ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

O SUICÍDIO DO ESCRITOR MISHIMA

 

Gilfrancisco

 

 

Há exatamente 35 anos o maior  escritor japonês de todos os tempos Yukio Mishima (1925-1970), cometeu seppuku (haraquiri como protesto à mudança de costumes do Japão) no gabinete do generalíssimo do Japão; em seguida; sua cabeça fora decepada por seu amante. O suicídio de Mishima teve um efeito avassalador sobre toda a família japonesa. Mishima recebeu o Prêmio Shincho de Literatura em 1954, Prêmio Kishida de Teatro em 1955, Prêmio Yomiuri de Literatura em 1956, foi o expoente da nova geração de escritores japoneses.

"De uns tempos para cá, dei de sentir dentro de mim um acúmulo de todos os tipos de coisas que não podem achar expressão adequada através de uma forma artística objetiva como o romance. Um poeta lírico de vinte anos se sairia bem dessa situação, mas eu não tenho mais vinte anos e, de qualquer forma, nunca fui poeta." (Yukio Mishima)

Nascido em Tóquio no dia 14 de janeiro de 1925, seu nome verdadeiro era Kimitake Hiratoka, filho de Azuza e Shirue Hiratoka. Azuza, o pai, era um alto funcionário ministerial, e sua mãe pertencia a uma família de confucianos letrados. Até os 12 anos de idade, Kimitake foi criado pelos avós paternos. O avô foi governador da ilha de Sakhalinala e a avó, filha de uma família de samurais - daí sua formação austera.

Quando jovem era tímido, retraído e muito culto. Conhecia o teatro Nô e o Kabuki como  também toda a tradição japonesa e os ideais heróicos dos samurais. Em 1941, aos 16 anos, publicou seus primeiros escritos na revista da escola. Os poemas, Floresta em Flor, falavam de amor, honra, reverência e beleza da hierarquia. A manifestação da mitologia japonesa estava sempre presente em seu cotidiano. Aos 33 anos, optou por um casamento de conveniência a pedido da mãe e teve dois filhos, Noriko e Ichiro.

Mishima iniciou sua brilhante carreira de sucessos em 1944, obtendo uma menção do Imperador por ter sido o primeiro colocado entre os graduados da Escola dos Pares. Em 1947, diplomou-se em Direito pela Universidade Imperial de Tóquio. Desde a publicação de seu primeiro romance, em 1948, o escritor Mishima mostrou em sua obra uma trágica visão do conflito entre os valores tradicionais do Japão e a crescente ocidentalização do país.  Nos romances seguintes reaparecem os mesmos personagens atormentados por problemas físicos e psicológicos ou obcecados por ideais inatingíveis, que impedem toda possibilidade de ser feliz.

Como escritor, escolheu um pseudônimo - Yukio lembra a neve e Mishima, o nome de uma vila ao pé do Monte Fuji. Autor de mais de 20 romances, 33 peças teatrais (Madame de Sade -1965; Cinco nô modernos-1956), um livro de viagens e mais de 80 contos e vários ensaios, suas obras refletiam com clareza sua personalidade e não poderiam ser analisadas fora do contexto cultural japonês.

Na opinião dos críticos, seu segundo romance publicado, Confissão de uma Máscara, mostra suas próprias experiências em forma de ficção narradas em primeira pessoa. Parcialmente autobiográfico, Mishima conta uma história sobre um homossexual forçado a ocultar uma opção sexual. Seus conflitos sexuais também nunca foram exatamente bem resolvidos, em função da tradição cultural do seu país. Com o êxito do livro, passou a dedicar-se inteiramente à literatura.

Entre seus livros publicados estão, A Floresta em flor (1944), Sede de amor (1950); Cores proibidas (1954) e O som das ondas (1954). O tempo do pavilhão dourado (1956) é a história de um acólito atormentado que incendeia um templo budista por não poder alcançar sua beleza. Vários de seus livros serviram de roteiro para cerca de dez filmes: O som das ondas  foi filmado duas vezes (1956), é uma das obras-primas de Ishikawa. Enjo baseou-se em O tempo do pavilhão dourado (1959). Durante sua estada nos Estados Unidos, apesar de uma intensa agenda de trabalho, conseguiu viajar por várias cidades do país.

Depois do Banquete, publicado em 1960, revela o traço sutil do autor, a que não faltam o humor ou a malícia, dominando uma narrativa linear, sem os cortes bruscos ou os retornos ao passado, tão do gosto dos que se inscrevem no gênero do romance novo. O sucesso se explica pela maneira como fixa bem seus personagens, como desenvolve a ação no ambiente social do Japão contemporâneo, juntando à beleza clássica uma expressão moderna. E as ilusões amorosas de Kazu ou as pretensões de um Ministro de Exterior aposentado não serão apenas esquemas limitados - a ironia, a compaixão ou mesmo a violência aqui manifestas expressam a profunda sensibilidade do autor às condições humanas com aplicações, num plano mais amplo, a situações universais.

Narciso, personagem da mitologia grega, célebre por sua beleza. Segundo a lenda mais comum, apaixonou-se por sua imagem refletida na água de uma fonte e morreu procurando, em vão, apoderar-se dela. Nesse local nasceu a flor que traz seu nome. O amor pela própria imagem (narcisismo) fez com que Mishima cultivasse  por mais de dez anos seu corpo para poder matá-lo ritualmente da maneira mais pública possível. Em Sol e aço, publicado poucos meses antes de sua morte, com seu último testamento, Mishima descreve o florescimento de seu próprio narcisismo e sua compreensão gradual de que a carne é tudo.

Para ele, o corpo é o que se é, e um corpo fraco e vacilante não tem outra saída senão conter um espírito correspondente. Mesmo assim, Mishima desejava uma vida do físico, da ação, uma vida distante das palavras e venerando a saúde e a beleza do físico. Quando jovem, a inexpressividade do seu corpo era tanto, que não conseguiu servir ao exército japonês durante a segunda guerra mundial, por incapacidade física. Tentou liberar sua inteligência consciente (sua arte) através do uso e da adoração de seu próprio corpo e do de outros.  Neste livro, Mishima tentou recuperar a tradição militarista do Japão como remédio para a perplexidade que dominou o país após a segunda guerra mundial. Tais ideais levaram -no a praticar artes marciais  a criar seu próprio  exército.

A obra principal do escritor japonês é a tetralogia épica O mar da fertilidade (1965-1970), formada pelos romances Neve da primavera, Cavalos selvagens, O tempo da aurora e A queda do anjo, em que o estéril mar lunar simboliza o Japão moderno. Mishima era um escritor que dominava todas as formas literárias, admirador da literatura francesa do século XIX, preferindo Huysmans a Flaubert.

Morte - Um ritual milimetricamente planejado estava para acontecer na manhã do outono daquele dia 25 de novembro de 1970. O escritor japonês Yukio Mishima endereçou a seus editores um envelope contendo a parte final de seu livro O mar da fertilidade e juntou-se a quatro companheiros da Tateno-Kai, ou Sociedade dos Escudos, criada por ele em 1968, e seguiu ruma ao quartel-general das Forças Armadas em Tóquio.

Lá, coagiu o general Kanetoshi Mashita a recebê-lo, caso contrário ele seria morto.  Em seguida cometeria suicídio. No pátio central do quartel, exigiu a presença de 1000 homens para ouvirem seu discurso final. Enquanto os homens eram reunidos, dois de seus discípulos distribuíram panfletos com uma mensagem inflamada de amor ao Japão e suas tradições.

Ajoelhou-se quase nu e bradou três vezes tenno heika banzai (Longa vida ao imperador), cometendo o haraquiri, ritual de suicídio dos samurais. Em seguida, Masakatsu Morita - seu braço direito na Sociedade, partidário, admirador e amante - também se matou. Um outro soldado, Furu-Koga, decepou a cabeça de Mishima e depois, com a mesma precisão, a de Morita.

A Sociedade de Mishima recrutara 90 jovens universitários de extrema-direita, que foram treinados pelo escritor, que pretendia, com esse grupo, resgatar as tradições culturais de seu país. Mishima sentia-se humilhado com a rendição japonesa na Segunda Guerra Mundial, em especial com a renúncia exigida do imperador Hiroito de seu caráter divino. Hiroito morreu em janeiro de 1989 e foi sucedido por seu filho, Akihito, que inaugurou a era Heisei. A luta do escritor não impediu que o Japão se curvasse às delícias ocidentais. Os japoneses, em especial os jovens dos anos 80 e 90, se renderam às exigências do hiper modernismo ocidental. A imprensa norte-americana, de um modo geral, explorou dois aspectos do suicídio: o homossexualismo de Mishima e o último e confuso discurso às tropas pedindo a volta ao militarismo e à antiga virtude.

A literatura japonesa, através de números escritores, como Kawabata, Mishima, Yasushi Inove e tantos outros, está sendo traduzida e divulgada nas principais línguas do planeta, inclusive em português.

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Gilfrancisco é jornalista e professor da Faculdade Atlântico. E-mail: gilfrancisco.santos@ig.com.br.

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