ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

O BALLETMANCO DE DONNY CORREIA:
A ANTIDANÇA CÂMERA EM PUNHO

 

Flávio Ricardo

 

No princípio era o Verbo?

Não.

A tensão pelo título substantivo: Balletmanco.

A convivência dos contrários.

O ballet, a harmonia cartesiana, a plasticidade dos passos, a leveza do cisne, o dedo em riste da sapatilha; o ballet – manco.

O título prenuncia a tensão.

Três segundos – tr3s.

Sob a influência da temporalidade espacial de James Joyce, o Balletmanco flui sobre o palco da página: não há transcorrer temporal paulatino, o novelo narrativo não se desdobra como um meio desde o começo até o fim – por séculos e séculos, amém.

Donny Correia é um iconoclasta.

A formação da obra flerta inequivocamente com a própria deformação.

Balletmanco.

A antítese une forma e conteúdo em seu bailado trôpego.

A palavra precisa considerar o próprio desenho, a disposição pela página, o lance de dados.

A palavra também sofre a inflexão dos contrários sobre o próprio corpo gráfico.

 

“E vendo assim sua carne de cera

deitada n’alcova – livre –

reconheço cada parte onde tu foste corda

onde em mim

fosses forca”.

 

A palavra canônica, o beletrismo do ballet, a plasticidade das imagens por meio de uma forma plácida.

 

“Respirei fundo e meus olhos emparedaram o ar em pulmões castigados. (...) Enquanto você dorme e eu inalo poeira de vidro no pulmão enrijecido”.

 

A palavra vai manquitolando, a prosa poética – a proesia – deixa de ser simbólica para iniciar a agressão. Agressão sinestésica, balletmanco dos sentidos, pulmão emparedado, enrijecido, poeira de vidro inalado, “desenvolvemos o hábito de dormir nas cinzas”.

É possível cheirar o ballet.

Ovos podres, a conta do açougue, a sinfonia atonal da nádega privada, o flato – flatulentamente. O esgarçamento da convivência dos contrários em dois pólos tão lingüisticamente distantes remete-nos a uma iconoclastia aparentemente exclusiva ao conteúdo. No entanto, o entrechoque dos níveis díspares do discurso pode cumprir um papel todo outro na dinâmica dessa contradança – ou melhor, antidança.

O tempo flui – 23:59:58, 23:59:59, 00:00:00.

O tempo flui em refluxo, a estória prossegue pelo plasmar da palavra até a imagem, o tempo se espacializa. O espaço é temporal. Ao invés de pensarmos em um transcurso, uma estrada, os pés bailarinos são intimados ao caminhar estático. A poética do Balletmanco solapa mesmo o transcurso mínimo dos três segundos ao se cristalizar em uma estátua.

Ora, qual o tempo da estátua senão a iminência da eternidade?

Ora, qual o tempo da estátua senão a atividade do espectador?

O leitor precisa urdir os fragmentos do ballet para apreendê-lo. Descalço, o leitor prossegue pelos cacos de vidro da antidança. O choque faz o texto fluir, daí a estátua volta a caminhar – ou melhor, dançar.

O culto e o prosaico, o fluxo e o estático, a linha horizontal e o desenho espacial, a sugestão da imagem e a víscera exposta, o belo e o feio, a formação e a deformação: tese e antítese dançam de rosto colado. Não prosseguiriam pelo espaço cristalizado do tempo, não fosse o leitor constantemente tragado e preterido pela poética cinética do Balletmanco.

Mas a estrutura tem voz – ainda que Donny Correia a submeta ao patíbulo das cordas vocais.

Uma relação amorosa se desfaz.

Tr3s segundos condensam uma vida juntos – disjuntos.

Agora, a imagem pelo espaço do tempo remete-nos a uma outra função trôpega: o devir caótico da memória.

Cheiros, cores, dissabores: tudo remete à dissolução, o término dá o tom para o princípio da seleção poética.

O Balletmanco caminha pelos escombros que não podem prosseguir.

 

“Lucidezafeto”.

 

No limite, a literatura é arremessada contra si mesma.

A página deve ser lida, é bem verdade, mas o ballet, por ser errante, pretende ser visto – o auscultar com os olhos.

Embaralhados e alucinados, o eu-lírico e o foco narrativo – o foco lírico – plasmam-se até a imagem da câmera, o enquadramento.

A pena do Balletmanco mimetiza a montagem cinematográfica do Donny Correia cineasta.

A metalinguagem desvela a confluência de planos para distintas linguagens artísticas.

O cinema e a literatura.

A cinética literária.

A literatura cinematográfica.

Ora, a convivência dos contrários já fora urdida desde o início: Balletmanco.

No princípio era o Verbo?

Não.

A palavra imaginada, imagem in ação.

 

 

 

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Flávio Ricardo Vassoler é Mestre em Teoria Literária pela FFLCH / USP.  Subsolo das Memórias -www.subsolodasmemorias.blogspot.com.

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