ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

NO INÍCIO ERA O VERBO:
ANDARA. VIAGEM AO LUGAR DA REMINISCÊNCIA NARRATIVA

 

Karina Jucá

 

Andando não acharás os limites da psique. Embora percorras todos os caminhos, tão vasto é o seu discurso.

Heráclito

 

A verdadeira viagem se faz na memória.
Marcel Proust

 

Vista por parte da crítica como a metáfora da Amazônia, Andara, a região-conceito da obra de Vicente Cecim, excede a definição estrita.

 

A obra total apresenta peculiares do imaginário regional, como a influência da tradição oral, mas de forma não regionalista, em que se destaca a capacidade de fabulação mítica universal. O ponto de ligação da obra com a tradição amazônica é, portanto, indireto. Segundo o autor, Andara  é “literatura fantasma”, isto é, está distante da representação. Conforme já observado pela crítica, a conexão Andara - Amazônia se dá em nível próximo da relação Livro - Região estabelecida por dois  mestres da literatura brasileira: Manoel de Barros e Guimarães Rosa. Este que classificava de “metafísico” o sertão mineiro por ele descrito, inclusive em seu título mais conhecido, Grande Sertão: Veredas. O mesmo se dá com as alusões do paraense à floresta, à Santa Maria do Grão e Andara.

 

Em linhas gerais, as menções a floresta relacionadas ao conceito de Andara podem ser tomadasnão apenas como a metáfora da Amazônia, mas como alegoria sui generis da Escritura e da vida. Compreende-se por alegoria um conjunto de símbolos (veremos acepção específica adiante) inter-relacionados que embutem enunciados morais em narrativas míticas ou teológicas. Porém, em virtude da ausência da sentença moral que tradicionalmente a define, alegoria é ainda insuficiente como classificação. A rigor, no caso específico, o recurso alegórico é utilizado para reunir um conjunto de questionamentos filosóficos que resultam na ampla e sutil especulação sobre a vida a partir do verbo na forma de personagem-região.

 

No aspecto semântico-verbal, por exemplo, o nome Andara sintetiza e subentende as primeiras questões. Diz o autor em entrevista que “Andara é Geografia Verbal, dialogando com a Geografia Física da Amazônia” (AZOUGUE, 2005, p. 4). Em O Tempo na Narrativa, Benedito Nunes (1988) sustenta que os tempos verbais ultrapassam a divisão pensada pelos gramáticos. As formas do pretérito indicariam locução narrativa ou o próprio tempo da narrativa em função do distanciamento e curso livre que imprimem à linguagem;ao passo que os demais tempos verbais se aplicam a locução discursiva, de comentário.

 

Além de ressaltar pelo nome a essência narrativa, o vocábulo também remete diretamente ao verbo Andar, avançar contínuo de passos, progressão. No passado mais que perfeito, o sentido do movimento concluído carrega ao mesmo tempo, conotativamente, a impressão de continuidade, de fluxo narrativo. Andara como movimento que se inscreve no passado em passos (presente) que levam / ou levaram a frente (futuro)? Com o truque semântico, os modos temporais (passado, presente e futuro) se unem e ao mesmo tempo se anulam na figura poética, instalando a impressão de simultaneidade, ou da ausência de qualquer tempo. Andara, em sua condensação metalingüística assinala no nome próprio o conceito da narrativa do “devir como simultaneidade”.

 

A percepção do nome como "movimento suspenso"  é também comparável à do “Instante” platônico, que difere do “agora”. Para o grego o Instante estava fora do tempo, era o interstício entre uma fração de momento e a eternidade: “O Instante parece indicar o que serve de transição entre duas mudanças inversas. A passagem do movimento ao repouso e vice versa não ocorre a partir da imobilidade que ainda está imota, nem do movimento que ainda está se movendo. A natureza um pouco estranha do instante está no fato de ser o ponto médio entre repouso e movimento, mesmo não estando ele no tempo, o que o torna ponto de chegada e de partida do que se está movendo em direção ao estar parado, e do que está parado em direção ao mover-se” (PLATÃO, 2003, p.156).

 

O tempo simultâneo alude igualmente ao Mito do Eterno Retorno, hipótese de transcendência da noção linear da História. Silencioso como o Paraíso, segundo livro do autor, por exemplo, não tem começo nem fim, cada lado da brochura é um início onde dois “finais” convergem para o centro. No entanto, o narrador, insatisfeito, tenta ir além deste mito fundamental ao se perguntar: “através de Andara não se irá à parte alguma?”. Em outras palavras, no que redundaria o tempo ou o ciclo do tempo, quais os limites da viagem, da vida, da história? O tempo é linear ou cíclico, finito ou eterno? O que é o tempo?

 

O tempo é a imagem movente da eternidade? (Platão, 1972). Em quais pontos da linguagem (verbo) e da memória - refeita constantemente pela linguagem - encontra-se a compreensão da natureza total do Homem? Sobre isso comenta o narrador, misterioso: “Usem a memória. Saibam: a memória, Ela é a Outra literatura [...]” (CECIM, 2001, p. 73). E sobre a indefinição ontológico-temporal a qual o nome assinala, resume, ainda enigmático: “a memória é um retorno sobre os mesmos passos, para onde quer que se vá [...]”(CECIM, 2001, p. 73).

 

O poder diretivo e ao mesmo tempo incerto, tênue da memória, é ilustrado em um trecho de Silencioso como o Paraíso (CECIM, 1994) que alegoriza as questões supracitadas na dinâmica com os postulados da teoria do Inconsciente. No enredo, um local secreto - “a Festa dos Cabelos Trançados” – é procurado pelos personagens em Andara, permanecendo indefinida a sua localização. A medida que avançam em Andara, tanto os referenciais, quanto os nortes: as certezas vão se rarefazendo a semelhança de uma busca mística, por meio da chamada “via negativa”, que consiste no despojamento progressivo do ego, da matéria, das palavras, na direção de uma “plenitude do tempo”, realização de si próprio ou hipotético encontro com a divindade. O despojamento é experimentado como a própria experiência da morte, que por sua vez é tida como base de toda iniciação filosófica...

 

Disse Cecim em entrevista que a Amazônia, por ser Lugar de Natureza, é Lugar do Sagrado em epifania. Para diversas doutrinas a natureza já foi ou é tida como local de divindade. Para Gaston Bachelard (1989), a floresta é espécie de arquétipo da Psique, da Anima. Da busca pela festa dos cabelos trançados na floresta Andara, podemos traçar um paralelo entre esta procura com a especulação teórica de Carl Jung sobre os limites da Psique: se uma psique meramente onírica, ou se portadora de um “Espírito Universal”. Ou seja, a Psique seria mais vasta a ponto de transcender a si mesma? (Jung, 2001). Na anímica floresta Andara (Psique) existe uma ponte para a Festa (alma, Espírito Universal)?

 

Em suma, a busca pela festa dos cabelos trançados em Andara simboliza o movimento de busca pela Alma Imortal ou pela supraconsciência. A busca dentro do Tempo e da Memória. Não a memória de registro prontamente acessível, mas a memória sutil que se supõe ou se pressente possuir e não se mostra de forma evidente: “Andara, a viagem, ela mesma nunca será escrita diretamente” (CECIM, 2001, p. 13).

 

Apesar das limitações evidentes, Andara é como a ânsia da psique visionária que tenta ver não apenas “à frente”, mas a si mesma em sua totalidade, tal como na citação de Ó Serdespanto que resume a idéia de plenitude do tempo, de São Paulo: “Agora vemos em espelho. Amanhã conhecerei como sou conhecido” (CECIM, 2001, p. 49). Andara e a Festa dos Cabelos Trançados representam a indefinição e a tentativa de arqueologia da Psique em busca de um espaço profundo e além do chamado “fluxo da consciência” surrealista, técnica imaginativa que  apenas revelaria os rudimentos da linguagem, cognitivos do Homem, porém não explicaria a si mesma. Como disse Hamlet, o próprio sonho não passa de uma sobra.

 

A “hipotética passagem” para a festa em Andara se aproxima do conceito de “Reminiscência” de Platão, entendida pelo filósofo como a “Memória da alma imortal do Homem”, que só se mostra sob formas sutis, por exemplo, na escritura e na busca filosófica, pois, para Platão, a busca, assim como a aprendizagem, é uma forma de Reminiscência.

 

Enquanto procuram, os personagens têm a sensação de estarem na Festa, ou ficam em dúvida quanto a sua existência. Quando os personagens intuem em Andara a Festa dos Cabelos Trançados, isso é apenas um sonho com a sua abundante e complexa arbitrariedade imagética, os rudimentos e estilhaços de consciência animal, ou uma Reminiscência à maneira platônica? (ver paralelos no capítulo o aspecto onírico na obra).

 

A resposta fica, por assim dizer, no ar. Mesmo que os personagens não alcancem o caminho para a “Festa em Andara”, ou seja, um desfecho ontológico para os questionamentos, paradoxalmente a festa já existe. Existe como hipótese, porque Andara é a terra das hipóteses. “Aonde a sombra das estrelas viesse se juntar também à sombra de uma dúvida” (CECIM, 2001, p. 81). Um lugar presente-ausente, um ponto metafísico, mas de interrogação.

 

Andara é a aporia da Psique como parte indissociável de todo pensamento que se debruce sobre si mesmo. O inefável mostrado como lugar que existe. E esse inefável, esse lugar, é a própria vida.

*

 

retornar <<<

[ ZUNÁI- 2003 - 2010 ]