ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

O TEXTO DE FIAMA HASSE BRANDÃO



Jorge Fernandes da Silveira (UFRJ e CNPq)

 

I. Pela comemoração do Dia das Letras Galegas, a 17 de maio de 2005, o Jornal de Letras, Artes e Ideias, de Lisboa, publica um ensaio de Víctor F. Freixanes, intitulado "Os Irmáns do Norte".

Datado do dia do seu aniversário, 15 de agosto de 1969, o poema "Modo Histórico da Cidra", de Fiama Hasse Pais Brandão (Lisboa, 1938), publicado em O Texto de Joao Zorro, de 1974, é um presente à sua identidade portuguesa e uma homenagem à sua ascendência ibérica.

No âmbito das discussões em torno da identidade cultural dos falantes de língua portuguesa, pode resultar interessante reunir as reflexões de um intelectual galego sobre a sua própria cultura e poemas de uma poeta portuguesa que, desde 1967, mantém uma notável relação com a cultura galego-portuguesa, seja pela publicação do paradigmático Barcas Novas, nome do livro e do poema que o inicia, este, uma leitura de uma barcarola de João Zorro; seja pelo título da sua primeira coletânea de poemas completos, O Texto de Joao Zorro; seja pelos Poemas Galaicos (Galiza 50), incluídos em 1991, na segunda e até agora última reunião de sua poesia, Obra Breve.

Esta interlocução tem por objetivo, portanto: a) citar passagens do texto de Víctor F. Freixanes, inter-relacionando-as com poemas de Fiama Hasse Pais Brandão; b) avançar na leitura de alguns Poemas Galaicos de Fiama; c) chegar à interpretação do seu poema de aniversário, anterior e de papel principal na interpretação do tema em desenvolvimento; d) chamar a atenção para uma das mais importantes obras da literatura contemporânea em língua portuguesa ainda não editada no Brasil.

No início do segundo parágrafo de "Os Irmáns do Norte", diz Freixanes

Unha cultura é, essencialmente, um espazo de comunicación, um território simbólico, un xeito de entender e representar o mundo, sistema organizado de experiências compartidas, memoria común, emocións, mitos, reflexións, expectativas... Tamén um proxecto de futuro. O que entendemos por cultura galega, mesmo nos seus aspectos máis formais (...) é só a cara dun poliedro rico, complexo, que atinxe asemade a economía, a sociedade, a organización do território, o capital humano, o coñecemento, etc... (...) dun pobo que, em moitos aspectos, segue a ser, non obstante, un gran descoñecido. (FREIXANES, 2005:18)  

O entendimento da cultura lusófona como um território simbólico, um sistema organizado de experiências partilhadas, numa palavra, um modo de interpretar o mundo como um projeto em que o regional alcança o universal, encontra na poesia de Fiama, pelo menos, duas realizações exemplares.

A primeira, o já citado "Barcas Novas", poema que, nas suas duas versões, 1967 e 1974, traz no topo da página, à maneira de epígrafe, a barcarola do trovador galego João Zorro "En Lixboa sobre lo mar". Em ambas as versões, o progresso semântico da escrita sobre a leitura resulta na mudança, no último dos nove dísticos, de "barcas novas" para "armas novas". Na segunda versão, 1974, a forma em versos de redondilha maior é destruída, a fim de que sobressaia a tensão entre o passado das barcas novas, o início da expansão marítima, e o presente das armas novas, a guerra colonial. Minuciosa leitura destes textos está publicada com o título Uma Batida Diferente: O Tom e o Ritmo das "Barcas Novas" de João Zorro no Texto de Fiama Hasse Pais Brandão, em Revista Camoniana 18 /Travessias 2. São Paulo: EDUSC, 2005. p. 305-321.

A segunda realização digna de nota tem um título já em si mesmo sobejamente expressivo. "O Texto de Joao Zorro" é um raro exemplo da consciência nos limites ilimitados da textualidade. Seja no seu aspecto de legado cultural: o poema como "lápide", objeto de leitura das fontes primárias da poesia em língua portuguesa, o lirismo dos Cancioneiros Galaico-Portugueses. Seja no seu aspecto de criação: o poema como "versão", objeto de escrita de um determinado autor numa época determinada:

Levando ao limite, homenagem, o gesto da escrita, posso atribuir os meus textos
a joao zorro. Existimos sobre o anterior. O movimento da escrita e da leitura
exerce-se a partir da menor mutabilidade aparente da pedra
e da maior mutabilidade da grafia. O progresso dos textos
é epigráfico. Lápide e versão, indistintamente. (BRANDÃO, 1974: s/p)

II. Dá-se desenvolvimento ao segundo parágrafo do ensaio do intelectual galego, apresentado-o deliberadamente com interrupções, para avançar na interlocução proposta entre o seu texto e o da poeta portuguesa.

Víctor F. Freixanes, depois de dizer o que entende por cultura como um jeito de apresentação do mundo, vai de encontro aos lugares-comuns que representam a cultura galega congelada numa imagem mítica e mística do passado:

Galicia non é só o Camiño de Santiago, Internet histórica que nos conecta de vello co mundo, revitalizada nos últimos tempos como moito máis ca un camiño relixioso ou de espiritualidade, mais como un camiño de relacións culturais e descubertas, a través do cal, e desde as xeografías máis arredadas, circularon nos últimos anos millóns de persoas de toda clase e condición. (FREIXANES, 2005: 18)  

Fiama, já que é correta a interpretação do subtítulo dos Poemas Galegos, Galiza 50, tinha 12 anos à época, e dá impressões de viagem à terra das letras galegas, através da "Saudade Luso-Galaica" "pela infância exangue." (BRANDÃO, 1991: 559)[1]

                                         O Livro disse peregrinaremos,
                                           
E toda a vida literal o fizemos,
                                           
Cumprindo-o entre lugares e livros.
                                           
Que exortação outra poderia o Verbo
                                           
primevo senão a de lermos
                                           
toda a vida os topónimos apenas.

                                            (BRANDÃO, 1991: 547)

 

Ou dá impressões de viagem às letras da terra galega nos Poemas Galegos que escreve

                                         (Nos poemas não estão
                                           
certos nenhuns lugares.
                                           
Nem com perícia dizem
                                           
a certa toponímia.
                                           
Nem qualquer dos meros
                                           
Nomes é um lugar.)

                                            (BRANDÃO, 1991: 547)  


Os Poemas Galaicos de Fiama são 33. Deles, estão citados acima os dois primeiros, "Lugares" e "Outro", poderiam ser citados ainda o último, "Nas Rias", "Em Santiago" e estes versos de "Brétema", poema em que a sensação de ler os poemas e a biografia e de ver o retrato Rosalia de Castro, aos 17 anos, é ao mesmo tempo uma experiência sensível e sensorial; sensual, erótica mesmo, que abraça o "sentimento" da já citada "infância exangue" à "sensualidade" da juventude


                                               No eu décimo sétimo ano
                                                  
li os poemas, a biografia
                                                  
e vi o retrato de Rosalia.
                                           
No mesmo ano senti na pele a névoa
                                           
com sensualidade e sentimento.
                                                 
(Eis quase chegava
                                                 
a uma sensação inglesa            
                                               que é espúria ou afinal convém,
                                                pois o todo tudo tem.)
                                           
A evidente corporalidade da névoa
                                           
Via-se em enormes quimeras no horizonte.
                                              
O que senti em mim ser
                                              
entre o arvoredo na névoa
                                              
foi a pura identidade
                                            
da matéria, tão pura que a transponho
                                           
de poema e poema para poema.

                                                  (BRANDÃO, 1991: 551)



Numa palavra, são 33 poemas sobre uma geografia da Galiza, recortada através de espaços peregrinos entre a "vida literal" e o que dizem os livros, onde, repetindo ou juntando versos, vê-se o humano na sua circunstância real e simbólica: "(Nem qualquer dos meros nomes é um lugar.)" (BRANDÃO, 1991: 547), "Nem a ternura onírica/ pela infância exangue." (Idem: 559), "Podem marcar um modo e um momento/ e sou eu o único escrevente,/ o único ente/ nesse espaço-tempo." (Idem: 561), "onde veio o Apóstolo/ varar em nenhum contorno ibérico,/ mas sim no esplendor onírico." (Idem: 548)

Tampouco Galicia - quem o diz é Freixanes - é só a paisaxe, nin a gastronomia, nin a mitoloxia, nin os emigrantes, que vendían auga e carbón polas rúas de Lisboa... Galicia non é (non debe ser) a escura terra do norte, instalada na ruralidade, cara á que alguns intelectuais portugueses volven de canto en vez os seus ollos á procura das raíces ou da memoria antiga. (FREIXANES, 2005: 18)

 

Fiama o sabe de cor e no coração. Intelectual e poeta portuguesa de rara interlocução com o outro, Fiama diz que na sua língua a Galiza é a "memória antiga", efetiva e afetiva, do que, inscrito e escrito num "Verbo primevo" (BRANDÃO, 1991: 547) "en maneira de proençal"(D. Dinis, CV 123; CBN 485 ), a mantém viva, literal e simbolicamente, ao pé da letra, em português. Sim, em português, mas sem exotismos de nevoeiros de terras altas e escuras, visto que um canto como o seu, voltado para a cultura viva, sabe que para se ver no rosto que está para além do espelho é preciso atravessá-lo. Como El-Rei Trovador Dom Dinis, em memorável Cantiga de Amor, entre flores artificiais de "proençaes" e dores de amor de verdade à portuguesa, busca na continuidade dos "poéticos dons" (BRANDÃO, 1991: 560), ditos extraordinários, o ritmo descontínuo de si mesma. No presente de Fiama, a Galiza é um "espaço-tempo" limite, haja vista a vivência extraordinária de estar cara a cara com a paisagem amiga, as flores do verde pinho, e não vê-las, ou melhor, e só vê-las outras através da experiência literária da figura que é o verde sobre o verde "de dentro da sua própria imagem." (Idem: 557): "O jorro da vida poética patética", abaixo

                                        Saudade Luso-Galaica

                                            Não o estremecimento
                                            
nas linhas de árvores, no verde
                                           
das sombras, na linha
                                           
da encosta que desce.
                                           
Nem a ternura onírica
                                            
pela infância exangue.

                                            Mas outro princípio, em outra
                                           
fonte magnânima. O jorro
                                           
da vida poética patética.

                                            (BRANDÃO, 1991: 559)

 

Um poema sobre a tão genuinamente mítica portuguesa "Saudade Luso-Galaica" só podia começar com a errata ("Não") de um certo modo de visão da paisagem e terminar com outra ("Mas"). Nos ramos verdes das árvores jorram as linhas descendentes do poeta, quer dizer, na paisagem galega peregrina jorram fontes arcaicas de lirismo. Literalmente: são as linhas descendes do poema, os seus versos em estrofes, que compõem a paisagem; são, pois, os versos sobre o verde pinho que animam a paisagem e motivam a ascendência da poeta, ou seja, os seus próprios poemas. Como diria Víctor F. Freixanes, tampouco Galiza é só paisagem, é um caminho de relações sociais e descobertas. E tampouco Fiama é uma nostálgica peregrina da coita de morrer d'amor à maneira da "Saudade Luso-Galaica". Sobre o modo patético (aristotélico, catártico, anti-Campos[2]) descrito jorra um discreto distanciamento reflexivo (brechtiano, épico). Como, por exemplo, neste poema

                                            Beira da Estrada

 

                                        Os que tocam adufe          
                                           
na beira da estrada
                                           
não reconhecem que a estrada
                                           
o adufe e o seu tocar
                                           
estão em alguma parte da minha vida.

                                            Nem os que comigo bailam,
                                           
para si próprios são os que
                                           
no baile real no povoado
                                           
me imprimiram memórias.

                                            O galaico falar que ciciam
                                          está nesse cômputo final
                                         
irreconhecível porque é um poema
                                          feito de versos na minha língua.

                                            (BRANDÃO, 1991: 549-550)

 

Contados a dedo, dos 33 poemas 06 são os que "imprimem" o nome que identifica o natural da Galiza. Nos poemas acima citados; em "Verso Reverso": "Da casa galega a porta dá"; em "Pão" (de afinidades com a "Cidra" abaixo): "A branca flor do pão lêvedo/ todas as manhãs se abria sobre a mesa./ Era a razão do meu viver nesse tempo/ na pátria galega, que me dava/ assim a sua essência". Em títulos de poemas: "Os carvalhos galegos"; "Gato galego"; e "Saudade luso-galaica". E, sem somá-lo aos seis, mas dando-lhe a necessária importância biográfica, "A Feira (Guitiriz)"

                                        Polícromas e estáticas na feira,
                                           
silhuetas que deambulavam
                                           
por caminhos e carreiros. Antes
                                           
silenciosas, agora estáticas, riem
                                           
e demais falam. Mas passou na berma
                                           
a conduzir a parelha das vacas úberes
                                           
donzela que não está na feira hirta.
                                           
Ou palafreneiro aldeão acariciou
                                           
na ladeira branda no insólito postigo
                                           
focinho de um único cavalo.
                                           
Ocultas, as duas figuras,
                                           
pausadas condutoras do Tempo.

                                            Só na feira estão imóveis os passantes
                                           
diários na sua azáfama.
                                           
dispõem em muitas cores e sons
                                           
o mel, o leite, couves, os panos vilões.
                                           
Não somente o artefacto como o artifício,
                                           
coisas de alguma moda ou gosto,
                                           
que a pastora das duas vacas e o seu par
                                           
no domingo dos vãos ornatos usarão
                                           
porque a feira é a das mercadorias do mundo.

                                            (BRANDÃO, 1991: 552)

 

Com diferenças que aqui não podem, obviamente, ser desenvolvidas, os poemas com o gentílico e o toponímico galego insistem no "modo histórico" de a poeta estar na língua que lhe dá o sentido da metáfora "mais densa", aquela que a filia a um lirismo de cunho nacional, culturalmente em formação. Note-se, por exemplo, que das duas figuras mais presentes, uma é real, quer dizer, é a figura do Rei Agricultor Trovador, Dom Dinis, aquele que mandou que se plantassem em Leria "Os Pinhais para Deterem Areias"[3]; a outra é uma figura de linguagem "las manhãas frias", celebradas na paralelística de Nuno Fernandes Torneol e rememoradas em "Poesia nítida": "As copadas árvores estavam quietas,/ nas frias repetidas matinas/ - e agora nelas percebe-se/ a nitidez que forma os espectros." (BRANDÃO, 1991: 57)

 

III. Por ser "epigráfico", o progresso dos textos ao avançar olha para trás. Logo, no caminho em direção à conclusão, o poema dos 31 anos de aniversário de Fiama, saudado no início, chama de volta à cena a casa paterna da escrita, onde já se estivera de passagem, aliás, na comemoração dos 17 anos, em "Brétema", com Rosalia

Modo Histórico da Cidra

                                         Numa lápide, afinal, num puro tampo
                                           
(de mesa), um ente nasce:
                                           
o fruto (diáfano); cidra, em si a sua origem;
                                           
vem do tempo, celta ou da ibéria, já
                                           
me transcende? Ó reino pressuposto de um
                                           
vegetal; essa paragem - cidra - no percurso.
                                           
Num tempo celebrado, o aniversário.
                                           
É um suco mortífero, ou o de um real
                                           
aberto porque o vêem muitos modos ou o dizem.

                                            Meus anos expostos (a frutos) que formas
                                           
confirmaram: ou, mais longínquo,
                                           
houve o soalho: no espaço a hora ocorre.
                                            A omissão de cidra ou mármore ágrio é um dom
                                            do luto: meu exercício e o mundo.

                                            E que urna ou ornamento (essa mesa)? É
                                            um sentido vário; não que pareça,
                                            mas, quando imóvel, muda. A emoção de ser
                                            corpo (um fruto) decomposto que hoje
                                            recrio ou lego: a minha existência
                                            (entre os iberos) urge.

                                                                                                15 Agosto 69

                                            (BRANDÃO, 1974: 147)


No poema em que festeja o dia dos seus anos, Fiama é feliz por ter a consciência viva do que está morto. Na casa antiga, fazer anos é ir ao encontro de uma tradição de há séculos. E a alegria de todos, e a sua, está certa com uma religião qualquer, em que há diferentes modos de ver e de dizer a realidade, para que as palavras e as coisas da vida não percam o sentido. Essa casa antiga possa ter, embora, primitivos estratos literários da "terra da mais antiga civilização neolatina na península ibérica"[4], "impregnada de lendas celtas como a Bretanha e a Irlanda" (BOSI, 1987: 9), ou ainda extratos de cidras e limões galegos camonianamente sensualíssimos
 

                                            Encosta-se no chão, que está caindo,
                                           
A cidreira cos pesos amarelos;
                                           
Os fermosos limões ali cheirando,
                                           
Estão virgíneas tetas imitando.

                                                                              (Lus., IX, 56, 4-8)


Essa casa antiga, é preciso que se diga, é aqui (re)visitada através do imaginário de um poema de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, que se chama "Aniversário" e, aqui, será citado em (in)tensa interlocução com o poema de Fiama. Por isso, aconselha-se uma releitura do poema. Escrito no dia dos seus anos, 13 de junho, é datado por Fernando Pessoa, para manter a ficção da sua heteronímia, de 15 de outubro, dia do "aniversário" de Álvaro de Campos. "E assim se erra a data para certa"[5], testemunha Pessoa. Sem erro, portanto, errática. Já que "assim se erra", em festa de heterônimos sempre cabe mais um. Fiama também nasceu num dia 15, a 15 de agosto de 1938. No poema do dia em que festeja o tempo dos seus anos, Fiama vai em busca dum modo tão português quanto fictício de ser[6]. Indo ao encontro desse modo português de ser moderno desde a sua origem arcaica, "de ser inteligente para entre a família" (CAMPOS, 1999: 172), tem ela "a grande saúde de não perceber coisa nenhuma" (Idem) que não seja o que foi de suposto a si mesma, "o que foi de coração e parentesco" (Idem), "o que foi de serões de meia-província. - ai, meu Deus!" (Idem) O que foi, o que só hoje sabe que foi, o acha agora, entre "doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado" (Idem, 174). O resto. "Ó reino pressuposto de um vegetal". O tempo que festeja no dia dos seus anos está à distância de um fruto sobre o tampo da mesa. Como uma "cidra" que se come, um "suco" que se toma, um poema que se vive. Um poema que se vive assim, a um só tempo de leitura e escrita, transforma em presente o passado que outrora foi presente. No poema em que festeja o dia dos seus erráticos e fictícios anos, aquele que se diz "hoje como a humidade no corredor do fim da casa, pondo grelado nas paredes..." (Idem, 173), o que se diz um órfão sem teto entre ruínas é hoje, para Fiama, "um dom do luto", que está como um sobrevivente nela mesma "como um fósforo frio..." (Idem), sim, mas vivo na chama que o chama para "o puro tampo (de mesa)" da casa do poema. "E que urna ou ornamento (essa mesa)?", pergunta ela. Responde o "Aniversário" de Álvaro de Campos: "Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,/ por uma viagem metafísica e carnal,/ com uma dualidade de eu para mim.../ Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!" (Idem, 173) "Pão" que se come assim ("é a mesma suave união de duas faces/ da escura côdea e do miolo alvo." - BRANDÃO, 1991: 560) é como a cidra que, em resumo, ressuma no tampo dum tempo entre a razão e emoção em que do todo se quer saber uma parte ("Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui..." - CAMPOS, 1999: 173), a fim de se saber parte de um todo. À "mesa posta com mais lugares", "somam-se dias". O futuro de ser velho, quando se o é agora, é contrário à raiva de Campos. O que se celebra no dia em que Fiama Hasse Pais Brandão festeja o dia dos seus 31 anos é uma emocionada homenagem à literatura, uma comunhão: o fruto e o furto. Sim, a alegria de trazer roubado na algibeira o passado, que, hoje, literal e simbolicamente, letal e fatalmente, se chama livro, um "livro breve" na algibeira, livro de bolso. "O poeta é um fingidor". Logo: não faz anos de vida; nos livros, dura! "Decomposto", entre o legado e a criação, "É um sentido vário; não que pareça,/ mas, quando imóvel, muda".  "Mais nada." Como num livro, aberto: "Num tempo celebrado, o aniversário./ É um suco mortífero ["uma viagem carnal"], ou o de um real/ aberto ["uma viagem metafísica"] porque o vêem muitos modos ou o dizem." Como o diz Fiama: "meu exercício e o mundo. // A emoção de ser/ corpo (um fruto) decomposto que hoje/ recrio ou lego: a minha existência/ (entre os iberos) urge.

IV. O "Aniversário" de Álvaro de Campos é um presente de linguagem, um lugar de ocorrência filológica de amor aos textos e às origens. Campos, como conta a história dos heterônimos, é o engenheiro naval dos Pessoas, por suposto, entende de mar, como os seus ancestrais poéticos Zorro e Dinis. A este inclusive, ele, o Eu-mesmo, o seu Ortônimo, dedicou um poema famoso na Mensagem, "Dom Diniz", assinalando-o com um epíteto nobre: "o plantador de naus a haver". Reunidos neste texto não querem provar nada, a não ser experimentar mais uma vez o prazer de ler a boa literatura em liberdade. Em atenção à urgência com que Fiama chama os seus ancestrais poéticos à mesa da poesia, foi dada leitura aos Poemas Galaicos, onde moram os seus iberos mais antigos. Um convidado surpresa é revelado no poema da festa de seu aniversário, "Modo Histórico da Cidra". Ora, a presença de seu parente ibero poeta mais próximo, português de verdade e de fingimento, é justa homenagem, "em louvor e simplificação de Álvaro de Campos" (poema de Mário Cesariny), àquele que pôs a mão do motor da modernidade do Século XX, acendendo a "Fraternidade com todas as dinâmicas!" ("Ode Triunfal". CAMPOS: 1999, 20). "Iniciados xá no século XXI" - para concluir, de volta ao segundo parágrafo de "Irmáns do Norte, de Víctor F. Freixanes, encerrando-o -,

o século da Información e do Coñecemento, a mundialización das relacións sociais e os grandes espazos políticos (Unión Europea), Galicia é, tal que Ramón Otero Pedrayo gustaba dicir, unha vella cultura de Occidente, com pulo e identidade de seu, que reivindica a súa vocación de estar presente no concerto das culturas modernas e se recoñece na vizosa irmandade galego-luso-brasileira. Nesta dirección compre vanzar. (FREIXANES, 2005: 18)

Avancemos, pois! Agora mais conscientes de que chega a ser quase vergonhoso o fato de nenhum livro de Fiama Hasse Pais Brandão ter sido até hoje publicado no Brasil.

BIBLIOGRAFIA

BOSI, Ecléa. Rosalia de Castro: Poesia. São Paulo: Brasiliense, 1987.

BRANDÃO, Fiama Hasse Pais. Obra breve. Lisboa: Teorema, 1991.

----. O texto de Joao Zorro. Porto: Limiar, 1974.

----. (Este) Rosto. Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1970

CAMPOS, Poemas de Álvaro de. BERARDINELLI, Cleonice (Org). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 172.

FREIXANES, Victor F. JL, 11-24 maio 2005, Ano XXV, Nº 903.



[1] Informa Gastão Cruz: "Galiza 50, porque a Fiama passou férias, ano após ano, na sua adolescência (anos 50), na Galiza, numa pequena povoação da província de Lugo, chamada Guitiriz". Cf. "A Feira (Guitiriz)" (552).

[2] O daqui a pouco muito citado Álvaro de Campos é autor de "Apontamentos para uma Estética não Aristotélica".

[3] Título de poema de Fiama publicado em (Este) Rosto, 1970.

[4] Otto Maria Carpeaux. "Orelhas". In: BOSI, Ecléa. Rosalia de Castro: Poesia. São Paulo: Brasiliense, 1987.

[5] CAMPOS, Poemas de Álvaro de. BERARDINELLI, Cleonice (Org). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 172.

[6] Outra vez Gastão Cruz em carta (eletrônica!): "Num aniversário em que estava sozinha a Fiama partiu uma cidra e sobre isso escreveu um poema. O Egito [Gonçalves] falava muito nisso e creio que escreveu um poema  sobre o caso (ou estou a inventar?)".

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