ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

JORGE MELÍCIAS
OU A INTENSIDADE DA DISRUPÇÃO

 

Luís Costa

 

Logo a uma primeira leitura descobre-se que a poesia de Jorge Melícias é uma poesia rigorosa, de uma linguagem cuidada, sim, um trabalho de linguagem, experiência da linguagem, a linguagem como corpo autónomo, linguagem criadora da própria realidade.

 

E, se nesta poesia não se faz uso de ritmos tradicionais, podemos no entanto dizer que na sua estrutura física ela nos lembra muitas vezes uma escultura grega, ou até haverá nela um certo rasgo horaciano, pois que a sua exactidão rítmica, a clareza da dicção, o fluir, enfim, o rigor da construção são exemplares:

 

As crianças amanhecem a prumo,

as cabeças brilhando de uma loucura húmida.

 

Pelos seus pulsos perpassa a fluidez do mundo

e há um braço de silêncio.

 

Muitas morrerão na longa travessia,

mas nem uma pedra ascenderá à garganta.


Mas se esta poesia nos remete para os princípios formais claros, “ clássicos “, com todo o rigor que lhe é inerente, já no que diz respeito à linguagem aqui usada, embora sendo uma linguagem cuidada, muito cuidada, encontra-se em perfeita disjunção com a forma. Pois que há de facto entre o exterior, a forma comedida e límpida (positiva) e o interior, a linguagem violenta (“Há a boca pisada de pedras”), brutal, explosiva (“Acredito no fogo/ e nas mãos que o servem/ brutais e definitivas como as pedras”), de imagens fortes, densas (“A mulher fechou-se no quarto/ com a noite entre as mãos.”), obsessivas, bruscas, muitas vezes estranhas, vibrantes (“As crianças amanhecem a prumo,”), bem como o uso de vocábulos raros (ignívaga, insanes, gárrulos, esquírolas, múrias, vurmo, coaxial,etc.), diremos até barrocos, de aspectos negativos (“Muitas morrerão na longa travessia, mas nem uma pedra ascenderá à garganta.”;É poderosa a casa/ curvada sobre a minha morte.”). Uma disrupção. E nisto podemos dizer que Melícias se encontra, pesando toda a sua originalidade, próximo do expressionismo alemão. E a violência das suas imagens fazem muitas vezes lembrar a estética da brutalidade clínica de um Gottfried Benn, sobretudo, em Morgue.

 

Alguns exemplos:


“Risco na carne o caminho do relâmpago.”

(…)

“Abro o corpo ao último punhal

que o iluminou.”

(…)

 

ou:

 

“Adestramos na carne

os estrepes do horror.”

(…)

e ainda:

 

(…)

“E a brutal inflorescência

dos ferros no dorso.”


e também:

 

(…)

“Há uma luz doente sobre a mesa,

um pulmão de pedra no centro.

 

E eu mordo a própria boca,”

(...)

 

ou:

 (…)

“E onde a febre tange

a esquadria

 

radicarei a chacina.”


Outros exemplos poderíamos aqui apontar. Mas é o próprio Melícias que testemunha a influência do expressionismo alemão na sua poesia, quando, numa entrevista concedida ao poeta valter hugo mãe, diz o seguinte:

 

O expressionismo alemão, por exemplo, foi um movimento que me marcou profundamente. Ainda hoje marca. Não apenas a nível literário (Gottfried Benn é dos escritores mais poderosos que já li até hoje) mas também a nível cinematográfico. Vi pela primeira O gabinete do Dr. Caligari, de Robert Wiene, há muitos anos atrás, quando frequentei História e Estética do Cinema.

 

Podemos igualmente reparar que nos primeiros livros de Melícias, como em a luz nos pulmões e iniciação ao remorso, ainda encontramos certas sombras herbertianas. O que é natural, pois grande parte dos poetas contemporâneos portugueses vêem em Herberto Helder uma espécie de modelo. Nós, no entanto, não acreditamos que Melícias veja em Herberto um modelo, mas naturalmente que, como grande parte dos poetas da sua geração, o leu. Os seguintes versos, pesando toda a originalidade, do primeiro livro, onde o corpus poético é bem mais longo e “vasto” do que nos seguintes, demonstram um pouco isso:

 

Procurou de entre todos aquele que mais amava.

Fê-lo em silêncio, afagando os cães

que envelheciam aos seus pés,

enquanto as mulheres iam cerzindo nos gestos

um rosário de sal.

 

Onde está o meu discipulo dilecto

que o não vejo, inquiriu.

Um homem lembrou-lhe então que partira

há muitas luas atrás,

 

carregando aos ombros um navio em chamas.

 

Desde esse dia a memória

não mais deixou de rondar a casa.

 

E o velho recolheu-se no jardim onde as estátuas

subiam às árvores com os olhos tão próximos da loucura.

 

Todavia, Jorge Melícias, como poeta inteligente que é, ao contrário de muitos outros, embora começando com um certo tom herbertiano (que um outro poeta ao falar de Herberto chamava de “obscura-claridade”) conseguiu fazer dessa “influência” algo de novo e original, evoluindo memo no sentido oposto ao de um Herberto Helder. Como o próprio Melícias repara, se a poesia de Herberto “explode”, a dele, por sua vez, “implode”. De facto a grande originalidade do “discurso” meliciano consiste, a nosso ver, para além de se apoiar no expressionismo e na temática da crueldade, sobretudo, na recorrência ao oximoro e na redução do discurso, ou seja, no uso de uma linguagem concisa e sintética, “substantiva, elíptica, fragmentária, seca e precisa” (como bem repara o poeta brasileiro Claudio Daniel) que é, precisamente, o oposto do largo, vasto e órfico discurso de Herberto Helder. Hoje podemos dizer que, goste-se dela ou não, a poética de Melícias é uma das mais raras e originais dentro da poesia contemporânea portuguesa. Sem dúvida.

 

Mais atrás dizíamos existir na poesia de Jorge Melícias uma disrupção. Disrupção? Mas afinal o que vem a ser isso? Onde fomos buscar este vocábulo?

 

disrupção é precisamente o título do último livro de Jorge Melícias, editado em 2009, há bem pouco tempo, pela editora Cosmorama, uma recolha que reúne a sua obra poética de dez anos e onde se encontra incluído o livro inédito: agma (2008)

No início desta antologia, deparamos com uma nota extraída do Grande Dicionário da Língua Portuguesa, Sociedade de Língua Portuguesa, em que nos é explicitado o significado do vocábulo que dá o título à obra. Vejamos:

 

Disrupção: (s.f) Salto de uma faísca entre dois corpos carregados de electricidade. Diz-se da descarga eléctrica súbita que provoca o desaparecimento da maior parte da energia acumulada. Acto de romper.

 

Ora, a nosso ver, este título, este vocábulo, anuncia-nos precisamente o que devemos esperar desta poesia. Isto é, este título será em si uma poética. Pois toda a poesia de Jorge Melícias, desde o primeiro livro até ao último, é o resultado dessa disrupção: por um lado a forma (como já acima fizemos notar) sempre rigorosa e a linguagem cuidada, substantiva, lacónica, por outro as imagens fortes, violentas, estranhas, herméticas, quase surreais, muitas vezes cruéis. É deste atrito violento e cruel (que pode ser extensivo, ou seja, que poderá ser visto igualmente a partir do aspecto dual (dialéctico): mundo exterior (forma) – mundo interior (eu poético); homem – cosmos; luz – trevas; feminino – masculino etc. e que, como podemos ler num dos poemas, será um “Trabalho de crueldade”) que o poema desponta, se torna corpo vivo. Quer dizer que a criação ou escrita do poema é um acto violento, nascido da disjunção, ou seja, do atrito, de dois corpos ou pólos contrários, um exterior outro interior, um negativo outro positivo: uma rotura, que se dá entre ambos, um “acto de romper”, romper que aqui também pode ser compreendido como quebrar ou estilhaçar. Já que do embate violento de dois corpos podem resultar estilhaços. Portanto, o poema, aquilo que o poeta procura atingir, será o resultado desses estilhaços, de uma realidade estilhaçada à procura da unidade. E isto é também o que podemos compreender das seguintes palavras, que passamos a transcrever, e que nos foram dirigidas por escrito pelo próprio poeta:

 

[…] acredito mais numa totalidade, sim, mas fragmentada, estilhaçada, nunca completa.

 

É igualmente desta rotura, deste acto de romper, estilhaçar, isto é, da potência destrutivo-construtiva, da sua violência, que a beleza nasce:

 

Para mim a beleza está, inextrincavelmente, ligada à violência. Uma violência irrompente, fundadora, tão latente quanto recidiva.


Contudo o estilhaçamento de que temos vindo a falar e que resulta do atrito violento entre corpos ou objectos, entre o exterior e o interior, não se perde, graças à exactidão, ao claro rigor da forma e da linguagem, a este trabalho minucioso, de ourives, entre forma e linguagem, a esta poderosa construção (que tem como alicerces a imolação do eu, a identidade: “É poderosa a casa / curvada sobre a minha morte./”, pois toda a verdadeira criação poética resulta desta imolação), sem desregramentos extravasantes, bem pelo contrário, ele mantém-se coeso e uno porquanto:


Atravessa o sangue,

transborda para dentro.

 

Quer dizer, graças a esta técnica, o equilíbrio entre o sair: “atravessa o sangue” (fluir, movimento, transformação) e o entrar, “ transborda para dentro” (permanecer, unidade e imobilidade) estabiliza-se, formando assim um círculo de estilhaços, ou fragmentos, um movimento fechado em si, como uma espécie de roda de bicicleta, onde os raios serão os tais estilhaços que, embora sendo estilhaços, são igualmente parte integrante da unidade, pois que permitem que a roda exista como um todo, ou seja, unidade: ligação entre o eixo e o aro periférico, relação entre movimento e imobilidade (graças ao carácter estático (consistência) desta compósita, a roda pode ser movimentada.)  E se repararmos bem descobriremos igualmente que o aro periférico  e o eixo são, tal como os raios, fragmentos da totalidade, isto é, sem estas peças (fragmentos) a roda não poderia existir. E eis um poema que formalmente exemplifica o que acabámos de dizer:

 

Caminharei entre os homens

com um punção virado ao medo.

 

As meninges

recrudescendo nas navalhas

como um apostema.

 

Todo o metal sitiado

pela injunção das ínguas.


Este poema é constituído por três estrofes: duas de dois versos e uma de três. Se analisarmos melhor a estrutura desta composição, reparamos que cada uma das estrofes pode ser considerada um fragmento ou estilhaço. Pois que não há propriamente uma conexão entre elas. A verdade é que cada uma delas poderia existir por si mesma, isto é, independentemente umas das outras.

 

A técnica aqui usada (não só aqui mas em muitos outros poemas) foi a de um ajuntamento (neste caso tríplice) de três imagens: o homem que caminha / as meninges nas navalhas/ o metal sitiado.

 

E embora, se, como já dissemos, à luz da análise descobrimos de facto que este poema é um poema feito a partir de estilhaços, portanto um conjunto de fragmentos, um poema estilhaçado, e que cada imagem poderia existir por si mesma, a verdade é que são precisamente estes três elementos (o conjunto) que dão a intensidade, força e beleza ao poema, isto é, coesão, densidade e intensidade tornando-o assim num corpo uno. Se o poeta tivesse usado cada uma destas estrofes (o que poderia ter feito), por si mesmas, como pequenos poemas, estes jamais conseguiriam atingir a maravilhosa densidade ou corporalidade que aqui se atinge e o leitor ficaria sempre com a impressão de que faltava alguma coisa. Por este modo o poema, embora tendo uma base fragmentária, é sentido como uma unidade.

 

(Nesta poesia o poema não representa algo, mas antes, ele é: este algo, um corpo autónomo, resultado da linguagem viva, em movimento, que forja a sua própria realidade.)

 

Depois de tudo o que dissemos, podemos concluir que é precisamente do aspecto violento, de uma espécie de dialéctica ou estética do confronto, do seu acto destrutivo-construtivo, do movimento estilhaçado, que irrompe a grande força, intensidade, fascinação, peculiaridade e magia desta poética; poética de uma beleza lancinante, poética de uma intensidade figurativa, de uma circunferência feita de estilhaços.

É claro que outros aspectos poderiam aqui ser realçados, porém este é, repetimos, a nosso ver, o aspecto principal, mais gritante, ou pelo menos o que de imediato, como já no início demos a entender, a uma primeira leitura (que a nosso ver é o modo mais sólido de se atingir a essência da poesia) nos salta aos olhos e nos faz vibrar o espírito e os sentidos.

 

Para terminarmos, reparamos ainda que no aspecto formal, ou seja, o corpo do poema, depois do primeiro livro (iniciação ao remorso, 1998) se tem vindo a tornar cada vez reduzido: a construção formal tornou-se mais comprimida, lacónica, fragmentária, substantiva, o poema menos povoado, minimalista. Muitos dos poemas possuem mesmo uma forma que poderemos chamar lapidar, chegando a atingir, sobretudo no livro incŭbus, uma tonalidade aforística. Um exemplo:


Aquele que mata decifra.

 

Está sobre o crime

como quem maneja deus.

 

Já no aspecto linguístico, a intensidade do verbo, perturbante, sempre violento e extremo é uma constante de toda a obra, no entanto, a escolha de imagens cada vez mais herméticas, bem como de palavras raras que, por vezes, obrigam a consultar o dicionário e que lembram uma certa tendência maneirista, tem vindo a acentuar-se, sobretudo nos últimos livros. Um exemplo:


As refinarias do medo trabalham o alvidrio.

Até que todo o movimento seja sem aporias.


O sangue por baixo galgando

andaimes,

fazendo da sufusão a sua única eclusa.

 

Este recurso a vocábulos tão raros e extravagantes (neste caso alvidrio, aporias, sufusão, eclusa) se provocam, por vezes, um certo nervosismo no leitor, são, no entanto, constituintes imprescindíveis desta linguagem poética, ou seja, sem eles esta poesia seria muito mais pobre, pois que lhe roubaria  grande parte da sua força, raridade e originalidade.

 

*

 

L. ( Luís ) C. ( Costa ) nasceu em 1964 em Carregal do Sal, distrito de Viseu. É aí que passa a maior parte da sua juventude. Tem o seu primeiro contacto com a poesia por meio de Antero de Quental, poeta/ filósofo, pelo qual nutre um amor de irmão espiritual. A partir dai não mais parou de escrever.  Depois de passar três anos num internato católico, em Viseu, descontente com o sistema de ensino, resolve abandonar o liceu. No entanto nunca abandona o estudo, sempre auto didáctico. Aprende o Alemão, aprofunda os seus conhecimentos de francês etc.
L. C. tem vindo a editar, regularmente, artigos (ensaios) e poemas no site-revista: TRIPLOV da escritora Estela Guedes e publicou também já três ensaios na revista digital brasileira do poeta Floriano Martins: Agulha, bem como alguns poemas na revista digital da escritora Valéria Elk: Conexão Maringá, e tem igualmente editado alguns artigos num jornal regional. Até agora ainda não se encontra editado em livro por que assim o quis (já teve oportunidade de publicar), visto que considera ainda não estar preparado para uma tal “ aventura “. No entanto acredita que num futuro próximo isso possa vir a acontecer.
E-mail: L.costa@web.de.

 

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