hans L.C. Jaffé) não para obter uma ordem nova, mas o convívio possível, a que não falta o senso trágico e, às vezes, o sentido litúrgico, o toque da transcendência.

            Esse também é um aspecto instigante. Alguns anos atrás, um dos poetas deste país fez uma de profissão de fé contra a transcendência. Como se dissesse algo de novo ou arrojado, declarou-se um artista do cotidiano imediato, do aqui e agora, da estrita existência material. A atitude tão-somente traz à tona um mecanismo auto-regulador, de ilusionismo irrecusável. Pois sem alguma expectativa de transcendência – nem que seja só no trato sensorial, ou no da temporalidade, ou no de qualquer superação histórica ou geográfica – ninguém escreve, ninguém cria, ninguém sequer teria ingressado na embaraçosa condição humana. Não nos adianta querer “descomplicar”. O que os artistas têm mostrado é que é melhor, e mais enriquecedor, assumir essa complexidade. O salto de Flávio Castro, que em Audito deve estar só no início do trajeto, é o de alguém que não rejeita nenhuma das nossas dimensões. Incorpora todas, e seu trabalho mais difícil é precisamente lhes conferir uma disciplina na página em branco, uma nova unidade transitória e espacial nos quadros de palavras, linhas, poemas.

A presença estrutural de Duchamp não é a única, no plano dos componentes  plástico-visuais. Se sua expressão, como a do próprio Duchamp, tem um fundo cubista, ganha também, como sugerimos, uma perspectiva neo-surrealista, agora em significados que, se transcendem o real concreto, o fazem sob uma ampla interferência do onírico em “centelhos sóis temporários”, “homempalhado”, “prédios cadavéricos”, “tropel trôpego encurta curvas”, “azougue espelho braille”, “gesto insano amplia espelho incendiado”, “órbita monóloga da lua alcoólatra”, “chuva turva túrgida turba”, “sísifo crepúsculo”, “bárbaro anjo engaiolado” e tantos outros momentos. E é graças, digamos, a esse contraponto entre o vivido e o sonhado, entre o consciente e o inconsciente, que o texto de Flávio Castro se faz energicamente desconstrutivo da língua canônica e mistificadora, conquistando o que Roland Barthes chamaria de sa volontée de jouissance: pela qual “fait vaciller les assises historiques, culturelles, psycologiques du lecteur”.

Liberta-se, desse modo, dos “stéréotypes imposés par la culture petite-bourgeoise” (ainda Barthes) e, especialmente, da cultura de massa, para tentar reencontrar, no cerne da linguagem, na sua própria tessitura, o legítimo lugar da poesia, um lugar ao mesmo tempo lúdico e erótico, verbal e corporal. O autor contraria, assim, um malentendido de muita literatura do nosso tempo: o do esforço de ir ao encontro da cultura de massa, de citá-la, de anexá-la, ou de mergulhar dentro dela (pior do que vender a alma ao diabo, algo como querer garimpar no meio de uma avalanche): somente de encontro a ela a criação estética sobrevive, e se renova. Como Alexandre Guarnieri, outro notável poeta de sua geração, Flávio Castro pesquisa, se entrega a sério e inventa, aos poucos, a forma de sua comunicação. A forma a partir da qual, como assinala Mário Faustino, “o poeta é, antes de mais nada, um homem que sente na própria carne e até aos ossos a necessidade de experimentar (e não apenas de observar) o universo, modificando este, obrigando-o a reagir às palavras com que o poeta o ataca, celebra ou lamenta”. Até aqui, como diz o mesmo crítico (sobre o início de Mallarmé), são “exercícios, toda uma preparação métódica, ascética, do instrumento”[...].

Mas exercícios que já têm organicidade, que formam uma pequena constelação de microcosmos pessoais, aqui e ali capazes de irradiar um alto impacto existencial, produto, talvez, de certa oscilação entre um pessimismo fisiológico e negativista (em relação ao mundo, às coisas e seres circunstantes) e a busca, entre mística e intelectual, de uma solução esteticamente decisiva. Castro, nesse conflito (que sintetiza tantos conflitos da atualidade), gera por vezes imagens de angústia extrema, de horror à ameaça de dissolução do ego (reiterado em múltiplos espelhos, luzes – e sombras - , aparições fantasmagóricas, objetos cortantes), com algumas raras notações na primeira pessoa, como “sentado no abismo mastigo minha sombra”, e uma ousada voragem de contrastes entre a frágil matéria viva e a infinitude. Em alguns casos, numa só linha de sediciosas fulgurações expressivas, como “Plexo fecunda placenta oceânica”.

Num contexto brasileiro em que a literatura, em geral, só aparece como objeto de discussões estéreis; em que as editoras, em geral, só cuidam da aparência do livro (tornando-o, assim, ainda mais caro) e da contabilidade de seus lucros; em que o crime e a corrupção arruínam a vida urbana e social, Flávio Castro, no vértice de uma tradição dos poetas verdadeiros (razoavelmente imunes aos atrativos e às canalhices do meio), trabalha absolutamente sozinho, e inova. Audito é um aprendizado de enigmas, que anuncia novos caminhos, e mundos. Essa possibilidade é o essencial. Como em João Cabral: “Ó face sonhada/de um silêncio de lua/na noite da lâmpada/pressinto a tua.”MG

 

 

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Mauro Gama nasceu em 1938, no Rio de Janeiro (RJ). É poeta, tradutor e crítico literário. Foi redator em várias revistas, jornais, enciclopédias e dicionários. Traduziu sonetos de Michelangelo para Ateliê Editorial.

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