ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

SEBASTIÃO ALBA OU O POETA TOTAL

 

Luís Costa

 

 

 

 

 

 

Quando se ama o abismo
é preciso ter asas

 

Frederico Nietzsche

                                                          

                   

                                                  1

 

 

    Ouvi falar pela primeira vez de Sebastião Alba no Jornal de Letras. Não me recordo agora qual o número desse jornal, porém sei que foi em 2000. Um artigo com o título “ A morte de um poeta à margem “, anunciava a sua morte recente (fora atropelado mortalmente por uma motorizada), e falava um pouco sobre o poeta, e da sua obra.

Este artigo abria com as seguintes palavras, que muito me impressionaram e que por isso, na altura, transcrevi para um caderno de apontamentos:

 

Poucos dias depois de ter revisto as primeiras provas de uma antologia poética *

 – organizada pelo seu amigo, e também poeta, Vergílio Alberto Vieira - , morreu atropelado na sua terra, em Braga, onde vivia como um vagabundo, Sebastião Alba, 60 anos. Dias antes deixara escrito:

 “ Se encontrarem morto “ o teu irmão” Dinis, o espólio é fácil de verificar: dois sapatos, a roupa sobre o corpo e alguns papéis que a polícia não entenderá. “ (1)
 

    Fiquei imediatamente fascinado com aquele homem que optara por uma vida de mendigo ou cigano, libertando-se de todos os laços sociais e fazendo da poesia o seu pão de cada dia, tal como Rimbaud, embora ao contrário deste, nunca abandonando a escrita. Pois, como Maria de Santa Cruz escreve no seu prefácio “ Prelúdio e Advertência “ ao livro “Albas “:

Sebastião Alba, lajeando as sílabas, como um romeiro seguia pensando um poema novo, corrigindo os que “ salvara “ na memória durante anos, rasurando ou eliminando, em sucessivas versões. E, ao chegar a uma casa mais amiga, a primeira coisa que pedia era papel e “ pena “ – como ele continuava a dizer, apreciando-lhes a qualidade - para fixar o que os caminhos ínvios lhe haviam ditado em troca da solidão por que optara. (1)

    Sebastião Alba era um ser materialmente desprendido. Em 1997 é-lhe atribuído o prémio de poesia ITF da cidade de Braga, que aceita. No entanto o dinheiro do prémio, 1500 contos, e os direitos de autor pelos livros editados tiveram o memo fim: as duas filhas.

Numa pequena nota intitulada “ H.H. “, Alba dirigindo-se a Herberto Helder (poeta pelo qual tinha uma grande estima), pede-lhe desculpas por ter aceitado aquele prémio:

 

Herberto sei que recusaria o Prémio Nobel. É de uma coerência total. Perdoe-me por ter aceitado um pequeno prémio; as minhas filhas precisavam de dinheiro. (2)

 

    Quando vim a saber que Sebastião Alba havia vivido em Braga e que por aí andou, anos e anos, deambulando pelas ruas e paragens de autocarro, dormindo ao relento ou no alpendre de uma igreja, pensei que talvez algum dia, causalmente, me tivesse cruzado com ele. Pois na altura do Verão costumava visitar assiduamente Braga. No entanto, quando vi a sua fotografia, não fui capaz de me recordar de algum dia ter visto aquele rosto algures. Ou talvez o tenha visto encostado a uma esquina numa rua qualquer, com uma garrafa na mão, ou dobrado sobre si próprio, ou a tocar harmónica, e até tenha olhado para ele, quem sabe. Mas, seja como for, de entre todos os mendigos que em Braga, ao longo dos anos, eu tenha visto, a minha memória não o consegue distinguir. O que é pena. Pois gostaria, de facto, de o ter conhecido, e de podermos ter saboreado uma cerveja juntos.
 

    Pouco tempo depois de ter lido a notícia da sua morte, cheio de curiosidade, comprei o livro a “Noite Divida “que a Assírio&Alvim, em 1996, havia publicado. Desde então, tornei-me num admirador deste poeta “ à margem “ e da sua poesia. E concordo plenamente com José Craveirinha quando este o qualifica como um dos grandiosos deuses humildes da palavra.


                                                                 2

 

    Sebastião Alba é um poeta da entrega total. Um poeta da liberdade total e dos limites do ser. Tal como o homem, que por opção, se tornou num romeiro ou Manuch (homem livre), liberto de todas as corrente sociais, também o poeta assim o fez. Incondicionalmente ele entrega-se à palavra poética. É um poeta vertical, um poeta de carne e osso. E com um talento fora do comum vai transformando as palavras do dia-a-dia numa linguagem única dentro do panorama da literatura portuguesa. Ou antes da Lusofonia. Visto que Sebastião Alba também é considerado um poeta da negritude e de Moçambique. No entanto é, sobretudo, um poeta da pátria: língua portuguesa.
 

     Em 1996, a Editora Assírio&Alvim publica, por iniciativa de Herberto Helder, o que quer dizer muito, “ A Noite Dividida,” que tenta recuperar o conjunto da sua obra poética, embora incompleta. Referindo-se à edição deste livro, dizia Sebastião Alba o seguinte:

 

Dizem-me que a minha colectânea de poesias já está composta na Assirio&Alvim. Devo isso

(e o subsídio) a grandes poetas portugueses vivos, como Herberto Hélder, que só vi uma vez. Estão a preparar entrevistas. Não comparecerei. O meu despojamento é um processo de deseducação [...] (3)
 

    A arte poética evidenciada nesta antologia que reúne os livros: “ O Ritmo do Presságio “, “ A Noite Dividida “ e o “ Limite Diáfano “, coloca Sebastião Alba numa posição cimeira da poesia portuguesa. No entanto, continua, até aos dias de hoje, a ser um poeta marginal, ou, como muitos preferem dizer, um poeta menor.
Segundo o poeta Rui Knopfli o verbo de Sebastião Alba é um apanágio de muitos poucos poetas. (4) Por sua vez José Craveirinha diz que Sebastião usa a riqueza das palavras como um utensílio precioso mas não artigo de luxo, Sebastião Alba faz uma poesia luxuriante de ternura. (5) É que a poesia é para ele o mesmo que respirar. Por isso a poesia de Sebastião Alba pode ser considerada uma arte dentro da própria arte. O acto poético tem na sua poesia um valor religioso e sacral, porquanto:

Quando escreve descalça-se
à entrada do poema
encurvado cisma, inala
o flato dos fiéis.


Para além disto, o poema também tem um efeito curador e apaziguador pois com

 

o verso insto , instalo o clima,

 amenizando o da região.

  Ao longo de toda a obra poética de Sebastião Alba deparamos com uma linguagem por um lado sóbria, lúcida e decantada, por outro carregada de uma tensão interior, nuclear, mágica e nocturna da qual jorram:

as palavras de ponta e mola
que anavalham
as roçagantes capas
de velhos mestres.


    É exactamente nesta dualidade entre o poema construído a partir de uma forma sóbria, quase mediterrânica, diáfana, que lhe é inerente, e o impulso inicial ou musical que está na sua origem, o ritmo “das palavras de ponta e mola”, que pretende deixar para trás “ os velhos mestres” (encontramo-nos perante uma linguagem original, nova), destruir todas as barreiras que condicionam o indivíduo, que reside, precisamente, a originalidade da poesia de Sebastião Alba. E é também exactamente esta dualidade que a identifica como uma poesia da unidade do Ser.
Ao longo dos seus poemas vamos encontrando muitas passagens que testemunham isto.
Vejamos, como exemplo, o poema o ritmo do presságio:

A tinta das canetas
Reflui de antipatia
E impregnadas, assíduas
Cambam as borrachas
Não há fita de máquina
Que o uso não esmague
O vaivém não ameace
De dessorar os textos
Mas a grafia nada diz
De pausas na cabeça
Vozes inarticuladas
Adensam, durante elas
Uma tempestade
Recôndita
E nubladas carregam-se
As suspensões
Encandeando em nós
O ritmo do presságio


    Este poema fala-nos da constante tensão entre o ritmo do presságio, o ímpeto primeiro que nos leva a escrever poesia e o acto ou processo de a escrever, ou seja de dar uma forma a esse ímpeto ou voz interior. O poema, depois de realizado, já nada nos diz de pausas na cabeça e vozes desarticuladas, nem da sua tensão inicial. Ele é agora uma unidade, unidade essa nascida da luta entre o ritmo primeiro, o caos nubloso, e a forma que no caso de Sebastião é de um estilo sóbrio mas simultaneamente natural.
E é precisamente esta naturalidade da forma e o carácter explosivo da sua intensidade interior, própria daqueles que amam os abismos, que tornam a poesia de Alba tão fascinante.

    Tal como Herberto Helder também Alba tem por hábito reflectir sobre a poesia dentro do próprio poema (isto é o resultado da sua face lúcida.). Em muitos dos seus poemas encontramos essa tendência para a metapoética. Segundo esta metapoética, a poesia nasce sempre da dicotomia entre o eu e o eu, ou seja o mistério ou o obscuro limbo que separa e une estes dois eu. O poeta e o sujeito que escreve, o poeta e o mundo que o rodeia. O poema é para o poeta o resultado da intensidade dessa dialéctica ou disjunção ou seja a anulação de todas as dicotomias entre o eu e o eu e entre o eu e o outro:

As coisas são a sua morada
E há entre mim e mim um escuro limbo
Mas é nessa disjunção o istmo da poesia
Com suas grutas sinfónicas
O mar.

    Num outro poema igualmente de índole metapoética, podemos ler os seguintes versos:

Como os deuses
descreio da inspiração.
Há entre mim e a voz
um convívio silente.


    Embora descrendo da inspiração o poeta não necessita de máscaras, visto que entre ele e a poesia há um convívio que ultrapassa todos os subjectivismos inerentes a essa inspiração.
Esta pureza primária torna o poeta numa espécie de xamane da linguagem, que vai libertando as palavras das prisões do dia- a- dia e de todos os seus conteúdos pejorativos. Ele purifica-se e é ao mesmo tempo um purificador das palavras.
Por isso, toda e qualquer exegese destes poemas não será mais do que restringir-lhe a poesia se tentarmos situá-la nos calabouços dos clássicos lugares-comuns de como a poesia é; como a poesia deve ou deveria de ser, ou como a poesia não é. ( 6 )
Longe de todos os intelectualismos pessoanos, o poeta não se liga às coisas por meio de máscaras, ou profundas reflexões estéticas, mas sim por um processo de ligação cósmica.
O silêncio anterior ou musical, ainda antes de qualquer rasgo ou snobismo intelectual, ou de inspiração, é que o leva a poetar. As palavras buscam, aqui, libertas de toda a exegese, a sua essência, ou seja, o silêncio:

Palavras só as mais altas, digo,
As que põem ao teu alcance o silêncio.


    Máscara e homem são dois lados da mesma moeda. Sem uma não poderia existir a outra. E por isso mesmo, no universo poético, não existem individualmente, são uma pura invenção do intelectual. O silêncio é a base do poema, a unidade dos dois lados. Dentro dele a máscara e o eu subjectivo são anulados ou antes transfigurados num corpo cósmico. O poeta tem aqui uma função sacerdotal: ele é o portador das palavras, que antes foram um silêncio musical. Estas palavras que agora escreve são e não são a sua voz. Por isso a sua voz é uma voz sempre clara e objectiva.
    Como se se encontrasse num estado de transe ou inconsciente, ele fala por si, em nome da comunidade e em nome de todos: animais, homens, rios, deuses, árvores etc. Pois a linguagem do silêncio, linguagem, por excelência, poética é universal.

    Tal como no surrealismo esta poética encontra-se muito perto do delírio e assim liberta de quaisquer preconceitos ideológicos ou estéticos. Encontramo-nos no universo surrealizante da pureza inicial em que a forma e o ritmo musical se constituem mutuamente:

Foi assim
Todo o mar que eu via
Se precipitou logo no meu coração
Que é de sal

E os peixes cristalizaram
Com olhos mortos
Para as suas manhãs refractadas

Escutando bem
Ao pé das estátuas
Música de uma fanada melancolia


  A poesia é neste caso o encontro com a totalidade genésica, o princípio musical (dionisíaco) das coisas, a música de uma fanada melancolia. Música de uma fanada melancolia porque a música vem da essência das coisas, mas essa essência jamais conseguirá ser alcançada racionalmente pelo homem, ela é o mistério, por isso a poesia é a voz do indizível, a fanada melancolia que revela uma realidade só possível de ser entrevista pela sensibilidade poética.

 

 Não devemos esquecer que Sebastião era um ser extremamente musical:

 

O Dinis (nome civil de Alba) tinha um ouvido excelente, uma óptima voz. Tocava os clássicos na sua harmónica, sempre de ouvido. Cantava canções mexicanas, napolitanas, da Andaluzia, e baladas de Coimbra. A sua vocação maior teria sido a música se não tivesse nascido e não fizesse parte de um país à mingua que desperdiça valores [... ] ( 7 )

 

     Na poesia de Sebastião Alba, como em toda a verdadeira poesia, há algo de primitivo e arcaico. É a revolta do romero (Ser) contra uma sociedade sedentária e consumista sob a ditadura do ter. Aqui só a liberdade conta. A liberdade do homem e das palavras. E por isso, como José Craveirinha bem nota:
Sebastião faz as palavras não terem outra pátria que não seja o país sem fronteiras do poema. (8)
E por isso, igualmente, todas as palavras são bem-vindas, mesmo os clichés:

Deixa entrar no poema
Alguns clichés.

Submetidos à experiência inefável,
Sua carga (eléctrica?)
Escoar-se-á.


    Contudo para Sebastião Alba a poesia não é só o domínio da língua, até porque ela é indominável (9), ela é uma verdadeira voz humanista, que ultrapassa todas as barreiras étnicas, religiosas, morais e sociais. Ela é cósmica e global, ela é a ternura pelos mais fracos: as crianças, as mulheres (tão vulneráveis), os velhos já senis. E os pobres animais bravios.
(10) Neste universo o poeta afirma-se livre, só súbdito do Ser, ele comunga da unidade cósmica, e descobre, deste modo, a sua capacidade de vidente:

Súbdito só de quem não reina,
aqui louvo os animais.
Há entre mim e eles, uma funda
relação de videntes:
as paisagens que fendem
e a minha, sepulta,
perfazem um mesmo habitat.


    Esta poesia actua como uma aliança purificadora. Pois que ela recebe todos em seu templo. Ela é do domínio da igualdade e da liberdade total. Ela é a voz da revolta contra um mundo cada vez mais fútil e decadente, onde o negócio lucrativo se vai apoderando dos templos dos deuses e de tudo quanto nos era sagrado. Ela limpa os templos de toda a sua sujidade e repõe, assim, o lado sagrado das coisas. Ela é, acima de tudo, a voz do romeiro ou Manuch. A voz do homem livre, para além de bem e mal que assumiu a condição de ser despojado e desprendido, própria dos espíritos que se dão à arte o mesmo é dizer à humanidade, sem esperar outro retorno que não seja de ordem espiritual. (11) Voz que só pode ter como sua pátria a própria poesia:

Deito-me na rede atada
Aos pináculos do fuso horário.

Tivessem meus dias um dono
ao alcance da voz
que por mim cora; sem pejo
o adularia.

Este o sulco em minha mão
que enruga a testa das ciganas:
não vai mais longe o seu cavalo cego


************************************************************************

Notas

1 – Jornal de Letras, no ano 2000. * O autor refere-se e aqui à antologia uma “Pedra Ao Lado Da Evidência “, publicada em 2000, pela, Porto, Campo das Letras
1- Sebastião Alba, “ Albas “, Biblioteca Primeiras Pessoas – Vol. 2., Edições Quasi, 1.a
Edição, Outubro 2003, pág. 8
2)- ibidem, pág. 229

3) ibidem, pág. 173

4) “ O Poeta Vagabundo, Sebastião Alba “, Fernando Pinheiro, http://www.macua.org/livros/sebalba.html

5) “ Posfácio “, José Craveirinha – 1973, http://www.macua.org/livros/sebalba.html
6) ibidem
7) Sebastião Alba, “ Albas “, Biblioteca Primeiras Pessoas – Vol. 2., Edições Quasi, 1.a
Edição, Outubro 2003, pág. 15
8)  “ Posfácio “, José Craveirinha – 1973, http://www.macua.org/livros/sebalba.html

9) ) Sebastião Alba, “ Albas “, Biblioteca Primeiras Pessoas – Vol. 2., Edições Quasi, 1.a
Edição, Outubro 2003, pág. 39
10) ibidem

11) “ O poeta Vagabundo, Sebastião Alba “, Fernando Pinheiro, http://www.macua.org/livros/sebalba.html

Nota final:

 Todos os poemas e excertos de poemas aqui usados foram extraídos do livro:
“ A Noite Dividida “, Sebastião Alba, Assírio&Alvim, 1996.

 

                                                       * * *

 

PEQUENA NOTA BIOGRÁFICA E 7 POEMAS DE SEBASTIÃO ALBA

 

 

NOTA BIOGRÁFICA 

 

Sebastião Alba (de seu nome verdadeiro Dinis Carneiro Gonçalves) nasce a 11 de Março de 1940 em Braga. Com apenas oito anos parte para Moçambique, onde vive durante os próximos 35 anos. É aí que publica os seus primeiros poemas e livros.

Em Outubro de 1974, Sebastião Alba vê publicado o livro “ o Ritmo do Presságio “ pela Livraria Académica de Lourenço Marques, com um posfácio de José Craveirinha.

Em Moçambique, Sebastião Alba foi desertor do exército português, esteve ligado à Frelimo e foi preso.

Em 1983 desiludido com a situação política de Moçambique, regressa com a sua mulher e as duas filhas, a Portugal, Braga, sua terra natal.

Em 1988, depois de uma breve estadia em Lisboa, volta a Braga. Separa-se da sua mulher. Fuma muito e bebe cada vez mais. Depois de várias tentativas de desintoxicação, passa a viver à margem: Torna-se num sem abrigo (por opção), deambulando pelas ruas e dormindo por onde calha, num banco de jardim, no alpendre de uma igreja etc. No entanto nunca deixa de escrever e o forte alcoolismo não o impede mesmo de ir preparando e publicando (com a ajuda de amigos) os seus poemas.

A 15 de Outubro de 2000, de manhã muito cedo, Sebastião Alba é atropelado mortalmente por uma motorizada.

 

 

7 POEMAS

 

 

 

COMO OS OUTROS

 

Como os outros discípulo da noite

frente ao seu quadro negro

que é exterior à música

dispo o reflexo Sou um

e baço

 

Dou-me as mãos na estreita

Passagem dos dias

Pelo café da cidade adoptiva

Os passos discordando

Mesmo entre si

 

As coisas são a sua morada

E há entre mim e mim um escuro limbo

Mas é nessa disjunção o istmo da poesia

Com suas grutas sinfónicas

No mar

 

 

PALAVRAS DE PONTA E MOLA

 

Palavras de ponta e mola

que anavalham

as roçagantes capas

de velhos mestres

de grácil esgrima

oleadas lâminas

nos umbrais dos becos

rasgando rápidas

a embuçada desumanidade

de quem passa

sórdidas, surtas

a reflectir o âmago

das sombras

Navalhas que alvejam

fantasmas de forasteiros

em busca de más mulheres

com terços taciturnos

Ruelas em roda

pedras de periferia

sevilhanas palavras

De ponta e mola

 

 

QUANDO NASCEMOS ENTRAMOS

 

Quando nascemos entramos

no nome pela voz dos pais:

- Dinis Albano...

Íntima e sonora identidade.

Chamam-me e volto

a cabeça, dissuadido.

Na voz duma mulher

os nomes são

interiores a nós.

( Na dum polícia, desprendem-se

como se apenas

os envergássemos).

Um amigo dirige-se-nos;

e as letras do nome

- tu?!.. – correm de doçura.

Um dia, o nome,

por capricho duma veia ou dum fonema,

ocultamente, esvai-nos.

E por trás dele,

Alheados dos ritos,

nem sabemos da sua

cessação.

 

 

NÃO SOU ANTERIOR À ESCOLHA

ou nexo do ofício

Nada em mim começou por um acorde

 

Escrevo com saliva

e a fuligem da noite

no meio da mobília

inarredável

 

atento à efusão

da névoa na sala

 

 

PÉGASO

 

À saída do estádio

pressentimos na brisa

a chegada dos signos da noite

 

Indeciso, o cavalo

transpõe o fosso do horizonte,

sob a lua e um alto

expoente de pó

 

Inverte-se o casco percussor

à beira da fonte do Hélicon,

e o cavalo grego deita-se

para morrer

 

Um frémito distende-lhe as asas;

no olhar anterior ao mito

aflui agora

a mais pura instância

das lágrimas

 

 

SÚBDITO SÓ DE QUEM NÃO REINA;

Aqui louvo os animais.

Há, entre mim e  eles, uma  funda

relação de videntes:

As paisagens que fendem

e a minha, sepulta,

perfazem um mesmo habitat.

Desde que os não sondo,

fez-se luz em nosso convívio.

O ar inicial

que ensaiava, ícárico,

nas bolas de sabão,

mas não atina com o vácuo

da cidade, vem-me

dos seus pulmões arborescentes.

Alheios à sua pele

na osmose dos textos,

ignoram que nas águas

por correr, desta página,

cruzam, saudando-se,

o “ Beagle “ e a Arca de Noé.

 

 

QUE ILUSÓRIA BELEZA

raia

um verso nado

e, dúplice, na ausência de ambos,

a cama estática.

 

Como dos deuses, descreio

da inspiração;

entre mim e a voz,

há um convívio silente.

 

Quando da avenida,

o alto repuxo de som

inunda a flat,

volvo eu à secura

íntima da água

 

 

NOTA: estes poemas foram transcritos do livro de Sebastião Alba Noite dividida (Assirio&Alvim, 1996).

 

 

*

 

L. ( Luís ) C. ( Costa ) nasceu em 1964 em Carregal do Sal, distrito de Viseu. É aí que passa a maior parte da sua juventude. Tem o seu primeiro contacto com a poesia por meio de Antero de Quental, poeta/ filósofo, pelo qual nutre um amor de irmão espiritual. A partir dai não mais parou de escrever.  Depois de passar três anos num internato católico, em Viseu, descontente com o sistema de ensino, resolve abandonar o liceu. No entanto nunca abandona o estudo, sempre auto didáctico. Aprende o Alemão, aprofunda os seus conhecimentos de francês etc.

L. C. tem vindo a editar, regularmente, artigos (ensaios) e poemas no site-revista: TRIPLOV da escritora Estela Guedes e publicou também já três ensaios na revista digital brasileira do poeta Floriano Martins: Agulha, bem como alguns poemas na revista digital da escritora Valéria Elk: Conexão Maringá, e tem igualmente editado alguns artigos num jornal regional. Até agora ainda não se encontra editado em livro por que assim o quis (já teve oportunidade de publicar), visto que considera ainda não estar preparado para uma tal “ aventura “. No entanto acredita que num futuro próximo isso possa vir a acontecer.

E-mail: L.costa@web.de

*

 

retornar <<<

[ ZUNÁI- 2003 - 2009 ]