ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

OS HANGARES DA POESIA

 

A poesia está sempre no limite das coisas. No limite do que pode ser dito, do que pode ser escrito, do que pode ser visto e até do que pode ser pensado, sentido e compreendido. Estar no limite significa muitas vezes, para o poeta, estar para lá do que estamos preparados para aceitar como possível (CASTRO, 1996, p. 138).

 

Jorge Luiz Antônio

 

Uma troca de e-mails foi o início de um diálogo com Luís Serguilha, seguido do recebimento de seus livros, e continuado por meio de uma conversa muito proveitosa por telefone e, depois, pessoalmente, quando ele esteve em São Paulo, em outubro/2007.

Luís Serguilha nasceu em 1966, em Vila Nova de Famalicão, Portugal. Foi atleta (rúgbi e handebol) por vinte anos, colaborou por muitos anos nas Jornadas de Arqueologia - Investigação da Cultura Castreja, lecionou Educação Física por doze anos, desenvolveu trabalhos pioneiros sobre as "bibliotecas de jardim" e atualmente coordena uma academia de danças urbanas e de outras atividades físicas. Recebeu o Prêmio de Literatura Poeta Júlio Brandão. E dedica-se à poesia (SERGUILHA, 2007).

Serguilha publicou oito livros: O périplo do cacho (1998), O outro (1999), Entre nós (narrativa) (2000), Lorosa´e boca de sândalo (2001), O externo tatuado da visão (2002), O murmúrio livre do pássaro (2003), Embarcações (2004), A singradura do capinador (2005). Criatividade do título ao texto, quantidade, regularidade: uma das muitas qualidades do poeta e da pessoa. Ele também faz textos crítico-criativos, dentre os quais um exemplo é "Sampistas apocalípticos (Cláudio Daniel, Ademir Assunção e Ronald Polito) (SERGUILHA, 2007a), recriações poéticas a partir dos temas dos autores, numa forma muito singular de continuar fazendo poesia. Já existem vários textos sobre as suas obras, com uma riqueza significativa de interpretações: Sérgio Paulo Guimarães de Sousa (2001), Gunvald Wahlöö (2004), Melo e Castro (2004, 2005), Micheliny Verunschk (2007). O autor é muito comunicativo e vem estabelecendo contatos entre portugueses e brasileiros.

Todas as obras, além de uma diagramação muito boa, contêm reproduções gráficas de pinturas de Passos da Silva e Sara Rodrigues. A escolha das obras pictóricas indica um gosto apurado para não apenas ilustrar, mas ressignificar o texto escrito. Há uma preocupação com o diálogo intersígnico (verbal e visual), o que valoriza, ainda mais, os poemas de Serguilha.

A leitura dos livros ensejou uma série de impressões: floresta de signos verbais, conjunto de sinestesias, uma correspondência mais do que baudelairiana, poesia experimental, poesia neobarroca, poesia hermética, verbalismo plurissignificativo, uma estrutura hipertextual no meio impresso, uma experimentação que se parece com a poesia permutacional. Outros aspectos inovadores também foram observados: uma continuidade expressiva que toma rumos diferentes em cada livro publicado, sempre fiel a um projeto que norteia toda a produção poética.

Fui presenteado recentemente com os originais de Hangares do Vendaval, 16 hangares-poemas, em fontes de diferentes tamanhos, quarenta e sete páginas em papel formato A4, presente esse que veio com um convite: fazer um texto de apresentação para o seu novo livro.

Duas questões principais surgiram da leitura dessa obra, em comparação com outros livros: a) procurar os significados da poesia ou deixar-se levar pela torrente de palavras e sua musicalidade, visualidade e riqueza sinestésica características que apresentam múltiplos significados? b) encontrar pontos em comum com outros movimentos poéticos de um país tão rico de poesia como Portugal, ou simplesmente observar os procedimentos da poesia de Luís Serguilha em Hangares do Vendaval, em particular, ou na sua obra como um todo, de forma panorâmica? Trabalho desafiante, considerando-se, principalmente, que um texto de apresentação precisa ser curto, pois não deve aborrecer ou direcionar o leitor.

O leitor de uma obra poética precisa ser atento e paciente para apreender a estrutura poética e a polissemia que cada poema lhe proporciona.  Ele deve esperar o convite à viagem onírica e aceitar o desafio para a produção de sentidos e para a escolha de um significado que lhe seja especial. Nesse exercício interativo, o universo poético se revela junto com um convite sutil e irrecusável para continuar a leitura e para, talvez, também sentir-se estimulado a produzir poesia. O leitor que apenas frui a poesia guarda para si os critérios de produção de significados ou talvez os compartilhe com os seus amigos. O crítico literário, leitor especializado, tem a missão de oferecer chaves de compreensão e portas de entrada para a obra poética. É, na verdade, um recriador ou um tradutor da linguagem poética, deve mostrar procedimentos, estruturas, fazer metalinguagem, e deixar pistas que permitam uma leitura que seja procura e encontro para outros leitores, mas que não o direcionem sob uma única perspectiva.

O título Hangares do Vendaval é sonoro, agradável e instigante. "Hangar" tem muito significados: construção semelhante a um galpão destinada a abrigar materiais e mercadorias diversas ou colheitas; abrigo para aviões num navio-aeródromo. "Vendaval" significa "vento forte e tempestuoso", "ventania", "temporal" e, no sentido figurado, grande desordem, agitação, rebuliço, turbilhão, sentimento forte e devastador. Conceitos opostos de espaços: enquanto "hangar" indica abrigo, imobilidade, calma, "vendaval" sugere movimento, fúria, agitação, inquietude.

Abrigos das palavras / poesias / experimentações poéticas. Os abrigos das palavras-vendavais que compõem a tessitura poética de Luís Serguilha: vários compartimentos de onde surgem a sua comunicação poética, num projeto experimental de poesia contemporânea. Cada compartimento-hangar-poesia abriga vendavais compostos de grupos de palavras enfeixados em campos semânticos que, como o título do livro, são paradoxos, um tipo especial de metáforas.

Além do enfoque temático, é preciso lembrar-se da conversa do poeta Mallarmé com o pintor Degas:

 

O grande pintor Degas muitas vezes me contou essa frase de Mallarmé, tão justa e tão simples. Degas às vezes fazia versos, e deixou alguns deliciosos. Mas constantemente encontrava grandes dificuldades nesse trabalho acessório de sua pintura.  (Aliás, era homem de introduzir em qualquer arte a dificuldade possível.). Um dia disse a Mallarmé: "sua profissão é infernal. Não consigo fazer o que quero e, no entanto, estou cheio de idéias...". E Mallarmé lhe respondeu: "Absolutamente não é com idéias, meu caro Degas, que se fazem os versos. É com palavras." (VALÉRY, 1991, p. 207-208).

 

É válido adotar esse ponto de vista e focar a atenção na linguagem poética de Luís Serguilha e observar os seus procedimentos, pois a "poesia é uma arte da linguagem" (VALÉRY, 1991, p. 208), "um ser de linguagem. O poeta faz linguagem, fazendo poema. Está sempre criando e recriando a linguagem (PIGNATARI, 1991, p. 10)".

O ser de linguagem denominado Hangares do Vendaval tem características especiais. A palavra "hangar", seguida de numerações de um a dezesseis, passa a ser os títulos dos poemas. A maneira particular de significar o mundo pelas palavras passa por um tipo de metaforização que toma conta do discurso poético e se torna um projeto poético experimental, pois se mantém em todas as obras, ao mesmo tempo que se modifica, tomando novos enfoques.

Um trecho de Novas cartas portuguesas ajuda a compreender a comunicação poética de Luís Serguilha:

Pois que toda literatura é uma longa carta a um interlocutor invisível, presente, possível ou futura paixão que liquidamos, alimentamos ou procuramos. E já foi dito que não interessa tanto o objecto, apenas pretexto, mas antes a paixão; e eu acrescento que não interessa tanto a paixão, apenas pretexto, mas antes o seu exercício (BARRENO; HORTA; COSTA, 1974, p. 9).

 

Essa dialética característica da literatura portuguesa está presente na obra do poeta de Vila Nova de Famalicão como um exercício de uma arte poética no seu mais alto grau, como uma carta aberta a um leitor de poesias com uma mensagem cifrada.

O procedimento que diferencia a obra de Serguilha e que a caracteriza se mostra pela construção de significados por meio da subversão dos processos de subordinação e coordenação. A ausência de sinais de pontuação indica orações coordenadas e subordinadas quase sempre sem uma conjunção coordenada ou subordinada, sem uma oração principal, sem um único sentido completo. Isso ocorre porque o núcleo semântico se prende em metáforas formadas por substantivos e adjetivos, em sua maioria. Esse tipo de construção verbal indica uma possibilidade combinatória interminável. Não há início, meio e fim no texto de Serguilha. Quanto ao significado, portanto, o leitor pode começar a leitura tanto pela página que quiser, quanto pela palavra que lhe chamar a atenção.

A observação de E. M. de Melo e Castro para A Singradura do Capinador é válida para outras obras de Sergulha:

Para sabermos de que trata o O INTERMINÁVEL TEXTO DE LUIS SERGUILHA devem portanto ser catalogados os substantivos e os verbos que regem as células intervalares entre as preposições DE e suas variações DA, DAS, DO, DOS. Estas preposições estabelecem entre os tropos intervalares uma relação de dependência ou de derivação, que tornam O INTERMINÁVEL TEXTO DE LUIS SERGUILHA uma espécie de série de caixas chinesas, encaixando sucessivamente uma nas outras (2005, p. 12).

Um vulcão de vocábulos faz parte do projeto poético de Luís Serguilha e, sendo o leit motiv que norteia sua produção poética, vale recorrer ao conceito de procedimento:

E eis que para devolver a sensação de vida, para sentir os objetos, para provar que pedra é pedra, existe o que se chama arte. O objetivo da arte é dar a sensação do objeto como visão e ao como reconhecimento; o procedimento da arte é o procedimento da singularização dos objetos e o procedimento que consiste em obscurecer a forma, aumentar a dificuldade e a duração da percepção. O ato de percepção em arte é um fim em si mesmo e deve ser prolongado; a arte é um meio de experimentar o devir do objeto, o que é já "passado" não importa para a arte. (CHKLOVSKI, 1971, 45).

A singularização dos objetos, o mundo representado pelos signos poéticos verbais de Serguilha, é um procedimento que se manifesta pela metaforização das palavras e pela produção de sinestesias, aumentando a dificuldade de compreensão na primeira leitura e aumentando a duração da fruição poética, por intermédio da necessidade de reler, repensar, rever, ressignificar, em suma, desautomatizar. Luís Serguilha é: "Um autor que obriga a "escreler". Que não dispensa o seu leitor, nem o remete para qualquer liturgia da palavra feita ou do verso aprioristicamente construído" (SOUSA, 2001, contracapa).

Isso aplica a Hangares do Vendaval, como, por exemplo, em "Hangar 3":

 

As transferências apaixonadas dos bojos dos últimos calabouços possibilitam

                          o murmúrio da cura dos tecidos inovadores dos pedreiros-livres

que capturam as estátuas luzentes dos pássaros

                                                            nas refinarias eclécticas da madeira brava

 

Transferências apaixonadas dos bojos dos últimos calabouços? Murmúrio da cura dos tecidos inovadores dos pedreiros-livres? Estátuas luzentes dos pássaros? Refinarias eclécticas da madeira brava? Possibilitam? Capturam?

A metáfora parece ser construída por intermédio dos adjetivos e por meio de uma construção que se parece com a das orações subordinadas, pois usa "como", "onde", "que", verbos no gerúndio, "para", "e", etc. Isso se repete ao longo dos poemas e torna o texto uma espécie de música contínua, a exemplo de um ritmo sem rima, uma musicalidade semelhante à existente na poesia simbolista, como o verso "Só, incessante, um som de flauta chora", de Camilo Pessanha (1989, p. 59). É que o "poema a leste de um Éden natural dedica-se a uma restituição da natureza como inferível do seu léxico" (WAHLÖÖ, 2004, contracapa). Parece-me aqui uma retomada da poesia-dança e da poesia-movimento que caracterizou as cantigas medievais.

Considerando-se o processo sintático de subordinação, posso afirmar que a "oração principal" fica por conta do leitor, cujo ponto de apoio pode ser um título, como "Hangar", sinais de pontuação como em Embarcações, poemas sem título como em Lorosa´e Boca de Sândalo, imagens e algarismos romanos como em O Externo Tatuado da Visão e A Singradura do Capinador, e raramente um título, como ocorre em apenas um poema de A Singradura do Capinador.

Essa procura de significado toma rumos diversos, tira o chão do leitor e o remete a uma espécie de linguagem onírica, primitiva, inaugural, uma volta no tempo. É como se a imprecisão caracterizasse um tempo sem marcas, uma linguagem sem nenhuma vinculação com um tempo e um espaço datados, determinados. É claro que sabemos ser língua portuguesa, um português de Portugal, e não do Brasil, por exemplo, e que há referências que indicam ser um texto do século XXI, pois os vocábulos utilizados indicam uma temporalidade de significados. Contudo, a metaforização experimental oferece uma plurissignificação que nos desvincula de "amarras" de localidade, temporalidade e espacialidade específicas.

Assim, a própria análise das poesias se torna, então, uma outra experimentação. O poeta usa e abusa de uma verbalização característica (há uma tendência para versos razoavelmente longos) que oferece sempre novas releituras, novas significações. Ele aposta nesse procedimento com todas as suas forças, fazendo disso um projeto poético: retirar as palavras do seu uso comum e da metáfora morta para ressignificar sempre, num afã de dizer tudo. Os seus livros apresentam sempre essa proposta clara e paradoxalmente tão metafórica. É preciso experimentar significados para analisar "Hangar 4" e, então, deixo-me levar pela sonoridade musical de um grupo de palavras, seleciono-as mentalmente ou as escrevo e, assim, acabo recriando um outro poema:

 

A latitude viajante do fôlego
as recamaduras da gelosia urbana
diamante de respirações babilõnicas
a longevidade das aberturas
os teoremas dos pêssegos
bandos intraduzíveis a tossirem nos encaixotamentos geológicos

 

O agrupamento de expressões poéticas permite compreender a construção metafórica das poesias e, simultaneamente, oferece outras leituras. São blocos de significação, "células intervalares" (CASTRO, 2005, p. 12), "séries de caixas chinesas, encaixando sucessivamente uma nas outras" (idem, ibidem), ou lexias de um texto estrelado (BARTHES, 1992, p. 47-48), ligados por operadores lingüísticos, ou seja, uma leitura-jogo por meio de um processo hipertextual no meio impresso.

A própria leitura e a procura de significados também se tornam outras experimentações para o leitor e, nesse sentido, podemos afirmar que o poema é interativo, não porque usa mecanismos computacionais que exigem a interação do leitor-operador, mas principalmente porque motiva o leitor a ficar atento, reler e ressignificar de acordo com o seu quadro pessoal de referências.

Esse processo hipertextual, que Melo e Castro (2004, p. 10) notou em Embarcações, também se aplica a Hangares, pois oferece ao leitor uma leitura-jogo: ele tem a liberdade de se ater a um grupo de palavras e entusiasmar-se em redescobrir associações ou círculos semânticos a partir daí. É nesse sentido que o texto pode ser considerado um hipertexto, pois a distribuição gráfico-espacial e a ausência de pontos-finais sugerem blocos de significados ou lexias que permitem agrupamentos de acordo com a "necessidade" ou "procura aleatória" do leitor. Essa leitura-aventura se faz pela escolha de palavras ou grupos de palavras ao sabor de uma viagem do olhar, seduzida pelos balanços da sonoridade, como se estivesse vagando sobre nuvens, ou sendo embalado por um mundo onírico.

Serguilha oferece um projeto de leitura que é um desafio. E há momentos em que o leitor se sente perdido numa floresta de signos e só encontra o caminho dos significados se selecionar e combinar palavras e dar significado pessoal a elas.

Quanto ao processo criativo, é possível estabelecer relações e afirmar que Serguilha transforma o action painting de Jackson Pollock em action writing, que explora a técnica do poema automático mecânico dadaísta e a escritura automática dos surrealistas. Em suma, faz um exercício de ressignificação por meio da plurissignificação. Mas, como fala o poema "Correspondências", de Charles Baudelaire, "por entre florestas de símbolos / que o observam com olhares familiares" (BAUDELAIRE, 1985, p. 33), é possível encontrar "uma tenebrosa e profunda unidade" (idem, ibidem).

Ler os versos de cada hangar-poema é buscar o início de cada poema-projeto. Para "Hangar 1", por exemplo, há três verbos que iniciam versos - eclipsar, confidenciar, descobrimos - com sentidos próximos ou complementares e metáforas compostas de substantivos, adjetivos e verbos: 

Eclipsar a íris-estaca do cais na rachadura rememorativa das encaixotadoras (...)

Confidenciar a subtilidade da aridez das gôndolas sucessoras da granulação (...)

Descobrimos os prelúdios da chiba das metamorfoses (Hangar 1)

 

Tirar o brilho ou a visibilidade da íris-estaca, ofuscá-la, obscurecê-la. Dizer ou comunicar em segredo, ou em voz baixa, a subtilidade da aridez das gôndolas. Constatar a descoberta dos prelúdios das chibas. Propostas-metáforas geradoras de novos significados, obscurecendo o significado comum das palavras, aumentando a dificuldade de compreensão, experimentando o devir do objeto.

Deixando de lado uma análise das figuras de linguagem, que indicaria, provavelmente, apenas uma riqueza de tipos, portanto, isso seria um propósito estilístico, parece-me válido apostar na experimentação, pois esse é o caminho do poeta. Os resultados dessa análise de procedimento são todos os tipos de significados que os leitores puderem encontrar. As combinações são muitas à semelhança de um hipertexto no meio impresso.

Há características especiais em Hangares que não aparecem nos livros anteriores: uso de fontes de diferentes tamanhos, em caixa alta e em negrito; uso de pouco sinais de pontuação como parêntesis; uso de palavras em caixa alta; emprego de hífens estilísticos em grande quantidade. Esses recursos tipográficos representam palavras-sínteses de um processo metafórico experimental, uma necessidade de comunicação poética, que passam a significar mais do que a pontuação praticamente inexistente nas obras de Luís Serguilha. Eles sugerem movimento e pausa, como a cadência de uma dança ou modulação de voz durante uma leitura em voz alta ou sussurrada.

Selecionando as palavras em caixas altas e as que estão entre parêntesis, eis como isso se processa em "Hangar 2":

 

ângulo-MASTRO-musgo
orvalho PRÉ-HISTÓRICO
MINAS
MINAS
MINAS ... FERROVIA EPILEPTICA
LIMOEIRO dos bichos - MINERAIS
ALIMENTAM ... MEDULAS
(ROSÁCEAS HIDROGRÁFICAS JUSTIFICAM AS MUTAÇÕES
                   DO XADREZ-SUBSOLO-ANTROPÓLOS UTERINOS)

 

Seria possível uma leitura vertical, inclinada ou paralela para identificar outros procedimentos conotativos, como uma espécie de intratextualidade, que dialogam com o poema numa leitura linear. Por vezes a palavra isolada é a tônica da comunicação poética. É como se o poeta quisesse libertar-se da estrutura lógica da língua portuguesa e voltasse às palavras em liberdade dos futuristas. Em alguns aspectos, essa estrutura se assemelha à de Oswald de Andrade em Memórias Sentimentais de João Miramar, num exercício constante de plurissignificações pelas inúmeras metáforas que se constroem com os adjetivos e substantivos e com a inclusão de preposições exercendo as funções sintáticas de complemento e adjunto nominais.

É possível ler Hangares, abrindo uma página qualquer, ao acaso: a sensação de estranhamento e de curiosidade acompanha a obra e essa unidade (metáfora sobre metáfora) é constante. O leitor encontra, assim, o prazer de descobrir novos sentidos ou repensar o que leu. Adentrar o entendimento do processo poético de Luís Serguilha por este viés é escrever uma tese de doutorado sobre a sua obra, mas este texto não tem essa pretensão. Ele é mais uma saudação a um amigo transatlântico do que um estudo aprofundado.

Não foi possível concluir esta apresentação e paradoxalmente estou muito feliz com essa inquietude poética. Cada poema lido me trouxe a angústia da exegese[1]: senti a necessidade de tentar esclarecê-lo ou interpretá-lo minuciosamente. Escrevi várias páginas. Pareceu-me que esse exercício não acabaria mais e, ao mesmo tempo, fazia com que a leitura de Hangares ficasse cada vez mais lenta, mais desafiadora e mais encantadora. Eu precisava terminar a apresentação, mas, a cada trecho lido, novas idéias e novos textos surgiam numa espécie de brainstorming, tudo isso junto com uma necessidade de também produzir poesia. Eu precisava ser conciso, mas a prolixidade tomava conta do meu texto. Então, optei por avisar o leitor que continuarei a escrever indefinidamente sobre o "interminável texto de Luís Serguilha" (CASTRO, 2005, p. 10). Então meu texto será o interminável texto sobre o interminável texto de Luís Serguilha.

Durante essas elucubrações, veio-me à lembrança uma estrofe de Camilo Pessanha:

 

Imagens que passais pela retina
Dos meus olhos, porque não vos fixais?
Que passais como a água cristalina
Por uma fonte para nunca mais! ... (PESSANHA, 1989, p. 37)

 

O texto em construção de Serguilha é um procedimento que procura significar tudo por meio do uso da palavra, o pluridimensional da realidade no unidimensional da linguagem poética, como disse Barthes (1995, p. 22-23). Uma inquietude semelhante se apresenta em Hangares dos Vendavais: 

Eclipsar a íris-estaca do cais na rachadura rememorativa das encaixotadoras (Hangar 1)

            Nesse afã de concluir esta apresentação, abri a janela da minha biblioteca e vi que 

As alianças bífidas dos répteis incandescem as escarpas

                                                                                 das camisas das metrópoles

como bandos intraduzíveis a tossirem nos encaixotamentos geológicos

                para apaziguarem as plumas das heranças das formigas caçadoras

de biografias enclausuradas (Hangar 4)

e entendi tudo, tal qual aquele alívio filosófico do personagem de Vagabundos iluminados, de Jack Kerouac.

Num canto do espaço compreendido pela janela da biblioteca, que dá para quintais cheios de árvores e plantas, belezas arquitetadas, regadas e adubadas, como uma janela do Windows, o Hangar 16 iniciou assim:

                                 O leopardo evocativo do vendaval dobra-se na sede afiada

da âncora debruando os trocadilhos das faíscas dos telheiros

                                                              com as sandálias redondas do equinócio

 

Uma outra idéia surgiu e permaneceu: um diálogo com textos não verbais, como a poesia visual e a poesia digital. Passado certo tempo, os infopoemas de E. M. de Melo e Castro (1999/2000 e 2007) - http://www.ociocriativo.com.br/guests/meloecastro/ - se tornaram, para mim, leitor-operador ou leitor-jogador, uma espécie de idéia-jogo, interatividade, diálogo intertextual. Virou um projeto intertextual, em que procurei explorar a visualidade da infopoesia e a riqueza metafórica e experimental de ambos os poetas. Sugeri a idéia ao Luís Serguilha e ao Melo e Castro e ela foi aceita. Ana Baptista, editora de Intensidez, também aprovou a sugestão e soube explorar esse diálogo no livro. Pouco tempo depois, explorei cores e estrutura hipertextual, que publiquei em O texto brevíssimo da Editorial 100, em Vila Nova de Gaia: http://www.editorial100.pt/otextobrevissimodaeditorial100jlantonioh.htm.

Evocação. Vendaval. Sandálias. Sede. Âncora. Uma formiga caçadora de biografias enclausuradas.

É essa leitura-jogo que desejo a todos os leitores de Hangares do Vendaval. Muitos hangares-versos. Muito vendaval-metáfora. Muita poesia, a de todos os tempos e tipos. Ou seja, a vida ressignificada, como sempre, pela palavra poética.

 

BIBLIOGRAFIA

 

ANTONIO, Jorge Luiz. Os hangares da poesia. In: SERGULHA, Luís. Hangares do vendaval. Évora, Portugal: Intensidez, 2007, p. 153-165

______. Hangares-poemas. Editorial 100, Vila Nova de Gaia, Portugal, 16 out. 2007. Disponível em: http://www.editorial100.pt/otextobrevissimodaeditorial100jlantonioh.htm.

BARRENO, Maria Isabel; HORTA, Maria Teresa; COSTA, Maria Velho da. Novas cartas portuguesas. São Paulo: Círculo do Livro, 1974.

BARTHES, Roland. S/Z. Tradução: Léa Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.

______. Aula: aula inaugural na Cadeira de Semiologia Literária do Colégio de França. Tradução: Leyla Perrone-Moisés. 9.ed. São Paulo: Cultrix, 1995.

BAUDELAIRE, Charles. Correspondências. In: GOMES, Álvaro Cardoso (Org.). A Estética Simbolista. Tradução: Eliane Fittipaldi Pereira. São Paulo: Cultrix, 1985, p. 33.

CASTRO, E. M. de Melo e. Videopoetry. Visible Language. New Media Poetry: Poetic Innovation and New Technologies. Providence, Rhode Island, EUA, Rhode Island School of Design, 30.2, p. 138-149, mai. 1996.

______. Prefácio. In: SERGUILHA, Luís. Embarcações. Vila Nova de Gaia, Portugal: Ausência, 2004, p. 7-11.

______. O interminável texto de Luís Serguilha. In: SERGUILHA, Luís. A singradura do capinador. Lisboa: Indícios de Oiro, 2005, p. 10-20.

CHKLOVSKI, V. A arte como procedimento. In: TOLEDO, Dionísio de Oliveira (Org.). Teoria da literatura formalistas russos. Porto Alegre, RS: Globo, 1971, p. 39-56.

PIGNATARI, Décio. O que é comunicação poética. 3.ed. São Paulo: Brasiliense, 1991.

SERGUILHA, Luís. Entre nós. Vila Nova de Famalicão: Quasi, 2000.

______. Lorosa´e - boca de sândalo. Porto, Portugal: Campo das Letras, 2001.

______. O externo tatuado da visão. Vila Nova de Gaia, Portugal: Ausência, 2002.

______. O murmúrio livre do pássaro. Vila Nova de Gaia: Ausência, 2003.

______. Embarcações. Vila Nova de Gaia, Portugal: Ausência, 2004.

______. A singradura do capinador. Lisboa: Indícios de Ouro, 2005.

______. Re: poesia portugal [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por jlantonio@uol.com.br em 15 abr. 2007.

______. Sampistas apocalípticos (Claudio Daniel, Ademir Assunção e Ronald Polito). Cronópios Literatura e Arte no Plural, São Paulo, 10 ago. 2007a. Disponível em: http://www.cronopios.com.br/site/printversion.asp?id=2643. Acesso em: 14 ago. 2007.

______. Hangares do vendaval. Vila Nova de Famalicão, Portugal, inédito, 47 páginas, 13 ago. 2007b. Arquivo eletrônico, programa Word, 232 KB.

______. Hangares do vendava. Évora, Portugal: Intensidez, 2007.

SOUZA, Sérgio Paulo Guimarães de. [A questão que a poesia de Luís Serguilha suscita não é]. In: SERGUILHA, Luís. Lorosa´e Boca de Sândalo. Porto, Portugal: Campo das Letras, 2001, p. contracapa. 

TAVARES, Ana Paula. Trabalhos do poeta. In: SERGUILHA, Luís. O murmúrio livre do pássaro. Vila Nova de Gaia: Ausência, 2003, p. 7-8.

VALÉRY, Paul. Variedades. Tradução: Maiza Martins de Siqueira. Organização: João Alexandre Barbosa. São Paulo: Iluminuras, 1991.

VERUNSCHK, Micheliny. Um poeta me chegou pelos correios - a poética de Luís Serguilha. Cronópios Literatura e Arte no Plural, São Paulo, 06 ago. 2007. Disponível em: http://www.cronopios.com.br/site/colunistas.asp?id=2633. Acesso em: 7 ago 2007.

WAHLÖÖ, Gunvald. [Constatou um dia Raymond William diante de algum modernismo]. In: SERGUILHA, Luís. Embarcações. Vila Nova de Gaia, Portugal: Ausência, 2004, contracapa.

 

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Jorge Luiz Antônio é escritor, professor universitário, pós-doutorando em Tecnologias da Inteligência e Design Digital (PUC SP TIDD), autor de Almeida Junior através dos tempos (1983), Cores, forma, luz, movimento: a poesia de Cesário Verde (2002), Ciência, arte e metáfora na poesia de Augusto dos Anjos (2004) e Poesia eletrônica: negociações com os processos digitais (no prelo).


 

[1] Comentário ou dissertação que tem por objetivo esclarecer ou interpretar minuciosamente um texto ou uma palavra (Dic. Houaiss on line).

 

Leia também poemas de Luís Serguilha.

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