ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

O VER QUE NÃO TOCA, O TOQUE NÃO VÊ
UM ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA

 

“Eu já conheço aquela parte em você que não tem nome algum”.

 

 

Flávio Ricardo Vassoler

 

 

O Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago, e Blindness (2008), o filme de Fernando Meirelles baseado no romance do escritor português, serão nossos cães-guia.

 

* * *

 

Não haverá nomes.

Os olhos amordaçados estão fadados a esquecer.

A memória é tudo o que lhes resta.

A sociedade da informação (para o consumo) já não pode seduzir pelo arco-íris publicitário. Curioso paradoxo: o véu branco da cegueira que José Saramago desvela em seu Ensaio reúne em si todas as cores do espectro. O branco funde o diverso. Diverso que, a partir de agora, será único.

"Estou cego!"

Agora só posso lembrar.

"E se o aumento explosivo de memória for inevitavelmente acompanhado de um aumento explosivo de esquecimento?" (Andreas Huyssen, Seduzidos pela Memória).

Somente o Estado onipresente - e onipotente - não esquecerá.

Segregará.

A cegueira se espraia, o mar branco inunda cada vez mais náufragos.

A burocracia impessoal precisa agir, o Leviatã sem face deve abrir os olhos etéreos.

Saramago é repleto de simbologia: um antigo manicômio abrigará aqueles que não mais precisam de pálpebras. Como se a Razão caducasse na medida em que não pudes-se ser hipnotizada pela ode à mercadoria.

Saramago enforma o Ensaio a partir de uma situação escatológica que leva às últi-mas conseqüências a impossibilidade de se ver.      

A sociabilidade é esgarçada.

A moral já não pode fazer vista grossa.

Darwin há muito elucidara o princípio da seleção natural. Há os resistentes, aqueles que são naturalmente selecionados, os sobreviventes. A esposa do oftalmologista não verá os olhos cerrados. Logo o médico se reduzirá a marido da visionária. O oftalmolo-gista ficará cego. O feitiço e o feiticeiro. Aos poucos, a clausura racional do manicômio encerrará os mais diversos ramos da divisão social do trabalho a partir dos corpos cegos de seus executores. A prostituta, o atendente da farmácia, a consultora financeira, o marginal, o médico - que já não pode curar.

O manicômio vendado e vedado passará a reeditar a história do desenvolvimento social desde os primórdios mais rudimentares. Ainda que todos tenham ciência das categorias modernas de sociabilidade, a ciência já não pode auxiliá-los. Os recursos são escassos. Nossos corpos são os novos laboratórios. A retorta é cega.

As distinções se tornam obscuras – ou pior, embranquecidas. De olhos amordaça-dos, o oftalmologista pretende-se orador. O marginal compreende na prática cega que já não há clara clivagem entre a margem e o centro.

"Não me venha dizer que é médico, já não aceito ordens".

A utopia, o não-lugar, o lugar nenhum.

O nenhum lugar da distopia.

Agora, a privação estabelece a igualdade a contrapelo, a igualdade da tragédia que os faz perder o derradeiro resquício de autodeliberação, a visão.

"Aquilo que nega o sistema na teoria o faz devido à sua incapacidade de negá-lo na prática" (Terry Eagleton, As ilusões da pós-modernidade).

Teoria da prática cega.

Prática cega da teoria.

Aporia.

Mas ainda há esperança: em terra de cego, quem tem um olho é rei. A rainha tem os dois. A esposa do oftalmologista, agora a médica efetiva, procura trazer a cura. Aquela que vê tentará expiar a dor dos inscientes. Cristo é ainda uma vez ressuscitado.

A burocracia os ilhou, não haverá metástases. Somente a sujeira pode se espraiar. E ela o faz. As alamedas maníacas não devem ser vistas, mas cheiradas. Cheiro de dedos etéreos, punhos fétidos a enforcar. Cegueira branca, mácula lívida, cheiro marrom dos corpos cada vez mais próximos das vísceras.

A princípio, todos comem as migalhas enviadas militarmente.

Mas é preciso dividir para reinar.

Para reinar, é preciso cindir.

Um contestador não aceita a democracia proposta pelo médico orador.

"Eu me autoproclamo rei da minha ala. Alguém tem alguma objeção?"

O tempo é rasgado pelo caos.

O moderno convive com o anacrônico.

Absolutismo democrático.

"Num período em que nenhuma ação política de grande projeção se afigura com efeito exeqüível, em que a assim chamada micropolítica parece a ordem do dia, soa como um alívio converter essa necessidade em virtude – persuadir-se de que as próprias limitações políticas têm, por assim dizer, uma base ontológica sólida, pelo fato de que a totalidade social resume-se afinal a uma quimera" (Terry Eagleton, As ilusões da pós-modernidade).

O manicômio e a totalidade totalitária.

Que fazer? - pergunta Lênin.

Fazer, executar - responde Stálin junto à têmpora.

Um caolho tem um rádio.

Caolho?

Ambos os olhos são cegos, mas um deles, o direito, insiste em se ocultar sob uma venda.

Os cegos ouvem.

Logo todos se dão conta da proporção que a cegueira branca vai tomando.

A doença era imune à burocracia.

Como veremos, a burocracia não era imune à doença.

A burocracia tem a cura letal.

Já não vai doer.

Já não é preciso ver.

Corpos empilhados ao redor do manicômio. Soldados em vigília cumprem ordens. O dedo precisa atingir o gatilho. Gatilho perfurocortante. Quanto aos cegos – os mor-tos e os mortos-vivos –, deixem que os mortos enterrem os mortos. Cristo ainda uma vez assim se pronuncia, aquela que vê se incumbe de selar as pálpebras dos cadáveres com terra.

Onde os fracos não têm vez: a ala monárquica começa a empreender o monopólio da violência.

Onde os recursos são escassos, a escassez vira um recurso.

Passará a haver racionamento da comida arremessada ao manicômio.

Apropriação privada da pobreza social.

Trata-se da subversão da abundância pela fome.

Inação e inanição.

"Essa perecibilidade da máquina e dos seus produtos no mundo moderno ocidental foi agudamente observada por Jean Baudrillard em Sociedade de Consumo. Diz ele que nestas sociedades os objetos existem para a morte" (Silviano Santiago, O cosmopolitismo do pobre, crítica literária e crítica cultural).

A morte existe para os objetos e para os que não objetam.

Afinal, os tiranos têm armas.

Os democratas famintos pensam e falam e falam e pensam sobre uma possível contraposição.

Enquanto isso, em algum lugar do passado, o espectro de Adolf Hitler espreita o corredor polonês.

Enquanto isso, naquele lugar do presente, os famintos democratas falam e pensam e pensam e falam sobre uma contraposição possível.

Ensaio sobre a cegueira, cegueira que só ensaia.

Ora, enquanto a grama cresce, o cavalo deve pastar.

Cristo ressuscitado aceita as novas regras.

A César o que é de César, a Deus o que é de Deus.

"Todos devem ceder os pertences que tiverem para que possam comer. Não espe-rem comer no lugar dos outros".

A visionária oferece a outra face – e lá está uma adaga.

O monopólio da violência no manicômio faz a paródia da reificação que rasga a sociedade de classes.

Tomamos por natural a constituição de classes e a apropriação privada da produção social, como se tal estado correspondesse a uma condição ontológica da formação social. A desagregação da sociabilidade pela cegueira e o seu contingenciamento no manicômio nos permitem observar uma possível narrativa para a origem da opressão. Mas onde estaria então o germe da sublevação? A cegueira também aponta para o discurso da servidão voluntária.

Para reinar, é preciso setorizar.

A cegueira também precisa da departamentalização do espírito.

Setor Adjunto para a Distribuição de Alimentos devidamente Expropriados.

O responsável?

Um cego.

Cego, sim, mas não como os demais.

De olhos bem fechados: cego de nascença.

O oftalmologista, agora legítimo representante da ala trôpego-democrática, não se conforma.

"Se você nasceu cego, está muito mais adaptado que todos aqui. Há profundas implicações morais em sua condição. Isso é revoltante!"

O líder, rei autoproclamado, sentencia religiosamente de arma em punho:

"Receba o seu quinhão e seja grato".

Por séculos e séculos, amém.

O médico antes bem aquinhoado agora aponta o dedo em riste para o deficiente congênito. Não se pode afirmar – negar também não se pode –, mas talvez, antes da cegueira branca, o médico ajudasse o atual burocrata congênito a subir no ônibus com uma piedade cheia de altivez.

“Ajudo-o, claro” – e em silêncio (silêncio que não vê e não quer ouvir): “ainda bem que não sou assim”.

Só alguém dentro de uma situação pode julgá-la, e ele é a última pessoa que pode julgar (Bertold Brecht).

O Ensaio faz as paralelas se cruzarem bem onde o infinito é escatológico: no limite, Saramago subverte os bem-aquinhoados da seleção (nada) natural.

O doutor cobra do cego a empatia por aqueles que se tornaram obscuros.

Quem é passível de pena, agora?

Pergunta: Qual o limite para os recursos escassos?

Resposta sedenta e prostrada: a escassez dos recursos.

O rei autoproclamado prepara-se para um novo pronunciamento.

Já há até mesmo um microfone.

"Façamos como nas lojas", ele antes dissera.

“Nós velaremos pela comida, velaremos pela sua troca justa (para nós)”.

Quando todos foram despidos de quaisquer pertences e valias, o que resta para trocar além da nudez?

Toda a nudez será castigada?

Não.

Todo o castigo será desnudo.

"A partir de agora, haverá uma nova moeda de troca: mulheres".

Perdem-se os anéis, mas nem todos ficam só pelos dedos.

A ala monárquica queremos seus corpos, mulheres.

O Ensaio retira o véu de outro auto-engano histórico: a derrocada da utopia despoja o sujeito de sua condição transcendente, de seu caráter Ideal. Não mais o sujeito dotado da autonomia própria ao imperativo categórico ético, mas o sujeito sujeitado, dono, ou refém, de seu próprio corpo.

Mário Lugarinho, docente do departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Letras da USP, propôs uma análise a contrapelo sobre o resgate do corpo como possibilidade de reinício de uma construção positiva para um projeto humano.

Ao analisar o filme A Era da Inocência (2007), de Denys Arcand, Lugarinho nos remete ao desfecho da (anti-)história do protagonista. A personagem espoliada pelas seqüências infindas de segundas-feiras toca a campainha da casa ainda mais pacata de um casal de velhinhos. A senhora o atende.

"Mas o que você quer fazer?".

O fácil é que é difícil de fazer (Bertold Brecht).

Fazer já seria difícil, quanto mais querer.

A personagem de Arcand se dirige ao jardim.

Estamos diante de uma macieira.

O fim do filme quiçá nos remeta ao início mítico dos tempos, o Gênesis.

Afinal, Eva nos esvaiu do paraíso após se deleitar com o fruto proibido, a maça.

A personagem se senta.

A maça vai sendo descascada lentamente.

O ser humano precisou hastear os mais diversos tipos de utopia para, ao fim e ao cabo, ser expelido, nu, de encontro à sua única e efetiva propriedade, os sentidos.

Não o sentido, mas os sentidos.

A partir do momento em que a subjetividade se confunde com o corpo, encontra-mo-nos diante do sofrimento sensível e tangível.

O grito, a lágrima.

Quiçá os futuros projetos emancipatórios levem em consideração a constituição mais concreta que cada um de nós possui, já que os perseguidores sempre souberam que é ao corpo que o poder deve recorrer.

O filme termina com a maça descascada.

A imagem se transforma em traços pictóricos de uma natureza morta.

Término ambíguo.

Voltamos à natureza, nossos sentidos são resgatados pela opressão e à revelia do poder. Mas somos forçados a lembrar que a natureza é morta.

Somente o devir histórico poderá nos mostrar se haverá a restituição da sinestesia.

Por ora, o toque não vê.

No manicômio de Saramago, os recursos são escassos, não o desejo.

A ala democrática sugere que as mulheres se entreguem somente de modo voluntá-rio.

Ainda que a fome não seja democrática.

Logo se forma uma fila indiana de mulheres famintas e abnegadas.

A visionária Maria Madalena vai à frente.

O corpo maculado de Cristo enfim se rebela.

Aquela que vê se transforma em Caim, há choro e ranger de dentes, o rei autopro-clamado deverá pagar.

Aquela que vê não pode ser vista.

Olho por olho, dente por dente.

A opressão incita a revolução.

"No momento em que a transferência para um centro supranacional é completada, surgem redes de contrapoderes locais e constitucionalmente eficazes para contestar e/ou apoiar a nova figura de poder" (Michael Hardt e Antonio Negri, Império).

Guerra de todos contra todos.

Ninguém precisa ler Thomas Hobbes para, no limite, descobrir que não há vácuo no poder.

O manicômio arde em chamas.

Onde estão os soldados que nos condenavam ao degredo?

A cegueira não vê mais fronteiras.

O mar branco poderia se espraiar indefinidamente, caso já não houvesse acometido a tudo e a todos.

Na rua, o caos não se deixa quantificar.

"No começo não há sangue, os indícios são irrisórios. A guerra civil molecular inicia-se discretamente, sem que haja uma mobilização geral. Pouco a pouco, multiplica-se o lixo nas ruas. No parque, amontoam-se as seringas e garrafas de cerveja quebradas. Nas paredes surgem pichações monótonas, cuja única mensagem é o autismo: elas exorcizam o eu que já não mais existe. Na sala de aula os móveis são destroçados, os jardins fedem a merda e urina. Trata-se de declarações de guerra mudas e diminutas, mas percebidas pelo experiente morador da cidade. Logo se revela o anseio por um gueto mediante sinais eloqüentes. Pneus são furados, telefones de emergência inutiliza-dos, automóveis incendiados. Nas ações espontâneas expressa-se a raiva das coisas em bom estado, o ódio por tudo o que funciona e que forma um amálgama indissolúvel com o ódio por si mesmo" (Hans Magnus Enzensberger, Guerra Civil).

Junto aos ratos, alguém almoça.

Será que os animais ainda vêem?

Nos supermercados – agora submercados –, a demanda faminta já não atrai a pró-pria oferta.

Sujeitos precisam se sujeitar.

Sujet, sujeito.

Sujet, súdito.

"O conceito de totalidade implica um sujeito para quem ela faria alguma diferença prática; mas esse tal sujeito foi rechaçado, incorporado, dispersado ou metamorfoseado em algo sem existência, por isso o conceito de totalidade tem grandes chances de cair junto com ele" (Terry Eagleton, As ilusões da pós-modernidade).

O Ensaio desvela o caos social como contraponto humano à totalidade totalitária que tudo controla e tudo vê. No limite, a perda da visão pôde incitá-los à rebeldia, na medida em que a vida paulatina e resignada já não poderia ter continuidade. O esgarçamento da totalidade social necessariamente estilhaça a identidade íntegra do sujeito que deve reproduzi-la no microcosmo pretensamente auto-suficiente da vida burguesa.

"Não se abandonaria o impulso radical, mas ele mudaria gradualmente do transfor-mativo para o subversivo, e ninguém além dos anunciantes falaria mais em revolução" (Terry Eagleton, As ilusões da pós-modernidade).

Uma recente promoção do Habib's usou o mote da revolução: uma esfiha de carne porta a boina cubana com a estrela vermelha.

La garantía soy yo.

Revolução nos preços.

A sociedade cega de Saramago já não pode anunciar.

Não há garantias.

Transformação e subversão são faces da mesma moeda.

Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.

Não se pode ver, mas a Luz insiste em querer se propagar.

Estamos em uma igreja.

A teologia ainda se pretende teleológica.

Mas eis que o véu do templo ainda uma vez se rasga.

Todos os santos têm os olhos vendados.

O Homem fez deus à sua imagem e semelhança.

"O que tiver Luz não me pertence".

A religião já não religa.

A igreja: só mais um abrigo.

Começa a chover.

Ninguém consegue ver, mas todos podem se molhar.

Os corpos acometidos se unem.

O caos também comporta o abraço e, eventualmente, o sorriso.

Um casal potencial procura a identidade até então às escuras.

Ele recua.

"Não, eu não quero saber como você é".

Ela persiste.

"Como podemos nos conhecer se não sabemos nossos nomes?"

Ele esboça o Ensaio sobre a cegueira:

"Eu já conheço aquela parte em você que não tem nome algum".

O silêncio aquiesce.

Abraço em silêncio.

Silêncio amordaçado.

O silêncio vê.

"Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara".

A epígrafe do Ensaio vem do Livro dos Conselhos.

A vida danificada estilhaça a sabedoria.

Já não há previsibilidade para que uma vivência possa ser estendida a um outro.

O conselho se acautela contra si mesmo.

Se podes ver, repara que só podes olhar.

Se "a vida não vive" (Adorno, Minima Moralia), o ver não toca.

Os primeiros serão os últimos?

Não, os primeiros.

O primeiro cego volta a ver.

Potencial reação em cadeia: a cegueira ensaia ver.

O corpo voltará a ser tátil para os olhos.

A vida voltará a ser corpórea para o tato?

A impossibilidade de síntese inequívoca para o Ensaio sobre a cegueira aponta não para uma fissura poética da obra.

Segundo o Adorno de Posição do narrador no romance contemporâneo, a permanência da dialética negativa faz com que a obra, em seu impasse, ressignifique a própria época em que se insere, na medida em que não reconcilia como totalidade integrada conflitos históricos que não se resolveram.

A negatividade não dissolveria a verdade artística como mera ideologia.

O positivo só permaneceria positivo em sua negatividade.

É preciso ver.

Ainda que sob o risco de ver sem poder viver.

 

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Flávio Ricardo Vassoler é mestre em Teoria Literária pela FFLCH/USP.

Subsolo das Memórias – www.subsolodasmemorias.blogspot.com.

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